Migalhas de Peso

Da ilegalidade das multas por recusa ao bafômetro com fundamento na lei seca 11.705/08

A principal discussão, talvez a mais tormentosa e a que, com toda a certeza, causa o maior número de questionamentos dentro e fora do judiciário, é a recusa ao bafômetro.

12/4/2019

Em junho de 2018 a lei 11.705/08, Lei Seca, que modificou o Código de Trânsito Brasileiro, fez dez anos. Nesse período foi alvo de muitos elogios, em vista da contribuição para a diminuição do número de acidentes de trânsito e trouxe a reboque uma série de polêmicas, face a algumas impropriedades contidas em seu texto.

A principal discussão, talvez a mais tormentosa e a que, com toda a certeza, causa o maior número de questionamentos dentro e fora do Judiciário, é a recusa ao bafômetro.

Entre as modificações trazidas ao CTB pela lei 11.705/08 está a inclusão do  § 3º no art. 277 que  mandava aplicar  as penas do art. 165 (embriaguez ao volante) ao condutor que se negasse ao bafômetro.

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela lei 11.275, de 2006)

§ 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.(Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)

Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:            (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

        Infração - gravíssima; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

        Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;           (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

               Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Observa-se nos tribunais estaduais,  uma tendência a anulação dos autos de infração lavrados com fundamento no § 3º do art. 277do CTB,  quando após a recusa ao bafômetro, o agente de trânsito não tivesse se utilizado outros meios de prova para atestar o estado de embriaguez do condutor reticente.

Recentemente o STJ se manifestou sobre o tema, por ocasião do julgamento do REsp. 1.677.380-RS, opinando noutra direção, consignando ser válido o auto de infração lavrado por recusa ao bafômetro – lavrado sob a vigência da lei 11.705/08 - ainda que o agente de trânsito não tenha se  utilizado de outros meios de prova para atestar a embriaguez do motorista.

O STJ entendeu que a recusa ao bafômetro, § 3º do art. 277, e a embriaguez ao volante, art. 165, seriam infrações autônomas e dissociadas uma da outra, motivo pelo qual não haveria necessidade de comprovação da embriaguez para higidez do auto de infração motivado pela recusa ao bafômetro:

“[...]

A controvérsia sub examine versa sobre a consequência administrativa da recusa do condutor de veículo automotor a se submeter a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa.

2. O Tribunal recorrido entendeu que a simples negativa de realização do teste de alcoolemia, etilômetro ou bafômetro, sem outros meios de prova da embriaguez do motorista, não é suficiente para configurar a automática infração de trânsito.

3. A recorrente sustenta que esse entendimento do Tribunal local viola os arts. 277, § 3º e 165 da Lei 9.503/97, pois a legislação prevê a aplicação das penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. s do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) independentemente da comprovação da embriaguez, bastando o condutor se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput do art. 277.

4. O art. 165 do CTB prevê sanções e medidas administrativas para quem dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

5. Já o art. 277, § 3º, na redação dada pela Lei 11.705/08, determina a aplicação das mesmas penalidades e restrições administrativas do art. 165 ao condutor que se recusar a se submeter a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

6. Interpretação sistemática dos referidos dispositivos permite concluir que o CTB instituiu duas infrações autônomas, embora com mesmo apenamento: (i) dirigir embriagado; (ii) recusar-se o condutor a se submeter a procedimentos que permitam aos agentes de trânsito apurar seu estado.

[...]” Grifos nossos

Assim, de acordo com a citada decisão, mesmo sob a vigência da lei 11.705/08, a mera recusa ao bafômetro já seria uma infração  de trânsito autônoma e, por esse motivo, não haveria necessidade de prova  de embriaguez do motorista que se negasse ao etilômetro para validade da multa aplicada com base no § 3º do art. 277 do CTB (lei 11.705/08).

Com as devidas vênias, tentaremos demonstrar nesse artigo que, sob a vigência da lei 11.705/08,  tanto o posicionamento de alguns tribunais dos estados de só considerar válidos os autos de infração por recusa ao bafômetro, caso o agente tenha se utilizado de outros meios para detectar o estado de embriaguez do condutor, como o recente entendimento emitido pelo STJ através  do REsp 1.677.380-RS, segundo o qual a recusa ao bafômetro, artigo 277 § 3º, e a embriaguez ao volante, art. 165, seriam infrações autônomas, dissociadas uma da outra, apenas dividindo o apenamento,  estão equivocados.

