Migalhas de Peso

Contrato, função social e reforma legislativa: notas sobre o art. 421 do Código Civil após a MP da liberdade econômica

Em sua tendência geral para uma atenuação da interferência sobre os contratos e da função social, a MP 881/19 peca pela atecnia.

14/6/2019

Medida provisória 881/19

A expressão Allegro ma non troppo (rápido, mas não muito)1 indica um andamento musical de execução temperadamente veloz. O resultado é uma composição suave, na qual há prudência e harmonia, por assim dizer, como em partes do primeiro movimento da Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven. É também o título de um livro do falecido medievalista italiano Carlo Maria Cipolla, no qual se encontra um intrigante ensaio sobre as leis fundamentais da estupidez humana (“nunca a subestime”, é o recado geral de Cipolla).

Pode ser interessante transpor esse tipo para o universo da política e do Direito, especialmente no momento de transição vivido pelo Brasil, e, mais restritamente, no que toca à produção legislativa ligada às reformas econômicas. A desejada velocidade dessas reformas precisa compatibilizar-se com certas características jurídicas bem brasileiras. Uma prudência estratégica deve ser convocada, para não ocorrer um atropelo prejudicial aos intentos.

Quanto ao Direito Privado, na falta de uma compreensão adequada sobre o modo como se o tem interpretado e aplicado no Brasil há algumas décadas, sobre o papel assumido pela dogmática nesse cenário, e também sobre o conjunto das atuais leis civis, boas iniciativas correm o risco de soçobrar.

É o que ocorre com a recente medida provisória 881 de 2019, promulgada em 30 de abril. Apresentando a assim chamada “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” (art. 3º), o ato visa a promover um cenário econômico-negocial de maior racionalidade, mais livre da intervenção do Estado e menos burocrático2. Para tanto, dentre outras medidas, atinge o coração das leis civis, modificando artigos importantes do Código Civil de 2002.

Deixe-se de lado a apreciação sobre a constitucionalidade da medida. É evidente que as reformas econômicas urgem, mas disso não se extrai a urgência de qualquer ato teoricamente garantidor delas. Seja como for, essa é uma guerra perdida. Até o “direito de laje” veio por MP3.

Também não serão objeto de comentário os aspectos polêmicos que a MP 881/19 apresenta já na “Declaração de Direitos” do seu art. 3º, como a aparente possibilidade de afastamento de normas de ordem pública nos negócios empresariais. Contra isso já se erguem vozes as mais diversas, e com boa dose de razão.

Neste texto apresentam-se notas sobre a mudança operada (ainda que haja proposição de emendas e pendência de referendo parlamentar) no art. 421 do CC/02, respeitante à assim chamada função social do contrato, bem como sobre alguns aspectos controvertidos desse preceito e dessa função. Era a redação original do art. 421 do CC/02:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

E a redação dada pela MP 881/19:

Art. 421.  A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.  

Parágrafo único.  Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.

A intenção pode ser boa, mas o resultado é ruim. A bem dizer, trata-se de um retrocesso em termos de segurança jurídica, a prejudicar o ambiente de contratações, submetido que fica, agora, a uma utilização exacerbada da principiologia econômica na legislação e a um jogo retórico dificilmente assimilável pelos órgãos aos quais se dirige, afinal, o texto de lei.

 

 Método, dogmática e reforma legislativa no Direito Civil brasileiro

Discutir a função social do contrato exige, antes de tudo, uma observação panorâmica sobre sua relação com o processo de constitucionalização do Direito Civil, que ganhou força no país há certo tempo.

No Brasil, desde os anos 90 pelo menos, uma série de perspectivas metodológicas tem alimentado a progressiva perda de vinculatividade da legislação e dos conceitos jurídicos, geralmente em prol da realização de valores constitucionais, ligados a um “projeto constitucional de sociedade”4. Fruto da recepção de elementos do realismo norte-americano, da ponderação alexyana e da jurisprudência dos valores, nesse universo neoconstitucionalista a decisão de cada caso concreto deve passar pela tábua axiológica da CF/88, que é o elemento garantidor de unidade do sistema.

O tipo de controle constitucional pretendido assume novas vestes. E, com isso, os custos decisórios ganham níveis jamais conhecidos, pois nunca há uma resposta pronta no ordenamento5: sempre será necessário refletir sobre o grau de adequação ao “projeto social” traçado pela Constituição e impresso em seus valores. Não importa a clareza das leis, porque a subsunção é projetada como algo indesejado, símbolo de uma época ultrapassada e de um método jurídico mecanicista, relacionado aos “positivistas exegéticos” (cuja real existência é bastante duvidosa, segundo Haferkamp6).

Nesse cenário, as modificações legislativas, isoladamente, não são uma garantia de aplicação racional do Direito. E isso porque a concretização do projeto social da CF dá-se por uma constante instrumentalização de regras e conceitos, inclusive - ou principalmente - os de Direito Civil. Daí acharem-se afirmações no sentido de que “a atuação do legislador ordinário não substitui o projeto constitucional, nem isenta o intérprete de buscar a permanente adequação do direito civil aos valores constitucionais”7. Aqui entra, com bastante força, a funcionalização das situações jurídicas patrimoniais, típicos objetos de regulação do Direito Civil. O contrato e as leis que o regulamentam constituem, por exemplo, oportunidades para a concretização de valores da CF/88, e devem ser vistos em uma perspectiva sempre promocional.

É evidente que tal proposta tem muito para dar errado. Se a ideia é dar a um grupo – os juízes – o poder-dever de julgar todo e qualquer caso confrontando todos os seus elementos concretos com todos os valores da Constituição, a probabilidade de correção é mínima. É difícil haver racionalidade suficiente para dar conta de um processo no qual se imiscuem valores dos mais elevados em relações privadas das mais singelas. Além disso, raramente entra-se na discussão sobre os valores enquanto objeto de conhecimento (o que deveria ocorrer, já que tanto se fala sobre valores dentro de uma perspectiva aparentemente objetivista). Poucas são referências a Scheler, Hartmann ou Quintás, por exemplo, nas articulações teóricas em favor da axiologia constitucional brasileira.

