A definição do jusnaturalismo deve ser obtida de acordo com a sua evolução histórica, a partir de três grandes espécies, a saber: jusnaturalismo cosmológico, que encontra o fundamento do direito nas leis que são consideradas naturais em todo o universo; jusnaturalismo teológico, segundo o qual o direito é revelado e estabelecido por Deus, tendo como princípio a ideia de uma divindade onipotente, onisciente e onipresente; e o jusnaturalismo racionalista, que se funda nas leis naturais da vida.
Os filósofos do direito costumam dizer que as revoluções francesa e americana foram o auge e, ao mesmo tempo, o início do abandono das ideias jusnaturalistas. De fato, a história mostrou o desenvolvimento do positivismo, em várias áreas do conhecimento, inclusive no direito. Mais recentemente, muito se discorreu sobre o pós-positivismo, como um ‘resgate aristotélico’ ou valorativo.
Não é o meu objetivo discorrer sobre as teorias filosóficas do direito, mas apenas despertar uma inevitável curiosidade oriunda da observação de um momento histórico para o país: a eleição para presidente do Senado, ocorrida nos dias 1 e 2 de fevereiro de 2019.
Naquela ocasião, confrontaram-se diversas fontes do direito, apontadas como aptas a reger o procedimento eletivo, as quais foram exaustivamente mencionadas nos inflamados discursos dos senadores da república: a Constituição Federal, o Regimento Interno e Ordem Judicial oriunda da Corte Suprema brasileira.
Para uma visão positivista do fundamento filosófico jurídico, referidas ordens formais são, em tese, mais do que suficientes para reger e conduzir o procedimento de escolha, pela maioria dos senadores, do presidente daquela Casa Legislativa.
Aliás, se atentarmos bem, a pirâmide kelseniana está muito nítida nesse rol de fontes jurídicas: a Lei Maior, o Regimento Interno - que com base naquela se editou e com ela se conforma (de acordo com a decisão do STF) - , e uma manifestação judicial do guardião da Constituição, que dá a interpretação que deve ser seguida (Corte de sobreposição Constitucional).
Indo ao contexto, o que se tinha, no plano dos fatos, era o seguinte: um grupo de senadores defendiam o voto secreto; outro, por sua vez, sustentava ser imperioso o voto aberto.
O ministro presidente do STF, Corte Guardiã da Constituição Federal, em decisão proferida na madrugada do dia 1 para o dia 2 de fevereiro, determinou que a votação fosse procedida mediante voto secreto; nos fundamentos da decisão colhe-se, dentre outros, o contundente e judicioso argumento de autonomia da Casa Legislativa sobre os demais Poderes, especialmente o Executivo.
Nesse sentido, já mais para frente do processo, o senador Renan Calheiros (AL), candidato ao cargo de presidente e cujo partido havia obtido a referida decisão do STF (pelo voto secreto), fez um discurso acusando o processo de “não democrático”, uma vez que o PSDB acabava de indicar que todos os senadores do partido iam, espontaneamente, indicar o conteúdo de seu voto, e que o senador Flávio Bolsonaro (RJ) havia 'aberto' o seu voto. Portanto, o senador Renan defendia que o voto fosse secreto.
Contudo, a questão que se observa é a seguinte: se os senadores tinham uma decisão do STF, dando a interpretação da CF no sentido do voto secreto, além das disposições citadas do regimento interno, em qual fonte jurídica está a ‘abertura’ do voto?
Em um momento importante da votação, em tom de indignação, a senadora Daniella Ribeiro (PB) fez um questionamento à mesa, no seguinte sentido: se o STF e o Regimento Interno determinam seja a votação por voto secreto, qual a consequência para os senadores votantes que revelarem seus votos? Ou seja, a senadora fez um questionamento simples: o voto é secreto e qual a consequência do descumprimento do sigilo que se impõe?
A senadora obteve uma retumbante resposta: não haverá nenhuma consequência ao senador ou para o voto que for revelado. A equação normativa positivista restou, portanto, incompleta: faltou sanção à norma.
Essa questão, do ponto de vista filosófico, coloca em confronto fundamentos positivistas, quanto às normas postas, e jusnaturalistas: havia uma ordem judicial para que o voto fosse secreto, fundamentada em instrumentos normativos formais e de altíssima hierarquia na pirâmide kelseniana; mas os senadores tinham um direito natural de revelar seus votos?
Também não é a minha intenção dar respostas, opinião ou ser crítico; quero suscitar apenas a curiosidade do leitor. Nesse sentido, é interessante rememorar um terceiro episódio desse importante momento da história da República: o senador Jorge Kajuru (GO), em um aceno a um conceito de democracia direta, fez consulta em suas redes sociais sobre em quem seus eleitores queriam que ele desse o voto. A consulta foi feita durante a votação.
Desse modo, o senador não só votou aberto, mas permitiu que o conteúdo do voto fosse determinado por uma votação prévia - obviamente, aberta - em suas redes sociais.
Não foram poucos os momentos em que os senadores revelavam às câmeras o conteúdo do seu voto, pelo fundamento de que esse era o 'sentimento e desejo do povo brasileiro'; também não foram poucas as rememorações ao fato concreto que milhões de pessoas estavam assistindo, ao vivo, a sessão do Senado.
Assim, enquanto os que defendiam o voto secreto diziam ser injurídico sua revelação, com fundamento em fontes formais positivadas do direito (CF, Regimento Interno e Ordem Judicial), aqueles que revelavam seu voto se referiam a valores defendidos pela sociedade e a liberdade de expor sua posição política.
No fim e na prática, a Ordem Judicial, a CF e o Regimento Interno terminaram com a seguinte aplicabilidade normativa: resguardou-se o direito de os Senadores não revelarem seus votos. Contudo, não se pode dizer que a votação foi por voto secreto.
Haveria, em tempos de acesso instantâneo às informações e de uma crescente capacidade de influência imediata de valores da sociedade sobre fatos jurídicos e políticos, a repaginação de uma nova espécie de ‘jusnaturalismo’?
Como proposto, não tenho a pretensão de fornecer respostas aqui, mas apenas de constatar e instigar o debate acerca das fontes formais do direito e a sua aplicabilidade aos fatos.
No caso da eleição do Senado, a norma regente do procedimento, tal como exarada pelas fontes positivadas do direito, terminou ‘mudando’ o seu conteúdo normativo; e a liberdade na exposição do voto - ‘liberdade’, um fundamento muito presente no jusnaturalismo das revoluções francesa e americana - guiou e determinou a conduta de muitos senadores.
Então, fica o questionamento: qual o fundamento do direito que regeu o referido procedimento? A eleição para a presidência do Senado é, sem dúvida, um campo fértil para infinitas construções jusfilosóficas!
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*Renato Cesar Guedes Grilo é procurador da Fazenda Nacional. Assessor de ministro do STJ. Mestrando em Direito e Políticas Públicas (UniCeub). Pós-graduado em Direito Constitucional e em Tributário.