Migalhas de Peso

A externalidade judicial e a qualidade do ensino superior

É fundamental que o Poder Judiciário compreenda o seu papel na análise consumeirista do ensino superior.

15/8/2018

Desde que foi viabilizada maior participação da iniciativa privada na educação superior do país, com a edição da lei 9.131/95, dezenas, senão centenas, de instituições de ensino foram criadas, e outras transformadas de associação sem fins lucrativos em empresas limitadas ou sociedades anônimas, nos termos da lei 11.096/05. Ao mesmo tempo, gigantes financeiros de áreas outrora alheias ao setor de educação passaram a compor o cenário do ensino superior, ora adquirindo instituições com objetivo de investimento, ora simplesmente financiando aquisições, em ambos os casos formando verdadeiras corporações de educação superior cujo objetivo é estritamente o lucro, como é natural em qualquer gestão de investimento.

Isso não quer dizer que a gestão dessas instituições não esteja alinhada com a qualidade, pois é evidente que quanto maior a qualidade do ensino, maior é a atração pelo mercado e, consequentemente, o valor agregado à instituição e a potencialidade do lucro. E, como é de se esperar diante do aspecto lucrativo dessas empresas, seria o fator regulatório quem deveria garantir a manutenção da qualidade do ensino superior, como descrito no art. 214 da Constituição, especialmente por sua característica de área de natureza estratégica para o desenvolvimento do Estado brasileiro.

O Ministério da Educação (MEC), por si ou pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelo INEP, tem efetivamente realizado esforços no sentido de zelar pelo efeito prospectivo do preceito constitucional, fiscalizando ou criando normas para compor pedagogicamente o currículo de cada curso, cada disciplina, assim como a grade horária, horas complementares, práticas, estágios, etc., para atender o que se espera na formação de um profissional ou mesmo de um acadêmico e pesquisador egresso do ensino superior.

Mas apesar de todo esse esforço, cujo conteúdo normativo é extenso e não caberia neste espaço, não há como desconsiderarmos as externalidades que ameaçam comprometer a qualidade do ensino superior brasileiro e macular o que a pedagogia e a pesquisa científica já identificaram como necessário por décadas de estudos sobre a matéria. Isso porque, não raras vezes, o Poder Judiciário simplesmente ignora todo o aspecto regulatório que deveria garantir a qualidade do ensino superior, e na maioria das vezes por decisões de natureza primária e liminar.

A partir de um critério absolutamente consumeirista, o Poder Judiciário acaba por funcionar como um fator externo ao aspecto regulatório do ensino superior, muitas vezes rompendo currículos, requisitos de disciplinas, matrizes curriculares, ou mesmo o tempo necessário de formação dos alunos ou os requisitos para que o egresso do ensino médio possa acessar o ensino superior, entre eles a própria diplomação no ensino médio.

Não raro, as instituições de ensino superior, em circunstâncias absolutamente casuísticas, deparam-se com determinações judiciais para que determinado aluno curse, em um único semestre letivo, 12 ou até 14 disciplinas, com a quebra de diversos pré-requisitos entre elas, o que as torna impossíveis de serem cursadas ao mesmo tempo, muitas vezes em função de choque de horários entre as mesmas. É comum o Judiciário ignorar o fato de que o tempo para formação dos alunos e o escalonamento das disciplinas segue um programa construído em parceria com as exigências regulatórias e, naturalmente, estabelecido a partir de estudos pedagógicos específicos para atender a critérios de qualidade exigidos pela própria Constituição.

Mas o caso citado não é o único cenário no qual o Poder Judiciário funciona como externalidade negativa à qualidade do ensino superior. Podem-se citar casos de "quebra de pré-requisitos" entre disciplinas, a inclusão de alunos em matrizes curriculares ultrapassadas – o que ocorre quando o aluno abandona o curso e retorna anos depois –, bem como matrículas fora do prazo estabelecido pela instituição, ou ainda a simples determinação para que a instituição de ensino receba alunos que ainda não concluíram o ensino médio.

Enfim, esses são apenas alguns casos, e há muitos outros em que o Poder Judiciário, de maneira inconsequente, atua como externalidade na qualidade do ensino superior brasileiro, e de forma absolutamente imprevisível, já que a instituição de ensino não tem como prever o comportamento dos tribunais nos casos concretos. E, como se tratam de medidas de ordem liminar, não se forma jurisprudência sobre o tema, ou seja, não há segurança jurídica alguma no sentido de garantir às instituições a qualidade esperada pela Constituição. Mesmo que a instituição insista em debater a matéria no âmbito judiciário, a fim de formar um capital jurídico sobre o tema, o próprio sistema judicial brasileiro impede essa conotação, porque os casos são decididos na primeira instância e retratam situações absolutamente fáticas, inviáveis de se levar às Cortes Superiores.

É fundamental que o Poder Judiciário compreenda o seu papel na análise consumeirista do ensino superior, e os efeitos colaterais desse comportamento absolutamente imprevisível e indesejado, que se manifesta em fatos e não em direito, e compromete não só o setor regulatório em questão, mas essencialmente a qualidade do ensino e o desenvolvimento do país.
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*João Paulo Echeverria é advogado especialista em Direito Constitucional e do Terceiro setor, e sócio do escritório Covac – Sociedade de Advogados.

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