Some-se a isso o fato de que desde o Direito Romano, pelo menos, são conhecidos os mecanismos de flexibilização e atenuação da rigidez em prol de certo grau de justiça concreta (para usar uma terminologia vulgar) nas relações, o que se afere pelo papel fundamental exercido pela aequitas em todo o desenvolvimento daquele Direito, especialmente com o ponto de inflexão representado pelo nascimento do sistema formular8.

Saltando alguns séculos, pelo menos desde o “segundo” Ihering procura-se uma abertura na construção conceitual do Direito e do sistema a uma visão pragmática. Foi daí que se começou a desenvolver a trajetória de contestação ao formalismo, que passaria pela livre investigação do Direito (Gény), pelo sociologismo jurídico e o Direito Livre (Ehrlich. Kantorowicz); pela Jurisprudência dos Interesses (Heck), até a Jurisprudência dos Valores. Ainda mais proximamente aos dias atuais, as críticas ao “modelo lógico do raciocínio jurídico próprio do antigo positivismo”, como a tópica, a nova retórica e a lógica informal (Toulmin, Viehweg, Perelman)9. Isso, é claro, para não mencionar os desenvolvimentos das teorias da argumentação, muitas vezes escoradas nas insuficiências de correntes como a Jurisprudência dos Valores.

Numa palavra: flexibilidade interpretativa e “abertura” não surgiram em 1988, nem existe uma única resposta “pós-1945”10. É justamente em virtude disso que alguns autores identificam no neoconstitucionalismo e no pós-positivismo, especialmente no Brasil, uma repetição de propostas já antigas de mais de século, que perpassam todas as citadas correntes e teorias11.

Essa é uma discussão muito atual da metodologia jurídica brasileira, e não cumpre aprofundá-la aqui12. Bastará dizer que, sem uma revitalização da doutrina e um retorno mínimo da dogmática, a literalidade das leis e os conceitos civilísticos têm espaço muito pequeno nos processos de tomada de decisão13. Revitalização doutrinária é, pois, condição necessária para uma mudança efetiva em dois importantes sentidos.

O primeiro sentido é o de maior vinculatividade da legislação. Do contrário, regras continuarão a ser manipuladas ao sabor de princípios de baixa densidade, inspirados em discursos de moralidade controvertidos, os quais ignoram o estado de coisas relevante gerado, em certo grau, pelo próprio Direito em sua autonomia face à moral, com o que aliás concordam positivistas e não positivistas14. Não é dizer que bastam doutrina e dogmática e que alterações legislativas sejam irrelevantes (podem ser importantes, especialmente do ponto de vista simbólico), mas o atual estado no Brasil de coisas exige que tais mudanças sejam feitas da forma mais exata possível, justamente para que a univocidade das regras crie uma espécie de “constrangimento” e para que isso facilite a retomada do respeito a certas características formais do Direito, como a observação das leis escritas e o raciocínio por subsunção15. Já há uma forte percepção nesse sentido. É em vista disso que se modificou recentemente a LINDB (especialmente o novo art. 20)16, bem como se emitiu o recentíssimo decreto 9.830, de 10 de junho de 2019, regulamentando o disposto nos arts. 20 a 30 da mesma lei de introdução para, dentre outras modificações, reforçar-se que a decisão embasada exclusivamente em “valores jurídicos abstratos” deve observar níveis mínimos de motivação contextual e levar em conta “as consequências práticas da decisão”. Ao que se crê, essa medida, apesar de ser tendencialmente importante e de robustecer o embate “principiachismo versus consequencialismo”, não afasta o problema da constitucionalização do Direito Civil17.

O segundo sentido é o de reafirmação da autonomia do Direito Civil perante a Constituição e os direitos fundamentais. Isso não quer dizer que leis como o Código Civil não se submetam hierarquicamente à CF, o que é mais do que óbvio. Quer dizer que o Direito Civil tem princípios, conceitos e categorias que se desenvolveram historicamente de forma autônoma, e que sua origem não é constitucional ou, mais explicitamente, estatal, como explica Otavio Luiz Rodrigues Jr.18. Assim, esse ramo jurídico tem sua superioridade “deonepistemológica”, para usar a expressão de Chris Thomale19. E a preservação dessa independência tem grande peso diante das tentativas de transformar o conteúdo do Direito Civil em instrumento para o alcance permanente de determinados fins social ou moralmente relevantes. Antes de se observar a relação disso com a função social do contrato, vale adiantar: no Brasil, essa função tem sido invocada de modo temerário, muito distante da mera aplicação de standards distributivos nas relações privadas. Tem sido invocada como verdadeiro mote do processo de constitucionalização total apontado acima. E é esse o seu grande risco.

 

 Relação com a MP 881/19. Suas fragilidades (especialmente quanto ao art. 421 CC/02)

A MP 881/19 apresenta uma série de defeitos relativamente ao objetivo de atenuar a permanente funcionalização social dos pactos e fortalecer a autonomia dos particulares contra o paternalismo estatal. O conteúdo das modificações é fragmentado: por um lado, não atinge a globalidade da codificação civil, limitando-se a algumas inserções de forte sabor retórico em determinados dispositivos, enquanto outros foram mantidos em sua integridade, a exemplo dos arts. 113, 187, 422, por igual integrantes do eixo solidarista (ou eticizante) do Código Civil de 2002. Por outro lado, desconsidera os inúmeros problemas vividos atualmente pela doutrina, às voltas com a constitucionalização do Direito Civil, que tem na ideia de função social uma das pontes entre a CF/88 e o Código Civil.

Isso prejudica a pretendida lufada de liberdade sobre o sistema jusprivatístico. O resultado é problemático, pois as modificações deixam margem para dúvidas, e essas dúvidas podem, contrariamente ao pretendido pelo Governo, robustecer o ambiente de insegurança nos negócios. O que, convenha-se, sempre foi um grande risco para qualquer MP que se pretenda “da liberdade econômica”, considerando-se o tônus intervencionista da atual Constituição Federal brasileira20.