Da inexistência de infração de trânsito contida no art. 277, § 3º do CTB

O § 3º do art. 277 do  CTB não é nem nunca foi   dispositivo legal apto a produzir efeito sancionatório, quanto mais a ensejar a lavratura de auto de infração. 

Indigitado dispositivo legal encontra-se no Capítulo XVII do CTB, que vai do artigo 269 ao 279 e que descreve as MEDIDAS ADMINISTRATIVAS existentes no Código.

Já o art. 165 do CTB está localizado no Capítulo XV, que compreende os arts. 161 a 255, e se ocupa das INFRAÇÕES DE TRÂNSITO contidas no Código.

Infrações de trânsito, portanto,  são todas aquelas capituladas no Capítulo XV do CBT, nas legislações complementares ou nas resoluções no Contran e que sujeitam os infratores às punições previstas no Capítulo XVI (Das Penalidades) e, por vezes, também às medidas administrativas existentes no Capítulo XVII (Das Medidas Administrativas) do CTB.

A prática de uma infração de trânsito, conduta contrária aos tipos infracionais existentes no CTB, sujeitará o condutor a uma penalidade (art. 256), que pode ser: advertência, multa, suspensão do direito de dirigir, apreensão do veículo, cassação da CNH e frequência obrigatória em curso de reciclagem.

Além das penalidades acima citadas, o  condutor que comete uma infração de trânsito pode ainda sofrer a aplicação de uma das medidas administrativas existentes no CBT (art. 269), que são: retenção do veículo, remoção do veículo, recolhimento da CNH, recolhimento no certificado de registro, recolhimento do certificado de licenciamento anual, transbordo do excesso de carga, realização de teste de alcoolemia ou perícia de substância entorpecente ou que determine dependência física ou química, recolhimento de animais que se encontrem soltos ou nas vias de circulação, realização de exame de aptidão física ou mental, de legislação, de prática de primeiros socorros e de direção veicular.

Nítida, portanto,  a existência de diferença existente entre os institutos acima mencionados.  Medidas administrativas e infrações de trânsito, além de não se confundirem, ocupam locais distintos no CTB.

A infração administrativa estará  materializada  quando a conduta humana atingir o  núcleo contido no artigo que descreve o tipo infracional previsto em lei.

Já a medida administrativa é um ato que decorre sempre da prática anterior de uma infração administrativa.

Não é possível, nesse rumo de ideias, estabelecer a aplicação de medida administrativa, sem que antes tenha se verificado seu antecedente lógico, uma infração administrativa.

Dito de outro modo, a  medida administrativa não encontra similitudes com  a infração administrativa e não pode ser considerada um tipo infracional isolado com o fim de legitimar a aplicação de uma penalidade.

Pensar o contrário, significaria violar o princípio da legalidade.

Perceba-se ainda, a mesma lei foi responsável por acondicionar o art. 165 no Capítulo relativo às Infrações de trânsito (Capítulo XV) e o § 3º do art. 277 no Capítulo onde estão descritas as Medidas Administrativas (Capítulo XVII), motivo pelo qual eventual alegação de antinomia não poderia prosperar.

E isso, sem que se considere que a redação originária do CTB (lei 9.503/97) já previa expressamente a realização de teste de dosagem de alcoolemia como uma MEDIDA ADMINISTRATIVA e não como uma INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA (art. 269, IX).

Sobre o tema, os professores LUIS FLÁVIO GOMES e LEONARDO SCHMITT DE BEMassim discorrem:

“Sabe-se que é uma faculdade do condutor do veículo automotor se submeter à realização do exame de sangue ou do teste do etilômetro ou bafômetro. A submissão decorre de sua livre vontade, ao passo que o § 3º do art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro impõe sua realização compulsória sob pena de nova incidência das penalidades previstas no art. 165. Este preceito fere portanto, o princípio constitucional à não autoincriminação.

[...]

