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Audiência conciliatória de designação obrigatória no Processo Civil: esperança ou ingenuidade do legislador?

O CPC pressupõe ao advogado e às partes uma liberdade que estes parecem não estar ainda preparados para desfrutar. E exige dos magistrados uma cultura de mais diálogo e de menos imposição, que os decisores parecem não estar preparados para encampar. Inobstante, é dever da comunidade jurídica lutar pelo cumprimento das leis, e, assim sendo, lutemos para cumprir os objetivos expressos e implícitos do CPC.

31/1/2019

1. O desejo do Código

O novo Código de Processo Civil, lei 13.105/15, é uma carta de intenções, uma ode à solução consensual1 dos conflitos e à pacificação social. É fruto do movimento neoprocessualista, e decorre diretamente da opção constitucional pela duração razoável do processo2.

A designação de audiência de conciliação é um exemplo de um dos meios alternativos de autocomposição, conforme determina o artigo 334 do CPC, mesmo que ainda não seja um método tão amplo na rotina jurídica, há de se atentar a benesse disto se tornar uma prática mais comum.

O artigo 334 do novo Código de Processo Civil, lei 13.105/15, em vigor há pouco mais de dois anos, é claro quanto ao que deve ser feito pelo magistrado quando diante de um caso que alberga conciliação e que a petição inicial tenha sobrepujado os obstáculos de admissibilidade:

Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.

Não basta também às partes dispensar isoladamente a realização do ato processual de acordo. Tal manifestação deve ser uníssona3:

Art. 334 (...)

§ 4º A audiência não será realizada:

I - se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual;

II - quando não se admitir a autocomposição.

Porém na prática, a lei clara não tem sido cumprida4, e os juízos, fazendo uso da ponderação para proferir decisões interlocutórias, ao arrepio do texto e da geografia do §2º do artigo 489, tem deliberadamente ordenado a citação do réu por conta do fracasso na obtenção de conciliações na fase própria para tal criada pelo NCPC.

2. A realidade prática

De fato, é um erro recorrente do legislador brasileiro tentar dar celeridade a algo moroso criando uma nova burocracia, que nesse caso se consubstancia em uma nova fase processual. Ora, se o acordo é algo que pode ser feito a qualquer tempo, antes, durante, depois do processo5, por que seria necessário criar uma fase específica para realização de acordo? Para este fim, as audiências unas – exigência também de há muito flexibilizada nos Juizados Especiais – já seriam suficientes. É de uma inocência inadmissível a criação de tal norma, pois que desprovida de respaldo político, e lastro social. As partes não estão preparadas para conciliar, os advogados preferem terceirizar a decisão do que negociar, e os Juízes preferem decidir a ter de realizar a insuportável tarefa de conversar com seus “ex-colegas” não concursados e seus representados.

O artigo parece ter ainda não se atentado à má fé dos operadores e das partes, que poderiam – como de fato muitos fazem - se utilizar do instituto, demonstrando uma falsa inclinação ao acordo, apenas para procrastinar o feito, ocultar bens, entre outros ardis, optando por arcar com a multa cominada6. Corroborando o dito supra, embasado na decisão da nota de rodapé 4, representante de um “N” gigante de decisões nesse sentido, percebemos que o artigo tem gerado efeito diametralmente oposto à vontade do legislador7. O que fora criado para desafogo e aceleração dos procedimentos, está gerando procrastinação, custo, e aumento temporal do trâmite processual.

Apesar dos esforços institucionais8, dados oficias do CEJUSC - "Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania" vinculado ao Tribunal de Justiça do Paraná, comprovam que as partes - por motivos que merecem uma pesquisa qualitativa aprofundada - não compõem. Apenas 20% das audiências de conciliação restam frutíferas. A decisão que inspirou este artigo traz um dado ainda mais decepcionante sobre a realidade de seu respectivo foro: nem 10% das audiências de conciliação geram pacificação.

Considerações finais

Devemos desistir da conciliação? Claro que não. Não existe solução fácil para problema difícil. Mas é óbvio que não basta criar estrutura, burocracia, e mobilizar recursos para buscar a conciliação e para a solução pacífica dos litígios caírem no gosto popular. Os juízes não devem desistir de marcar audiências conciliatórias, pois que, em o fazendo, estão, além de agindo ilegalmente, jogando uma pá de cal no intento louvável do NCPC.

É preciso difundir na academia, o conceito de pacificação social. Que não se confunda direito com justiça, ok, vá lá, mas que também não se confunda com beligerância. A advocacia atual e futura punirá os profissionais advogados que visem “ganhar” processos, e premiará os que buscarem evitá-los, ou resolver as lides inevitáveis da maneira mais eficiente possível. A magistratura deste século atolará em seu gabinete o juiz que não renunciar à cultura da condenação, em prol da cooperação.

O CPC pressupõe ao advogado e às partes uma liberdade que estes parecem não estar ainda preparados para desfrutar. E exige dos magistrados uma cultura de mais diálogo e de menos imposição, que os decisores parecem não estar preparados para encampar. Inobstante, é dever da comunidade jurídica lutar pelo cumprimento das leis, e, assim sendo, lutemos para cumprir os objetivos expressos e implícitos do CPC.