Nesse mesmo sentido, segundo se crê, a tortuosidade do novo texto cria um estímulo àquelas manifestações doutrinárias de verniz constitucionalizante, numa espécie de fuga estratégica. Sendo tão truncada a redação, tão aberta e principiológica, com remissão a termos estranhos ao uso comum dos aplicadores, é bem provável que essa vagueza facilite a “subida axiológica” da interpretação. Com os prejuízos de praxe. Se é fácil perverter uma boa lei no Brasil, imagine-se o risco a que está exposta uma lei ruim.

Um bom texto de lei, um texto de lei claro e expresso, como se dizia, pode ao menos constranger os menos aferrados à observação estrita do princípio de autoridade, que supostamente deveria governar o regime de justiça constitucional na sociedade complexa, em lugar da onírica justiça substantiva21. Repita-se: em tempos de abandono da cisão entre discurso jurídico e moral, caso de parte ampla da doutrina brasileira (para a qual o direito com padrões formais mínimos aparentemente não realiza “estados de coisas que podem ser moralmente valorados”22) esse tipo de constrangimento é importante.

Diante de lei clara e bem elaborada as chances de um melhor controle institucional aumentam. No momento presente, de apreciação crítica generalizada do ativismo judicial e das interpretações elásticas, a boa legislação é arma poderosa contra uma possível vontade de poder (de que o ativismo é, aliás, um sinal23). 

Mas uma lei de termos confusos e pouco usuais no ambiente jurídico poderá introjetar mais tensão nos processos decisórios, aumentando as respostas trágicas ao velho problema da indeterminação. Corre-se ainda o risco de um messianismo salvífico: surge alguém para, diante das dificuldades textuais, adaptar a interpretação à sua própria filiação teórico-metodológica. Eis o caso. Os problemas do “novo” art. 421 saltam aos olhos. Nas últimas semanas diversos autores contribuíram para a sua revelação pormenorizada. De todo modo interessa fazer algumas colocações. Primeiramente é preciso analisar a ideia de função social e certos desvios ocorridos em seu nome.

 

Problemas da função social

Função social tornou-se uma expressão muito repetida na doutrina brasileira. Fala-se de “despatrimonialização” e de “repersonalização” das situações jurídicas, de modo a promover-se uma releitura permanente dos institutos de Direito Civil, como a propriedade e o contrato. Essa releitura é instrumentalizante24, unificada nos valores da Constituição, e se coloca sob a rubrica, justamente, da função social. Os argumentos são, em geral, welfaristas, ou seja, relacionados ao Estado de Bem-Estar Social.

A maior parte dos textos convoca a Constituição de Weimar de 1919 (sabidamente atuante sobre o Direito Privado) para, reiterando seus termos (Eigentum verpflichtet - “a propriedade obriga”, par. 153), defender que o exercício da propriedade deve obedecer a um conteúdo coletivo, e não mais ligado a um “puro individualismo”. De Weimar participou Karl Renner, o jurista responsável por um dos mais relevantes escritos do século XX sobre função social25, obra na qual, a partir de elementos do marxismo, defende que a função social de um instituto jurídico corresponde àquilo que esse instituto representa em termos de estrutura econômica. É claro que a transposição para a Constituição de Weimar não se deu no modelo previsto por Renner, mas em um formato de adstrição da propriedade a certos deveres do titular (propriedade como poder-dever)26. 

Esse modelo coletivista da efêmera experiência de Weimar, ou da Constituição Mexicana de 1917, reverberou por muitos sistemas, incluindo o brasileiro, que já na CF/1934 o adota (ao afirmar que o exercício proprietário não poderia contrariar os interesses sociais ou coletivos)27. Com o regime militar instalado em 1964 assume-se literalmente a expressão “função social” da propriedade, desde então impressa nas Constituições do país. 

Historicamente, a ideia de funcionalização social foi-se expandindo para lá dos limites do direito de propriedade, na medida em que declinava o acúmulo de riqueza com lastro na exploração de bens de raiz e crescia o processo de industrialização. Disso para a função social da empresa não tarda, nem daí para uma generalizada proposta de função social das relações econômicas, de que o contrato é, consabidamente, uma expressão28.

Consagra-se esse rumo, no Brasil, precisamente com o art. 421 do CC/02, aplicável aos contratos em geral. Ocorre que a disseminação da ideia de função social, especialmente a partir da segunda codificação, criou uma série de entraves à construção de um conteúdo jurídico para o princípio, em geral aferrado a platitudes de impossível concreção. Do solidarismo triunfante na retórica atrelada ao novo Código, tanto na propriedade quanto no contrato, não derivou, necessariamente, um cenário de maior agregação social, ou econômica (até porque o Direito não é capaz de mudar a realidade dessa forma). E os problemas começaram. Tem-se um exemplo interessante: a relação muito aceita entre as provectas limitações ao direito de propriedade, ou aos abusos nas relações contratuais (igualmente antigas) e a função social da propriedade (art. 5º, XXIII CF/88; art. 1.228, §1º CC/02) ou do contrato. Mas, limitar o exercício da propriedade é muito diferente de obrigar o proprietário a cumprir uma qualquer função social; limitar abusos no contrato é muito diferente de obrigar particulares à promoção de fins não-econômicos externos, quaisquer que sejam. Esse tipo de relação denota uma confusão conceitual que precisa ser analisada. 

Primeiramente, a noção de função social – que tem na aplicação sobre a propriedade o seu paradigma – quase nunca é estudada de forma precisa. É difícil ler referências às teorias interna e externa da função social29, e muitas vezes os autores se filiam à teoria interna, chegando mesmo a defender que o direito subjetivo de propriedade guarda, em sua própria estrutura, a função social. Quer dizer que, sem função social nem haveria o direito. Transpondo-se essa segmentação entre teoria interna e externa para o contrato (o que é diferente de falar em eficácia interna/externa do contrato), um negócio bilateral que não exerce a tal função nem seria legítimo, nem teria a tutela jurídica.