Esse parágrafo tem previsão no capítulo das medidas administrativas, ou seja, ELE NÃO REVESTE NATUREZA DE INFRAÇÃO DA ADMINISTRATIVA. Logo, sua incidência com o fim sancionador se revela abusiva ao princípio da legalidade, aplicável por analogia, pois NÃO HÁ INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA SEM PRÉVIA COMINAÇÃO LEGAL. Destaques nossos

Sendo assim, num primeiro enfoque, sob pena de violação  ao princípio da legalidade, há de se reconhecer que o § 3º do art. 277 não concebe uma infração administrativa, vez que não se encontra   no capítulo das infrações administrativas do CTB, motivo pelo qual carece  de caráter sancionador.

Dessa forma, considerando-se o critério topográfico de localização do dispositivo evidenciado e a consequente omissão legislativa no tocante a existência de um tipo infracional com os comandos contidos no §3º do art. 277 do Capítulo XV do CBT (fato que só veio a ocorrer através da  lei 13.281, de 13 de maio de 2016 quando criou o art. 165-A no CBT),  resta evidente que, sob a vigência da lei 11.705 de 2008,  a conduta de se negar ao bafômetro não podia ser considerada uma infração de trânsito. 

Se o administrador público deve agir nos estritos limites da lei, é certo que a lavratura de um auto de infração tendo como fundamento uma ordem não tipificada  no capítulo das infrações administrativas do CTB, à toda evidência, viola o princípio da legalidade.

Nesse sentido, num primeiro momento, é possível afirmar que  todos os autos de infração que tenham feito menção a negativa ao bafômetro, lavrados com fundamento no § 3º do art. 277,  padecem  de vício insanável de forma e do atributo da tipicidade, sendo, portanto, nulos.

Mas não é só!

Como o  §3º do art. 277 do CTB não descreve uma infração de trânsito e não se reveste de natureza de infração administrativa, faltam-lhe os demais elementos aptos e necessários à regular tipificação da infração administrativa e ao aperfeiçoamento do auto de infração, a exemplo do código de infração apto a descrever o tipo infracional.

Senão vejamos.

Da inexistência dos elementos caracterizadores da infração administrativa – ausência de código de infração para o § 3º do artigo 277 CBT

A atividade administrativa é regida pelo princípio da legalidade estrita, o que faz dos agentes públicos verdadeiros escravos da lei, já que somente podem agir diante de norma jurídica válida, vigente e juridicamente eficaz.

Assim, ao preencher o formulário do auto de infração, o agente deverá, sob pena de nulidade por vício de forma do ato, descrever corretamente, entre outros elementos,  o código da infração que será tipificada no documento.

Nesse sentido, criou-se uma impossibilidade, pois como o § 3º do artigo 277 não está localizado no Capítulo XV do CBT – capítulo relativo às infrações de trânsito – nunca houve um código de infração próprio e apto a descrever essa conduta.

De outra maneira não poderia ser, pois o § 3º do artigo 277 está, em verdade, contido no capítulo das MEDIDAS ADMINISTRATIVAS,  não tem hoje e não  teve no passado natureza jurídica de INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA.

Essa situação foi também detalhada pelos professores LUIS FLÁVIO GOMES e LEONARDO SCHMITT DE BEM, op. cit., p. 85:

“Ademais, nesse interim, por não ser considerada infração administrativa, na prática quando a confecção pelo policial da autuação, não haverá numeração equivalente para compor o respectivo campo no preenchimento do auto de infração. Isso porque não existe nenhuma infração por não se submeter ao exame solicitado para comprovar a influência alcoólica. É evidente que o policial não poderá  preencher o número correspondente à infração do art. 165 do CTB, pois do contrário configurará ofensa ao princípio do ne bis in idem.  Destaques nossos

Assim, em situações nas quais os condutores se negavam a se submeter ao teste do bafômetro (§ 3º do art. 277 do CTB), os agentes de trânsito, ante a ausência de um código infracional que descrevesse essa conduta, utilizavam o código de infração  do artigo 165 do CBT (código 516-91, embriaguez ao volante).

Tal fato causou uma série de invalidações de autos de infração por vício formal, o que fez com que o DENATRAN tentasse reparar as falhas cometidas até então através da edição da Portaria nº 217 de 04 de novembro de 2014.