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1 "A conciliação é uma norma fundamental, como se pode, facilmente, extrair da previsão contida no art. 3º, § 3º, do CPC/15. Além disso, mesmo do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73), em seu art. 125, IV, e também do CPC/15, arts. 139, V, e 381, II, é possível extrair o direcionamento de que a conciliação prefere à solução estatal para o litígio – o que permite a afirmação de que “o novo Código de Processo Civil tem como uma de suas metas primordiais diminuir a quantidade e o tempo de duração dos processos”. (WAMBIER, 2016)

2 Nos referimos à norma introduzida pela emenda constitucional 45/04 ao inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, há de se destacar no artigo o seguinte: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, que desencadeou uma busca por maneiras de possibilitar uma solução nos processos judiciais de forma mais rápida, culminando na ênfase dada pela lei à realização de audiência de conciliação e mediação. Destaque-se que a duração razoável positivada não deveria ser considerada como uma novidade, eis que vigente desde a assinatura do Pacto de San José da Costa Rica, tratado do qual o Brasil é signatário, desde o ano de 1969, e qual já apresentava em seu texto normativo, a prestação jurisdicional em tempo hábil como um direito fundamental do cidadão.

3 "Apesar do emprego, no texto legal, do vocábulo 'ambas', deve-se interpretar a lei no sentido de que a sessão de mediação ou conciliação não se realizará se qualquer das partes manifestar, expressamente, desinteresse na composição consensual. (..). É que um dos princípios reitores da mediação (e da conciliação) é o da voluntariedade, razão pela qual não se pode obrigar qualquer das partes a participar, contra sua vontade, do procedimento de mediação ou de conciliação (art. 2.º, § 2.º, da lei 13.140/15)". (CÂMARA, 2015, p.199) "A petição inicial tem de contar com expressa referência à opção pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação (art. 319, VII, CPC). A ausência de referência deve ser interpretada a favor da sua realização (art. 3º, § 2º ,CPC). (MARINONI, 2015, pág. 341).". "Basta que uma não queira para frustrar o ato. Não faz sentido, ao menos quando o objetivo que se persegue é a autocomposição, que a vontade de uma parte obrigue a outra a comparecer à audiência (ainda mais sob pena de multa)" (BUENO, 2016).

4 Decisão interlocutória proferida por um dos cartórios cíveis de São José dos Pinhais/PR.

5 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) V - promover, a qualquer tempo, a auto-composição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;

6 “(…) o não comparecimento injustificado de qualquer das partes é ato atentatório à dignidade da justiça, e deve ser sancionado com multa… Trata-se de sanção resultante do descumprimento do dever de agir no processo com boa-fé (art. 5º). Considere-se, aqui, que a audiência só é marcada em função da manifestação de vontade de ambas as partes (que poderiam ter dito expressamente não ter interesse em sua realização), o que gera – nos demais atores do processo – a legítima confiança de que há predisposição para a busca de uma solução consensual do conflito. A ausência injustificada de alguma das partes quebra essa confiança…”. (CÂMARA, 2017)

7 LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela emenda constitucional 45, de 2004)

Art. 4o As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

8 Desde o ano de 2015, o CNJ estabelece Metas Nacionais para os CEJUSCs, no tocante à Justiça Estadual. Em 2015, a Meta 3 (Justiça Estadual) tinha a seguinte redação: "Meta 3 de 2015 - Aumentar os casos solucionados por conciliação (Justiça Estadual): impulsionar os trabalhos dos CEJUSCs e garantir aos Estados que já os possuem que, conforme previsto na Resolução 125/2010, homologuem acordos pré-processuais e conciliações em número superior à média das sentenças homologatórias nas unidades jurisdicionais correlatas. Aos que não os possuem, a meta é a implantação de número maior do que os já existentes". Para o ano de 2016, o CNJ estabeleceu a seguinte Meta: "Meta 3 de 2016 - Aumentar os casos solucionados por conciliação (Justiça Estadual): aumentar os casos resolvidos por conciliação em relação ao ano anterior e aumentar o número de CEJUSCs. Fonte: https://www.tjpr.jus.br/cejusc

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BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105 de 2015.

BRASIL. Constituição Federal de 1988.

BUENO, Cassio Scarpinella Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC, de acordo com a lei 13.256, de 4/2/16 / Cassio Scarpinella Bueno. 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016.

CÂMARA, Alexandre Freitas O novo processo civil brasileiro I Alexandre Freitas Câmara. - 3. ed. - São Paulo: Atlas, 2017.

CEJUSC - Centro Judiciário de Solução Conflitos do TJPR.

MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHARDT Sérigo. MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume II - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno (coords). Breves comentários ao novo código de processo civil. São Paulo: RT, 2016.

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*Fernando Schumak Melo é sócio do escritório de advocacia Schumak & Luz que atua nos mais diversos ramos do Direito.

*Nathália Cristina Mattoso Robert tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público.

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