O art. 421, caput, espelha esse desvio ao afirmar que a liberdade de contratar será exercida “em razão da função social”. A expressão é perigosa (merecedora das conhecidas críticas de Antonio Junqueira de Azevedo e de outros autores) e completamente desconectada da realidade, pois ninguém contrata, como nunca contratou, nem nunca contratará, em razão de uma função social. Estranhamente, foi mantida pela MP 881/19. Essa expressão facilita a relação com argumentos de verniz constitucional, a apontar para uma ideia de função social com sentido até mesmo superior ao conteúdo pactuado. É similar ao que ocorre com a boa-fé na visão de alguns autores, para quem os antigos “deveres acessórios” ganharam uma enorme força, suficiente para integrar-se diretamente à estrutura do contrato30 ou para assumir contornos de evidente matriz publicística.

Em segundo lugar, é comum que as referências à funcionalização das situações subjetivas, como se disse, apareçam ligadas a argumentos típicos do Estado de Bem-Estar Social. Desconsidera-se, contudo, a crise dessa própria realidade, o que deveria provocar uma reflexão nova sobre aquelas ideias de crise da autonomia da vontade e crise do contrato. No Brasil, como indica Otavio Luiz Rodrigues Junior, são corriqueiras as referências a certos trabalhos (como os de Atiyah31 e Gilmore32) como se fossem obras atuais. É claro que elas têm sua relevância, mas seu manuseio precisa ser compatibilizado com as mudanças econômicas sensíveis dos anos 80-90. Há fortes argumentos no sentido de que essas obras estiveram erradas o tempo todo. Mas, no mínimo, se não forem erradas, são datadas. Não correspondem a argumentos de autoridade para tratar do fenômeno contratual contemporâneo33.

Em terceiro lugar, a questão nunca respondida: que “puro individualismo” é esse repetido a todo momento, e que permeava a doutrina e a legislação anteriores ao CC/02? Em geral fala-se do hermetismo liberal do Código Civil de 1916, contraposto ao tom de socialidade do Código atual, alinhado, nisto, às aspirações da intervencionista CF/88. Mas essa visão tem sido revisitada por parte da doutrina brasileira, a repetir o que ocorre na Alemanha, onde importantes autores (Joachim Rückert destaca-se) refutam as colocações tradicionais sobre o BGB, supostamente liberal e socialmente descomprometido. Esses preconceitos sobre o BGB, sustentados por autores como Franz Wieacker, mostram-se incompatíveis com a realidade do processo codificatório alemão e com o resultado dos trabalhos34.

Quanto ao específico caso da autonomia da vontade, recentemente a Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC) republicou, em sua seção de Memória do Direito, um texto de 1952 escrito por Francisco Clementino de San Tiago Dantas, sobre a evolução do direito contratual, no qual se encontra, dentre outras joias, o seguinte trecho:

“O princípio da autonomia da vontade, expresso na liberdade contratual e na liberdade de contratar, não foi, porém, jamais entendido e afirmado como princípio absoluto, a salvo de contrastes e limitações. Assim como nunca se concebeu o direito de propriedade como senhoria absoluta e ilimitada, afirmando-se, pelo contrário, limitações legais de ordem pública e privada aos poderes do proprietário, assim nunca se afirmou o princípio de autonomia da vontade como faculdade de contratar tudo que aprouvesse às partes, sem limites e censuras de ordem jurídica e moral”35.

Como se vê, nunca houve um ambiente de pura autonomia. San Tiago Dantas pode ser considerado um jurista insuspeito nesse aparente papel de advocatus diaboli sobre a autonomia da vontade. Em suma, se se pretende concretizar um conteúdo para a função social do contrato partindo de uma fratura entre os tempos da autonomia e o paraíso da socialidade, vai-se mal. Não existe essa quebra (a ideia de introduzir ajustes na justiça comutativa contratual, estruturando-a segundo “standards distributivos”, não é nova36). Sua postulação atende, no geral, a discursos jurídicos fatalistas, típicos de uma doutrina que necessita de justificar-se historicamente na oposição entre formalismo e substancialismo. Mais: insistir na vilania de um “oitocentismo” defensor intransigente da autonomia individual é esquecer-se de que Savigny, o fundador da metódica jurídica moderna37, elabora a sua teoria a partir de uma perspectiva relacional, e não individualista38.

Em quarto lugar, é claro que o CC/02 adota uma quantidade maior de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, como também é claro que a civilística brasileira contemporânea valorizou bastante esses tipos, com grande destaque para a função social. Mas isso não é chancela de qualidade, segurança ou melhora na decidibilidade de conflitos. Antes pelo contrário. Já se fazem notar os exageros estabelecidos em torno das cláusulas gerais e das linguagens normativas abertas (Hedemann chega com atraso ao Brasil39), que afinal são instrumentos bastante antigos. E instrumentos que, no limite, já correspondem a um certo grau de justiça concreta na vida de relação (certo juízo moral sobre tais relações)40.

Em um país que vai a muito custo solidificando suas instituições decisórias, a vagueza normativa não é uma opção boa, tanto mais em termos de Direito Civil. Veja-se o caso da boa-fé. Cada vez mais se estabelece um consenso em favor de sua aplicação contida e fundamentada, contra os abusos vistos nos últimos anos. Republicada a obra basilar de Judith Martins-Costa com um apelo à restrição do princípio41, a doutrina brasileira tem um argumento forte nessa direção. E a esse movimento de revisitação crítica a função social não escapa. Mesmo que seja acatada a tese de que os deveres decorrentes da boa-fé ou as condutas alinhadas à função social não podem ser levantados pelas partes no uso de sua autonomia negocial42, é evidente que existe um movimento geral de contenção de excessos.

Em quinto lugar, e muito relacionado ao ponto anterior, a cláusula de função social do art. 421 não garante, no limite, um ambiente de pleno solidarismo contratual, como se poderia pretender. Não é o que está escrito no artigo. Ele refere “função social”, mas não diz que ela só pode ou deve ser obtida por meio de uma visão solidarista do contrato. Um autor pode perfeitamente perceber que o Welfare State é substituído por uma conjuntura que atinge fortemente o Direito Privado, e que o tipo de garantia institucional extraído da função social não se conecta com a lógica de distribuição defendida no Brasil relativamente aos contratos entre particulares.