A portaria DENATRAN 217/14 foi editada com dois objetivos:

i) Criar um código de infração para a conduta descrita no parágrafo 3º do art. 277, do capítulo das medidas administrativas do CTB (o código 757-90);

ii) Dar ares de legalidade aos autos de infração lavrados pelos agentes públicos com fundamento no § 3º do art. 277 do CBT (lavrados por negativa ao bafômetro) entre junho de 2008 - mês em que entrou em vigor a lei 11.705/08 -   e novembro de 2014,  sempre que os mesmos tivessem utilizado o código de infração do art. 165 (516-91) no preenchimento do campo respectivo  do auto de infração .

 

Nesse sentido, consignou-se na portaria 217/14 que os autos de infração lavrados por transgressão ao § 3º do art. 277 (recusa ao bafômetro), que tivessem sido lavrados fazendo referência ao código 516-91 (código do art. 165 – embriaguez ao volante) seriam considerados válidos desde que constassem nos mesmos a referência ao § 3º do art. 277 ou a descrição da conduta contida no citado parágrafo:

Art. 2º Os autos de infração lavrados sob o código 516-91 em data anterior à publicação desta portaria e cuja descrição da infração seja a recusa do condutor de se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no art. 277 do CTB, serão válidos desde que conste do auto de infração a referência ao § 3º do art. 277 do CTB ou a descrição desta conduta infracional.

O que se observa, pois, é que diante da inexistência de um código de infração que descrevesse a conduta prevista no § 3º do art. 277, o Denatran buscou, através de uma portaria convalidar os autos de infração expedidos entre junho de 2008 e novembro de 2014 lavrados com fundamento no dispositivo acima, caso os mesmos houvessem sido lavrados com a utilização do código de infração do art.165 (516-91).

Depreende-se, pois, da leitura da portaria 217/14, que na visão no Denatran, desde a edição da lei 11.705/08 até novembro de 2014, seria lícito ao agente público autuar o condutor tanto pelo art. 165 como pelo § 3º do 277, utilizando-se o mesmo código de infração, o 516-91 (flagrante bis in idem).

Evidente que o artifício enunciado não foi capaz de reparar a situação observada, vez que, conforme dito, sequer existia a infração de trânsito representada pela conduta expressa no art. 277 § 3º (princípio da legalidade), aliás, este o motivo pelo qual indigitado dispositivo efetivamente  não tinha um código de infração.

Mais do que  mero preciosismo, a observância do código correto no preenchimento do auto de infração é medida indispensável à realização da ampla defesa dos administrados, pois o código, em última instância,  serve para evidenciar o real entendimento do agente em relação à situação fática observada.

Clara evidência de que a edição da portaria DENATRAN 217/14 foi ilegal e direcionada, maculando a finalidade do ato,  é que quinze dias após a edição da mesma o Denatran editou outra portaria revogando-a.

A Portaria Denatran 219 de 19 de novembro de 2014 revogou a portaria Denatran 217/14, mas ratificou a criação do código de infração para o parágrafo 3º do art. 277 do CTB, que já havia sido prevista na portaria revogada.

Nessa nova portaria, portanto, o Denatran pretendeu certificar-se de que a conduta contida no § 3º do art. 277, mesmo que contida no capítulo das  MEDIDAS ADMINISTRATIVAS, não sendo, portanto, uma INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA, contasse com um código de infração próprio.

Assim, determinou que a partir da edição da portaria 219 de 19 de novembro de 2014, os autos de infração lavrados com base na conduta descrita no § 3º do art. 277 do CTB fossem autuados sob um novo Código, o 757-90.

Ou seja, ao invés de solucionar a inconsistência da legislação de forma técnica e efetivamente criar no corpo da lei uma infração cujo fato típico fosse a recusa aos procedimentos previstos no caput do art. 277 no capítulo das infrações administrativas, optou-se pela criação de um código de infração ANTES MESMO QUE O TIPO INFRACIONAL EXISTISSE.

Pior, um código de infração para uma disposição contida no capítulo das medidas administrativas e não das infrações administrativas.

Um total absurdo!

Essa situação foi radicalmente modificada em  4 de maio de 2016 quando foi editada a lei 13.281 que alterou o Código Brasileiro de Trânsito e finalmente entregou à situação acima descrita,  a única solução técnico-jurídica aplicável ao tema em evidência no intuito de conferir ao administrador a possibilidade de punir o condutor que meramente se negasse ao bafômetro.

