As autoridades fiscais usualmente regulamentam a incidência tributária por intermédio de instruções normativas e demais atos infra normativos que nem sempre observam o limite imposto pela Constituição Federal para a definição da materialidade do IR.
Com isso, ilegalidades são cometidas, como a que ocorre quando o espólio transfere cotas de fundos de investimentos fechados aos herdeiros, e a RFB, com fundamento artigo 65, da lei 8.981/95, bem como o posicionamento adotado por este órgão fiscal na resposta à solução de consulta COSIT 383/14 e no posicionamento adotado no ADIn 13/07, exige que seja retido o IRRF.
Ocorre que a Constituição de 1988 "desenhou" o direito tributário sustentando-o sobre princípios que visam garantir o máximo de segurança jurídica ao contribuinte, sendo um destes princípios, o da estrita legalidade, garantidor de que o tipo tributário seja um conceito fechado, seguro, que contenha todos os elementos necessários à identificação do fato imponível.
Como decorrência, não é possível ao legislador ordinário determinar a incidência do tributo sobre fato não se subsuma, portanto, à materialidade (no caso a renda e proventos de qualquer natureza) pressuposta pela Carta Magna.
No plano infraconstitucional, o artigo 43 do CTN, em complemento à CF/88, estabeleceu que a tributação do IR recai, basicamente, (i) sobre renda, considerada como sendo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, e (ii) sobre proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
Em outros termos, para que ocorra uma incidência legítima do IR, este acréscimo patrimonial positivo deve, efetivamente, representar riqueza nova e real, que esteja disponível para seu beneficiário, de modo a se evitar a tributação do próprio patrimônio do contribuinte, que, frise-se, não foi contemplado pela legislação constitucional ou ordinária como sendo hipótese de incidência do IR.
Neste contexto, questiona-se se seria possível considerar a transferência patrimonial causa mortis, e sem resgate, de cotas de fundos de investimento como um acréscimo patrimonial tributável pelo IR, já que, este fato jurídico representa, em verdade, mera transferência patrimonial, e não a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza.
Isto porque, sendo as cotas de fundos de investimentos, bens móveis, a transferência patrimonial da propriedade dessas quotas, se ainda detidas pelo de cujus no falecimento, e sem nenhuma outra estipulação em contrária representa mera atualização de titularidade destes investimentos, e não seu resgate.
Neste contexto, o artigo 23, caput, da lei 9.532/95, outorga ao espólio o direito de optar por realizar a transmissão causa mortis de bens e direitos pelo valor de custo ao invés de se utilizar do valor de mercado, diferindo, portanto, o recolhimento para o momento em que os herdeiros realizarem eventual alienação ou resgate das cotas do fundo de investimento. Além de uma opção para fins tributários, esta norma, reflete a observância da autonomia da vontade do direito da sucessão.
Não se sustenta, portanto, a tese que vem sendo adotada pela autoridade fiscal no sentido de que incidiria o IRRF na transferência causa mortis de quotas de fundos de investimentos sob o entendimento de que, nesta oportunidade, os herdeiros receberiam rendimentos de aplicações financeiras, nos termos do quanto disposto no artigo 65 da lei 8.981/95.
Isto porque, analisando-se o disposto na norma insculpida no artigo 65 da lei 8.981/95, tem-se que o critério material do IRRF nela previsto se resume no seguinte: auferir rendimentos produzidos por aplicação financeira de renda fixa, por qualquer beneficiário (caput do artigo 65), na hipótese de alienação, que para fins de incidência do IRRF, compreende qualquer forma de transmissão da propriedade, bem como liquidação, resgate, cessão ou repactuação do título ou aplicação (§2º, do artigo 65), por ocasião de sua percepção e pagamento (§3º, cumulado com o §7º, alínea "b", do artigo 65).
Não é, contudo, o que ocorre na transmissão das cotas de fundos de investimento por transmissão causa mortis. Nesta hipótese não há resgate de referidos investimentos e, portanto, percepção de qualquer rendimento, mas tão somente sub-rogação dos herdeiros nos direitos e deveres do de cujus, de modo que aos herdeiros deve ser garantido o direito de manter as cotas do fundo de investimento na mesma condição jurídica que se encontravam no patrimônio do de cujus.
Aliás, de acordo com as regras da CVM, há uma diferenciação entre o conceito de transmissão resgate. Tanto é assim que a IN CVM 555/14, estabelece regras específicas para a realização do resgate, e nada menciona acerca da mera transferência de titularidade, e, mais, como regra, proíbe a transferência ou cessão de cotas de fundo aberto, excetuando-se a hipótese de sucessão universal (artigo 13, inciso IV), o que demonstra a intenção de o órgão regulamentador dos fundos de investimento em tratar de maneira diferente o resgate e a transmissão de cotas causa mortis. Evidente, portanto, que a CVM – órgão regulamentador dos fundos de investimentos - diferenciou o resgate da transferência. E, em observância ao disposto no artigo 110 do CTN, não poderia a legislação tributária, mormente a legislação infralegal, alterar conceitos de direito privado, deturpando-os ou ampliando seu alcance, que é o que acontecerá se se passar a considerar que, por ocasião da transmissão causa mortis de mera titularidade de cotas de fundos de investimento estaria, em última análise, ocorrendo um resgate passível de tributação pelo IR.
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*Diego Viscardi é advogado no escritório CHBS Advogados, especialista em Direito Empresarial pela PUC/SP.
*Lia Drezza é advogada no escritório CHBS Advogados, mestre e especialista em Direito Tributário pela PUC/SP.