Expansão do mercado, economia do compartilhamento, tecnologia, redução dos custos de transação, inteligência artificial (ela vai matar a democracia?, perguntam, em seu último livro, Jean-François Copé e Laurent Alexandre43), enfim, uma soma de fatores sabidamente muda a regulação dos espaços privatísticos e dos negócios. Percebendo tal coisa, e estudando o art. 421, pode dar interpretação diversa, no sentido de que a função social seja obtida justamente por um pouco menos de solidarismo. Pode-se opor uma série de objeções a esse entendimento, inclusive de ordem jurídico-filosófica, mas não se pode dizer que o art. 421 o veda expressamente.

Note-se que isso não significa defender análise econômica do direito ou teorias afins, mas alertar em um outro sentido; um sentido negativo. No Brasil, não é mais necessário articular defesas sobre teoria contratual com base na desigualdade econômica44 e em ideais de promoção da função social, porque esse discurso é bastante forte há um bom tempo e já se conectou demais, como se disse e se repetirá a seguir, ao problema da constitucionalização do Direito Civil. Em outros termos, elementos como “desigualdade econômica” e discursos sobre a necessidade de atualizar a teoria contratual aos “novos tempos” não são novos no cenário brasileiro. A realidade do país, ao contrário de outras tradições, exige agora mais vinculatividade de regras e respeito às formas em detrimento das substâncias, justamente porque se chegou longe demais com o discurso promocional-valorativo. Defender a liberdade contratual no Brasil contra o exagerado princípio da função social, por exemplo, não significa contrapor-se a um partidário dos Critical Legal Studies, porque tal defesa não corresponde à adesão a uma corrente teórica, ao capitalismo opressor ou ao mercado. Pode significar simplesmente aderir a uma agenda que procura critérios contra o avanço de teorias que, afinal, abrem mão de critérios. Trata-se de uma união de esforços, enfim, em busca de alguma racionalidade.

Em sexto lugar, um outro elemento tensivo da reflexão jurídica brasileira: os “fins sociais” da lei, impressos no art. 5º LINDB. É preciso ter cuidado com o tipo de relação que se engendra a partir dessa regra. Além de não fixar juízos de tipo constitucional, é preciso ter em conta que sua formulação original obedece a uma tradição de recepção de teorias jurídicas45 típicas do eixo antiformalista alemão da transição para o século XX (como a resultante na Jurisprudência dos Interesses), bem ao gosto dos juristas alinhados ao regime estado-novista. Mas, por tudo o que se afirmou, o Direito já cumpre, com base em critérios mínimos de adstrição às regras (questão de grau de formalismo), um estado de coisas socialmente relevante. Deixando de lado essa crítica de fundo, pode-se dizer que (i) o fim social da lei, enquanto critério interpretativo, não clareia a noção de função social do contrato impressa no art. 421 do CC/02 e (ii) a própria LINDB tem recebido inserções reequilibrantes no sentido de se retirar, nos processos decisórios, o peso dos valores abstratos e investir em critérios de maior concretude, o que alimenta um novo espaço de discussões, ainda em aberto (novamente refira-se o decreto 9.830, de 10 de junho de 2019).

Em sétimo lugar, finalmente, há a conexão entre função social do contrato e constitucionalização do Direito Privado. O influxo da intervencionista CF/88 é que daria o tom funcionalizante aos negócios, extirpando para sempre a mácula do individualismo. É o que já se disse no começo do texto, a propósito da constitucionalização relacionada à funcionalização dos institutos jurídicos de Direito Civil. Essa implicação é perigosa, na medida em que remete a observação de textos de lei que referem a função social (como o art. 421 do CC/02) para os direitos fundamentais e, deles, para os valores da CF. Não haveria referenciais internos, pois, para a aplicação do preceito: sua incidência exigiria a inclusão de elementos axiológicos vindos diretamente da Constituição, pois qualquer tipo de funcionalização social já está mesmo ligada ao projeto constitucional como um todo.  

Paralelamente, a insistente conexão feita por setores da doutrina brasileira entre a complexidade contemporânea (“direito pós-moderno”) e a necessidade de uma resposta paternalista de tipo controle-permanente-axiológico-constitucional já se mostra falha, pois, no limite, (i) garante uma margem enorme de discricionariedade aos julgadores, afinal, crer na necessidade permanente da interpretação constitucional sobre regras do Código Civil “é uma maneira de simplesmente reconhecer que, no fundo, juízes sempre criam novas regras”46 e (ii) corrói o Direito Civil, autônomo em relação aos “valores” da Constituição e ao papel por ela desempenhado. Essa situação cria um ambiente de insegurança justamente onde certeza é mais exigida, como o contrato. Estabelece-se um tipo de controle totalitário, que termina por elevar os custos contratuais47 e, enfim, por piorar a vida de relação.

Todos esses fatores demonstram o problema sotoposto na expressão função social diante dos problemas jurídicos tipicamente brasileiros. O só fato de ser uma cláusula geral já seria dificultoso. A cláusula de função social é algo ainda mais controverso. O art. 421, na formulação original, é ruim e não atende à boa técnica legislativa. O problema é que, neste caso curioso, a maior confusão ainda vem da doutrina (embora haja trabalhos importantes de refutação da pertinência do solidarismo contratual48), pois a jurisprudência já tem atenuado os excessos do preceito. E é na aparente incompreensão desse estado de coisas que escorrega a MP 881/19.

 

A MP 881/19 e o art. 421 CC/02 

Por mais que sejam legítimas as críticas feitas no Brasil ao ativismo judicial (algo muito grave) no caso da função social do contrato está-se diante da curiosa situação em que o Judiciário veio, justamente, atenuar os exageros da própria codificação. O maior entusiasmo visto hoje em relação à função social – prejudicialmente à força vinculante dos pactos – é coisa de parte da doutrina, não da jurisprudência, que nos últimos anos foi reduzindo o furor inicial com o art. 421 do CC/02.