O art. 2º da citada lei, finalmente criou uma infração de trânsito no local próprio do CTB,   cujo núcleo seria a recusa à submissão às várias formas de testes com vistas a comprovar a influência de álcool ou outra substância psicoativa, o art. 165-A:

Art. 2º  A Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 165-A, 282-A, 312-A e 319-A: (Vigência)

Art. 165-A.  Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.”

Importante notar, que o artigo acima citado, em estrita obediência ao princípio da legalidade, está alocado no Capítulo XV do CTB, o capítulo das infrações administrativas do código.

Em que pesem as discussões acerca da constitucionalidade do art. 165-A, em vista do princípio constitucional que veda a autoincriminação, uma coisa é certa:

Somente a partir de 04 de maio de 2016 passou a existir no CTB uma INFRAÇÃO DE TRÂNSITO cujo núcleo era a negativa às várias formas de testes com vistas a comprovar a influência de álcool ou outra substância psicoativa.

Até então, o que se tinha era mera disposição contida no capítulo das medidas administrativas, desprovida de natureza sancionatória,   artificialmente tratada como infração administrativa.

Releva notar,  que a mesma lei 13.281/16 modificou ainda o § 3º do artigo 277 do CTB, fazendo com que, a partir de sua vigência fossem aplicadas as penalidades existentes no art. 165-A, e não mais as penalidades do art. 165, ao condutor que se recusasse aos procedimentos previstos no caput do 277:

“Art. 277.....................................................................

.........................................................................................

§ 3º  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165-A deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.” (NR)

Assim, à partir da edição da Lei 13.281/16, a conduta descrita no § 3º do art. 277 do CTB deixou de ser artificialmente tratada como uma infração de trânsito e “voltou” a ser encarada como o que sempre foi em realidade, mero dispositivo contido no capítulo das MEDIDAS ADMINISTRATIVAS não apto a ensejar reprimenda legal e ou sanção de qualquer natureza, o que só vem a comprovar que, seja na redação anterior, seja na redação atual, o § 3º do art. 277 NUNCA FOI UMA INFRAÇÃO DE TRÂNSITO.

Prova cabal do que se afirmou até aqui,  é que o código de infração artificialmente concebido  pela portaria DENATRAN 219/14 para descrever a conduta então prevista no § 3º do art. 277 (código 757-90), foi transferido pela Portaria Denatran 127, de 21 de junho de 2016, ao  recém-criado art. 165-A do CTB (este sim uma infração administrativa):

“Art. 5º O código de infração 757-90, referente ao art. 277, § 3º, passa a pertencer à infração do art. 165-A, ambos do CTB, com a seguinte redação:” 

Ora, se o § 3º do art. 277 fosse efetivamente uma infração de trânsito autônoma e dissociada daquela prevista no art. 165 desde o ano de 2008, quando foi criado, deveria ter mantido “seu” código de infração mesmo após a criação do art. 165-A.

Mas, se o § 3º do art. 277 fosse efetivamente ou pudesse ter sido a qualquer tempo tratado como uma infração de trânsito, NÃO HAVERIA SEQUER A NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DO ART. 165-A, pois a conduta descrita no 165- A, equivale exatamente à conduta descrita no  § 3º do art. 277, na redação dada pela lei 11.705/08.

Os elementos acima declinados, demonstram, sem sombra de dúvidas, que o § 3º do art. 277, nunca foi  ou poderia ter sido considerado uma infração administrativa; quer seja em sua redação original (quando  foi identificado por dois código de infração (516-91)2 e o (757-90)3, quer seja na redação atual, quando, inclusive, teve “seu” código de infração transferido ao art. 165-A do CBT4.

É evidente que as autuações tidas com base no § 3º do art. 277 eram ilegais e sempre foram  bancadas pelos órgãos de trânsito através dos subterfúgios acima evidenciados, em vista da maior dificuldade de promover a necessária modificação legislativa com vistas a inserir a recusa aos procedimentos do art. 277 no capítulo das infrações administrativas, o que, como visto, só foi feito através da Lei 13.281/16.

Dessa forma, como se demonstrou, desde a edição da lei 11.705/08,  toda autuação havida com base no  §3º  do art. 277, face a negativa ao bafômetro sempre foi ilegal.

