A LFRE, de número 11.101/05, tem despertado grandes debates entre grandes doutrinadores e grandes julgadores, pois sua interpretação nem sempre é uniforme. Temos, por exemplo, as disposições do artigo 49 que causaram e ainda vem causando muitas discussões entre os operadores do direito, pois tais disposições foram e continuam sendo objetos de interpretações as mais díspares possíveis.
Por exemplo, o caput deste artigo 49 dispõe que “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. Numa primeira leitura menos atenta, pode-se levar ao intérprete a certeza de que, no dia em que se protocolizar o pedido de recuperação judicial, a este estarão sujeitos todos os créditos do devedor/recuperando, ainda que não vencidos, pois é o que diz a lei. Entretanto, ao ler todas as disposições do citado artigo 49 – os seus diversos parágrafos -, pois estes complementam o raciocínio daquele (exclui ou acrescenta), vem o entendimento de que a realidade não é bem aquela que se teve num primeiro momento.
Por outro lado, alguns credores, que por deterem meios de lançar mãos sobre os recursos dos devedores/recuperados, ou ainda, por fornecerem determinados serviços a estes que se consideram indispensáveis, numa interpretação contrária ou mesmo por má-fé, usam de determinados subterfúgios para não se submeterem aos efeitos da recuperação judicial, embora a lei não os prive de tal. Mas, muito ao contrário.
No caso hoje sob nossos estudos, vamos observar que uma fornecedora de serviços, considerados essenciais, tentou, por duas vezes, obter benefícios sobre o recuperando, sendo uma a de receber os débitos atrasados e a outra a de cortar o fornecimento de determinados serviços, com a mesma finalidade. Entretanto, conforme nos vai mostrar com muita clareza, nenhuma das duas práticas da fornecedora foi considerada lícita, o que nos mostra a Ementa a seguir transcrita, de lavra do eminente Desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça de Goiás, quando foi relator, dr. AMARAL WILSON DE OLIVEIRA, na Apelação (CPC) 026853930.2015.8.09.0051, 2ª Câmara Cível, julgado em 5/9/18, DJe de 5/9/18:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INADMISSIBILIDADE DO CORTE DE ENERGIA ELÉTRICA EM RELAÇÃO AOS DÉBITOS ANTERIORES AO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. Como cediço, a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise financeira da empresa devedora, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, além de garantir a satisfação dos credores. 2. O artigo 49 da lei 11.101/2005 (lei de Falências), estabelece que "Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". 3. Em situações normais, tem a concessionária de energia elétrica o direito de interromper o fornecimento de energia elétrica após prévio aviso ao consumidor inadimplente, excluindo os débitos existentes por ocasião do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, em respeito ao princípio da preservação da empresa que norteia todo o instituto da recuperação judicial consagrado na lei 11.101/05. Assim, as contas anteriores ao pedido de Recuperação Judicial estão sujeitas a ele, não podendo ser cobradas, nem autorizando a suspensão do serviço. Efetivado o corte, a atividade empresarial estaria inviabilizada, o que causaria prejuízo e lesão a toda a cadeia de fornecedores, funcionários e demais credores, que não teriam seus créditos satisfeitos. Lado outro, o pagamento de dívida anterior à recuperação, prejudica os demais credores, bem como o próprio plano em si. 4. Destarte, admitir o pagamento antecipado, sem determinação de restituição desses valores, seria admitir o risco de prejuízos irreparáveis à universalidade de credores. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E DESPROVIDA”. (grifos nossos).
O nobre Relator foi muito feliz em suas colocações, pois, primeiro, se a lei diz que os débitos anteriores ao pedido da RJ, vencidos e a vencer, a esta se submetem, tem a fornecedora de tais serviços a obrigação de se submeter aos efeitos da RJ; e, segundo, visando o recebimento de tais débitos anteriores ao protocolo do pedido da RJ, não tem a mesma o poder de cortar o fornecimento dos seus serviços ao recuperando.
Tudo, observamos, teve por fundo, segundo a visão do ilustre desembargador/Relator, o princípio da continuidade da atividade e a igualdade entre os credores, princípios tais que são também parte da base que sustenta a lei 11.101/05.
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*Renaldo Limiro é advogado especialista em recuperação judicial no escritório Limiro Advogados Associados S/S