Diversos julgados, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, ainda que não sejam dotados de grande precisão e clareza, valorizam, nas relações paritárias, a força do contrato, para apenas eventualmente referir a limitação pela função social. Isso atesta, quanto ao mais, a excepcionalidade das intervenções externas no contrato, imprimindo parcial inutilidade ao parágrafo único do novo art. 421 do CC/02.

De certo modo, a lei manda que a liberdade de contratar seja exercida “em razão da função social”, o que implica, em tese, que todo contrato firmado em território nacional seja pautado por tal função. Mas os casos levados aos tribunais redundam em um tipo muito mais restrito de controle: o Judiciário aplica em geral a noção limitativa externa de função social. Não condiciona, assim, a liberdade contratual (ou seja, a de articulação do programa negocial) ao constante exercício da função.  

Assim, enquanto parcela da doutrina ainda acredita numa função social utópica e em noções frágeis de solidarismo contratual pautado no processo de constitucionalização do Direito Civil, as Cortes surgem mais razoáveis e contornam o problema do art. 421 utilizando, em parte, seus termos, escapando da criticada fórmula “em razão de”. Pode-se dizer que o controle esperado a partir do art. 421 não é cumprido à risca. E nem poderia ser, a menos que se concordasse em sacrificar a autonomia das pessoas no altar-mor da socialidade.

O Governo, contudo, ignorando essa disposição das coisas, procura sanear a insegurança jurídico-negocial do país mudando um artigo (421) cuja aplicação já não é tão problemática. O alvo não é o melhor. Há uma sorte de outros pontos do ordenamento privatístico cuja reforma seria necessária para dar conta de uma verdadeira “liberalização” ou para bloquear o avanço da publicização do Direito Civil e de seus institutos (a considerar, reitere-se, que esse é o objetivo do Ministério, por sua Secretaria de Desburocratização).

Na realidade, a MP 881/19 apenas rebusca um texto já muito delicado, pelos seguintes motivos:

i) A remissão aos parâmetros da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (caput do “novo” art. 421) estabelece uma dificuldade interpretativa, porque as diretrizes dessa Declaração são genéricas, muitas de cariz principiológico e aferradas a elementos da economia, e seu status é controverso49. Se a proposta era fugir das cláusulas gerais, só houve piora. Antes havia o problema da vagueza da “função social”. Agora há vagueza em dobro, pois ao lado da função social, já no caput do art. 421, está o acervo de regras da Declaração. No Judiciário será muito difícil cruzar todos esses dados para exercer um qualquer controle.

ii) A excepcionalidade das intervenções sobre o contrato, aposta no §1º do art. 421 pela MP, é muito trivial, pois esse caráter de exceção é consenso entre os juristas há um bom tempo. Quem as não vê como exceção precisa articular uma defesa de um tipo de ordem política virtualmente abandonada há muitas décadas, inclusive em países nada democráticos.

iii) A ordem de que seja observado o “princípio da mínima intervenção do Estado” é frágil, porque não há um padrão linguístico facilmente assimilável pelos órgãos decisórios sobre o que seja esse princípio e, principalmente, como operacionalizá-lo. Para quem estuda os problemas metodológicos do Direito Civil brasileiro, é bastante razoável que se defenda maior independência entre relações privadas (contrato, por exemplo) e promoção de valores ou objetivos públicos, por assim dizer. Há todo um caminho a percorrer nesse sentido, todo um debate acadêmico. Mas a tentativa de reduzir esse debate a um texto de lei não é saudável. Leis exigem técnica, não a proclamação de boas ideias. Se realmente esse dispositivo tiver alguma aplicabilidade, o que é duvidoso, acabará invocado de forma temerária.

iv) A pretendida mínima intervenção do Estado “por qualquer de seus poderes” é de boa intenção, mas abre margem a muitas confusões, e incide na crítica levantada no ponto anterior. Por mais que seja interessante a tentativa de preservação da autonomia privada como um dos elementos de compreensão do próprio Direito Civil, aparentemente tem-se aí um parágrafo de um artigo do Código Civil impondo limites ao legislador.

Sinteticamente, se se pretendia atenuar a ideia de função social do contrato, não poderia ter sido preservado o caput e a péssima expressão “em razão da”. A modificação feita é realmente falha, e o novo art. 421 contém muitas palavras inúteis. O fim intentado pelo Governo seria mais eficazmente alcançado com uma supressão do artigo todo, que afinal nunca trouxe grandes soluções, considerando-se a autonomização dos mecanismos corretivos do equilíbrio contratual e, externamente, de tutela dos interesses eventualmente lesados pela relação, sejam tais interesses particulares, sejam de grupos.

 

A MP 881/19 e o sistema "solidarista"

O que se disse no item antecedente representa apenas uma face da questão. Na própria mudança do art. 421 houve um deslize, é claro, mas o que espanta é a ausência de modificação em outros tantos setores responsáveis, bem mais acentuadamente, pelo estado de insegurança nos negócios.

O propósito, aparentemente, é reforçar a segurança apenas nas relações paritárias, e não houve efetividade nisso. Seja porque, como se disse, a alteração do art. 421 é defeituosa, seja porque há desvios redacionais no novo art. 423 (cuja errônea redação do caput foi mantida), seja porque há abertura de linguagem nos arts. 480-A e 480-B50, seja porque a MP 881/19 se esqueceu de lidar com outros tantos dispositivos principiológicos, como os relativos à boa-fé. Ao início deste texto mencionaram-se os artigos 113, 187 e 422 do CC/02. São apenas exemplos do que se chamou de eixo eticizante do CC/02, comumente relacionado à tão conhecida quanto controversa tríade “socialidade, eticidade e operabilidade”, a qual conferiu uma assinatura ideológica à segunda codificação. É claro que há diferenças entre função social e boa-fé, a destacar-se a vocação de correção institucional da primeira (com todos os problemas descritos acima) versus a vocação de reequilíbrio interno da segunda (com os exageros a evitar)51. Mas representam, ambas, um mesmo eixo.