Da irrelevância da realização de outros testes com o fim de comprovar o estado de embriaguez do condutor, ante a recusa ao bafômetro, sob a vigência da lei 11.705/08

 

Conforme afirmou-se inicialmente, alguns tribunais do país anulam os autos de infração lavrados com base no § 3º do art. 277 do CTB, ainda sob a  antiga redação conferida pela lei 11.705/08, caso o agente de trânsito não tenha se desincumbido de comprovar a embriaguez do condutor pelas outras formas estabelecidas  na Resolução CONTRAN 432/13:

APELAÇÃO CÍVEL Nº 0047689-48.2014.8.08.0035 APELANTE: DETRAN/ES APELADO: BRUNO MORAIS SIRIO FIORINI RELATOR: DES. SUBSTITUTO DÉLIO JOSÉ ROCHA SOBRINHO   ACÓRDÃO   APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE AUTO DE INFRAÇÃO E DE PENALIDADE ADMINISTRATIVA. RECUSA AO BAFÔMETRO. ART. 277, § 3º, DO CTB. INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE OUTROS MEIOS TÉCNICOS PARA APURAÇÃO DA PRESENÇA DE ALCOOL NO SANGUE. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO AFASTADA.  INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA REALIZAÇÃO DE NOTIFICAÇÃO DA PENALIDADE POR EDITAL NO CASO CONCRETO. ÔNUS DA REQUERIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

1. Como se verifica do auto de infração PM 30392348-8, o impetrante foi autuado por dirigir sob a influência de álcool, nos termos do art. 277, § 3º, do CTB, ou seja, por ter se recusado a realizar o exame de bafômetro.

2. Esta Corte entende que, em que pese a recusa do apelado, a autoridade policial, deve proceder a outros meios de prova, ainda que não técnicos, para a comprovação do estado de embriaguez do condutor abordado, conforme previsto no artigo 2º da resolução nº 206/06 e artigo 277, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro. (TJES, Classe: Agravo Ap, 24151324076, Relator: ROBSON LUIZ ALBANEZ, Órgão julgador: QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 25/7/16, Data da Publicação no Diário: 3/8/16).

3. Ocorre que, in casu, o auto de infração apenas identificou que o requerente foi autuado na forma do art. 277, § 3º, CTB, sem fazer qualquer referência à utilização de outros meios disponíveis a fim de aferir a embriaguez do mesmo, o que afasta a presunção de legitimidade do auto, nos termos da jurisprudência desta Corte.

4. Diante de tais fatos, agiu com acerto o sentenciante ao declarar a nulidade do auto de infração que ensejou a penalidade questionada, determinando a devolução dos valores pagos a este título ao autuado.

5. Este fundamento é suficiente para manter a sentença, sendo desnecessário perquirir acerca da regularidade ou não da notificação de penalidade via edital, mas, mesmo assim, consigna-se que os argumentos da autarquia, referentes à regularidade do referido ato, devem ser rechaçados por dois motivos: i) porque o dossiê transcrito em suas razões recursais, diferentemente do que sustenta, não foram juntados à contestação, mas somente apresentado agora, com o recurso, sendo inviável, assim, sua apreciação, até porque não se trata de documento novo, na medida em que sempre esteve ao alcance da requerida; e ii) porque, mesmo considerando o extrato em referência, a simples discriminação de que teria sido realizada a notificação editalícia da penalidade, sem subscrição da autoridade competente, da cópia do próprio edital ou de qualquer outro meio que demonstre de forma cabal a ocorrência do ato, não é suficiente para desonerar a autarquia de seu ônus processual.

6. Recurso conhecido e desprovido.   VISTOS, relatados e discutidos, estes autos em que estão as partes acima indicadas, ACORDA a Egrégia Segunda Câmara Cível, na conformidade da ata e notas taquigráficas que integram este julgado, à unanimidade de votos, CONHECER da apelação cível, para NEGAR-LHE PROVIMENTO, nos termos do voto proferido pelo E. Relator.   Vitória/ES,  06   de  junho    de 2017 DES. PRESIDENTE    DES. RELATOR (TJES, Classe: Apelação, 35140395696, Relator: ÁLVARO MANOEL ROSINDO BOURGUIGNON - Relator Substituto : DELIO JOSE ROCHA SOBRINHO, Órgão julgador: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 06/06/2017, Data da Publicação no Diário: 14/06/2017) grifamos

Olvidando-se por um instante o fato de que, como se demonstrou acima,  o parágrafo 3º do art. 277 do CTB,  nunca foi uma infração administrativa, a realização de exames adicionais com o fim de comprovar a embriaguez do condutor, seria irrelevante para aplicação da sanção.

Com as devidas vênias, parece haver aí uma confusão! Explica-se,  o objetivo do § 3º do art. 277 do CTB não seria comprovar a embriaguez ao volante, mas sim punir o motorista que meramente  se negasse ao teste do etilômetro, a exemplo do que hoje ocorre com o art. 165-A.

O tipo descrito no § 3º do art. 277 do CTB, sob redação da lei 11.705/08 era a recusa a qualquer dos procedimentos previstos no caput do artigo 277 e não a embriaguez ao volante.

Nesse sentido,  caso o parágrafo 3º do art. 277 do CTB tivesse natureza jurídica de norma infracional, seria irrelevante que o condutor estivesse bêbado ou não, pois o tipo ali descrito era a mera recusa aos procedimentos do caput do art. 277.

Ademais, releva notar, que seja na redação contida na lei 11.705/08 (parágrafo 3º do art. 277), seja na redação existente na lei 13.281/16 (art. 165-A), ante a recusa ao bafômetro, se o agente de trânsito através de outras formas, constata a embriaguez do condutor, não poderia/pode, sob a vigência de qualquer das leis acima citadas, punir o condutor por mera recusa ao etilômetro.

Deveria, sim, autuar o condutor por efetiva embriaguez ao volante nos termos do art. 165, com a consequente imputação criminal contida no art. 306 do CTB.

Nesse diapasão, fica fácil  constatar que  a comprovação da embriaguez por outro método, ante a negativa ao bafômetro nunca sequer deveria/poderia ter sido requisito de validade para se atestar a higidez dos autos de infração lavrados por recusa ao bafômetro, com base no § 3º do art. 277, pois se tal se desse – constatação de embriaguez ao volante – a multa a ser aplicada seria, como dito, a do art. 165 e não a do parágrafo 3º do art. 277 do CTB.  

A falha incontestável do procedimento adotado pelos órgão de trânsito, residiu sempre na ausência efetiva  de um tipo infracional válido e eficaz com vistas a punir o motorista que se negasse aos procedimentos do art. 277, exigência do art. 280, I do CTB.

Tal falha, como dito, só foi sanada com a edição da lei 13.281/16.

Prova irrefutável de tudo quanto foi dito, é que o art. 165-A do CTB, que repete a regra contida no § 3º do art. 277, na redação da lei 11.705/08,  não exige qualquer condição para sua incidência, bastando a negativa do condutor ao teste requerido pelo agente de trânsito.

E as razões disso são óbvias. O art. 165-A, ao contrário do parágrafo 3º do 277,  é uma infração de trânsito, está localizado no capítulo das infrações de trânsito do CTB, e não necessita de comprovação de embriaguez do condutor para poder ser aplicado, pois seu núcleo é a mera recusa a um dos procedimentos que permitam certificar a influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277.

A toda evidência, portanto, os autos de infração lavrados por recusa ao bafômetro (§ 3º do art. 277), na redação da lei 11.705/08, revelam vício insanável, mesmo que estejam acompanhados de outras evidências que autorizem à conclusão de que o condutor estivesse dirigindo sob influência de álcool.

E as conclusões acima evidenciadas são relevantes, a despeito da edição de nova lei que modificou o tema evidenciado5, pois as autuações com base na lei 11.705/08, continuam a ser julgadas administrativa e judicialmente,  produzindo efeito no mundo jurídico, obrigando condutores à suspensão de suas habilitações, pagamento de multa, realização de curso de reciclagem. Isso sem que se considere que há a possibilidade de repetição do indébito das multas indevidamente pagas pelo condutor autuado (art. 168, II do CTN).

_________

1 Nova lei seca. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 85.

2 Portaria 217/14

3 Portaria 219/14

4 Portaria 127/16

5 Lei 13.281/16

_________

*Gustavo Godoy é advogado.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024

A sua empresa monitora todos os gatilhos e lança as informações dos processos trabalhistas no eSocial?

20/12/2024

O futuro dos contratos: A tecnologia blockchain e o potencial dos smart contracts no Brasil

20/12/2024