E um movimento de reforma, de anúncio corajoso e eivado de um espírito dito liberal, deveria bater-se com esse eixo, modificando-o por inteiro, se pretende ver mudança real. Poderia, por exemplo, tomar a peito aquilo que a doutrina já considera como limitações ao emprego da boa-fé objetiva, dando uma conformação mais precisa aos artigos correspondentes. Poderia dar maior precisão aos limites nos quais as partes podem agir para afastar certos “deveres decorrentes” – para quem acredita que podem.

Essa é uma possibilidade apenas, a qual só seria útil se realizada com precisão. O Governo precisa atenuar o desejo de “subir’ principiologicamente suas intervenções nas leis civis, porque isso é contraproducente, e não se alinha à forma de redigir um Código (goste-se ou não desse fato). Uma vez que a CF/88 apresenta uma tonalidade intervencionista, o jogo com princípios nela contidos, ainda que “liberais” (livre iniciativa, por exemplo, do art. 170) apenas facilita a defesa de um processo decisório “constitucionalmente adequado” em face de qualquer contrato. Um juiz, diante da redação nova do art. 421, terá de cruzar mais dados complexos, o que manda para longe a ideia de prospecção nos negócios.

Em resumo, além de não ter projetado uma mudança realmente ambiciosa quanto à função social do contrato, a MP 881/19 cria um ambiente mais inseguro. Hoje nem os princípios constitucionais têm sua aplicação garantida com a maré montante axiológica, que insiste em ler mais do que está escrito, descobrindo valores escondidos na CF. O investimento em princípios e cláusulas gerais é, atualmente, pouco recomendável.

Sim, a nova lei diz o óbvio – que o contrato deve ser respeitado e seus termos valem e vinculam – e isso deveria ser comemorado. O problema é que no Brasil, por tudo quanto se disse, importa como são escritas as leis, pois, em tempos de “dimensão ecológica da dignidade humana” (recente decisão do STJ), uma qualquer fissura normativa é, sim, motivo para preocupação.

 

Conclusão

Em sua tendência geral para uma atenuação da interferência sobre os contratos e da função social, a MP 881/19 peca pela atecnia. Quer derrubar os excessos das cláusulas gerais com mais vagueza, adotando principiologia econômica, o que não soa bem. Inverte-se o sinal, e dessa confusão há risco de que o subjetivismo decisório recrudesça. Isso até seria de algum modo perdoável se o ambiente geral do Direito Civil brasileiro fosse de prudência, clareza metodológica e segurança. Como não é, acredita-se que uma reestruturação dessa ordem somente seja positiva caso feita de forma cuidadosa, com atenção a todas as porosidades que o ordenamento venha a oferecer. Tampouco as alterações recentes na LINDB ajudam, porque sobre elas há ainda pouco consenso.

Espera-se que, atento às críticas específicas que parcela da doutrina tem feito, sejam acatadas as sugestões para aperfeiçoamento do texto. Esse será um primeiro passo. Mas tal revitalização só se consolidará com a racionalização da metodologia e uma reflexão crítica sobre o tipo de controle que se deseja ver aplicado sobre as relações privadas no país. A luta é árdua rumo ao fim da instrumentalização do Direito Civil e da subversão de seus conceitos, e são louváveis as iniciativas do Governo para a retomada do sentido genuíno desse ramo jurídico e da reafirmação de sua verdadeira fonte de autoridade.

Há realmente muito para ser modificado, de modo a restabelecer uma cultura de vinculatividade e de respeito ao Direito Civil como núcleo de regramento seguro e técnico da vida de relação do homem comum. E é bom que essas mudanças, no que cabe ao plano legislativo, ocorram rapidamente. Ma non troppo.

________________

1 Depois do envio do texto para publicação, o autor deu-se conta da existência de um outro artigo, também publicado no portal Migalhas, e igualmente sobre a MP 881/2019, no qual os autores se utilizam da expressão Allegro ma non troppo, já em seu título. Assim sendo, solicitou a devolução do texto e inseriu esta nota para acusar a coincidência, a qual, a seu ver, apenas demonstra o acerto no uso da frase relativa à “apressada” MP, em certos pontos. Recomenda-se a leitura do outro artigo referido: BECKER, Daniel; MOREIRA, Amanda. Para a liberdade econômica nos contratos, allegro ma non troppo. Migalhas, 24/05/2019. Disponível aqui.

2 É o teor do art. 2º da MP 881/2019:

“São princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória:

I - a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas;

II - a presunção de boa-fé do particular; e

III - a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas”.

3 Medida Provisória n. 759, de 2016.

4 Referindo tal projeto, entre outros autores, Cf. SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. in SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (coord.). Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016.

5 Como diz Fernando Leal, nesse universo todo caso é um caso difícil. Cf. LEAL, Fernando. Seis objeções ao direito civil constitucional. Direitos Fundamentais & Justiça, ano 9, n. 33, p. 123-165, out./dez. 2015. cit. p. 132.

6 Cf. Positivism as a Concept of Legal Historians and Philosophers, Juridica International, v. XVII, p. 100-107, 2010

7 SCHREIBER, Anderson. Op. cit. p. 14.

8 Cf. RICCOBONO, Salvatore. Aequitas. Nuovo Digesto Italiano, vol. I, p. 210-215, 1937.

9 FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do Direito: temas e desafios. Trad. por Candice Premaor Gullo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 43.

10 Nesse sentido, Cf. DIMOULIS, Dimitri. Neoconstituionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 213-225.

11 HORBACH, Carlos Bastide. A nova roupa do direito constitucional: neoconstitucionalismo, pós-positivismo e outros modismos. Revista dos Tribunais, vol. 859, p. 81-91, mai. 2007.

12 Uma crítica geral a esse problema foi feita em ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Crise do Direito Civil encontra focos de resistência - parte 1. Migalhas, 23/04/2018. Disponível aqui.

13 Nesse sentido, Cf. REIS, Thiago. Dogmática e incerteza normativa: crítica ao substancialismo jurídico do direito civil-constitucional. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 11, ano 4, p. 213-238, abr./jun. 2017.

14 Cf. LEAL, Fernando. Seis objeções...cit. p. 157.

15 LEAL, Fernando. Seis objeções...cit. p. 157.

16 Lei 13.655/18.

17 Comentários específicos sobre esse Decreto serão feitos em coluna posterior, aqui no portal Migalhas.

18 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil contemporâneo: estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 332-333.

19 Cuius Regnum eius Iudicium: emancipando o discurso jurídico privado em face dos direitos humanos. Tradução por Patrícia Cândido Alves Ferreira. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 13, ano 4, p. 391-418, out./dez. 2017.

20 Como bem recorda, em comentário sobre a MP, COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Notas sobre certos aspectos da MP da "liberdade econômica". 

21 Sobre isso sugere-se um interessante texto de José Guilherme Merquior: Direito e Justiça, O Estado de S. Paulo, 24/10/1982, reunido em MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. Em próxima coluna esse artigo de Merquior será objeto de comentários do autor do presente texto.

22 LEAL, Fernando. Seis objeções...cit. p. 157.

23 Cf. MAUS, Ingeborg. Justiz als gesellschaftliches Über-Ich – Zur Position der Rechtsprechung in der Demokratie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2018.

24 REIS, Thiago. Op. cit.

25 RENNER, Karl. Die Rechtsinstitute des Privatrechts und ihre soziale Funktion: ein Beitrag zur Kritik des bürgerlichen Rechts. Tubingen: Mohr, 1929. A obra foi lançada primeiramente em 1904 sob um pseudônimo, tendo como foco a propriedade (Die soziale Funktion der Rechtsinstitute, besonders des Eigentums). Muito consultada atualmente é a terceira edição, estampada em 1965.

26 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social do contrato: conceito e critérios de aplicação. Revista do CEJ, a. 42, n. 168, p. 197-214, out./dez. 2005. cit. p. 199.

27 CF/1934, art. 113, 17: “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior”.

28 Esse percurso está bem desenhado em SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista dos Tribunais, vol. 93, n. 823, p. 67-86, 2004.

29 Cf., com estudo comparatístico pormenorizado, RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Propriedade e função social: exame crítico de um caso de “constitucionalização” do Direito Civil. in VERA-CRUZ PINTO, Eduardo; SOUSA, Marcelo Rebelo de;                 QUADROS, Fausto de; OTERO, Paulo (org.). Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda: Volume 3 – Direito Constitucional e Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, vol. 3. p. 61-90. Sobre as duas correntes teóricas a respeito da função social da propriedade, diz o autor: “a) Propriedade como função social. Inspirada na teoria de Leon Duguit da propriedade-função e da propriedade-dever, essa concepção se funda na teoria interna da propriedade. Seus limites e condicionamentos integrariam o suporte fático de seu conteúdo. A função social seria coexistencial à propriedade, que deixaria de ser um mero direito para se constituir em direito-função. b) Propriedade com função social. Seguindo a teoria externa, a propriedade seria condicionada ou limitada pela função social. O suporte fático do direito de propriedade seria mais estreito e ter-se-ia de resolver o problema da colisão entre o direito de propriedade (reconduzido ao princípio da ordem econômica da propriedade privada) e a função social (ela mesma um princípio).”

30 Ver um aprofundamento dessa discussão em COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Op. cit.

31 The rise and fall of freedom of contract. Oxford: Claredon Press, 1985.

32 The death of contract. Ohio: Ohio State University, 1974.

33 Ver, sobre isso, RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil contemporâneo: estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 44 ss.

34 Sobre esses trabalhos, V. o estudo pormenorizado de RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. O Direito, vol. 147, n. I, p. 45-110, 2015, cit. p. 51 ss.

35 DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. Dirigismo – Imprevisão. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 6, ano 3, p. 261-276, jan./mar. 2016.

36 THOMALE, Chris. Cuius Regnum eius Iudicium...cit. p. 395.

37 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil contemporâneo...cit. p. 2.

38 O alerta é de REIS, Thiago. Op cit.

39 Faz-se referência, naturalmente, a Justus Wilhelm Hedemann, e seu conhecido livro Die Flucht in die Generalklauseln (a fuga para as cláusulas gerais).

40 Cf. THOMALE, Chris. Op. cit. p. 415.

41 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

42 Mais uma vez COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Op. cit. Com apoio nos desenvolvimentos recentes da doutrina e jurisprudência alemãs no mesmo sentido.

43 A recomendação desse interessante livro deve-a o autor ao Professor Dr. Gustavo Cerqueira, da Université de Reims Champagne-Ardenne, a quem se reiteram os cumprimentos.

44 Parece ser a tese de SILVA FILHO, Osny da. Contract as inequality. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 12, n. 4, p. 89-107, jul./set. 2017.

45 Para uma demonstração desse fenômeno de recepção, Cf. HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Trad. por João Carlos Mettlach Pinter. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, n.3, p. 277-292, abr./jun. 2016. cit. p. 284

46 LEAL, Fernando. Seis objeções...cit. p. 154.

47 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito (Lisboa), vol. 143, p. 43-66, 2011.

48 A esse respeito, Cf. TIMM, Luciano Benetti. Direito contratual brasileiro: críticas e alternativas ao solidarismo jurídico. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2015.

49 “Há aqui uma contradição com os objetivos da própria medida provisória: se a pretensão era a de fugir das cláusulas gerais e dos princípios, faz-se aqui um recurso direto a tais elementos, o que só ampliará o nível de indeterminação e de incerteza jurídicas” (LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 1). 

50 Crítica bem formulada por LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 2). 

51 Novamente SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit.

________________

*Bruno De Ávila Borgarelli é doutorando em Direito Civil pela USP. Coordenador científico da YK Editora. Professor convidado da Escola Superior da Advocacia da OAB-SP. Coautor da coluna Registralhas.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Doenças que têm direito ao LOAS: Quais são e como solicitar

2/12/2024

A transição do PIS e Cofins para a CBS: O que você precisa saber?

1/12/2024

Oportunidades tributárias para pessoas físicas

3/12/2024

Art. 166 do CTN, um dispositivo inútil

3/12/2024

Poder de perdoar: Biden, Bolsonaro e limites do indulto presidencial

3/12/2024