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É inconstitucional a isenção da MP 833/18 de pedágio sobre eixos suspensos

A decisão de conceder isenção tomada no afogadilho produz efeitos colaterais e sistêmicos não apenas no segmento das rodovias, mas em todo o setor de infraestrutura.

29/6/2018

A recente crise que assolou o país em razão da greve dos caminhoneiros apresenta diversas dimensões nas suas causas e nas suas consequências.

Uma das medidas adotadas impactou profundamente os contratos de concessão de rodovias celebrados nas esferas federal, estadual e municipal. No afã de atender as demandas dos caminhoneiros, o Governo Federal editou a MP 833/18, que prevê "que os veículos de transporte de cargas que circularem vazios ficarão isentos da cobrança de pedágio sobre os eixos que mantiverem suspensos."

A norma é flagrantemente inconstitucional por diversas razões.

Em primeiro lugar, a regulação de eventuais isenções na cobrança de pedágio é matéria afeta à competência do ente que é titular do serviço. Portanto, não se trata aqui de matéria que ostente natureza de norma geral, a comportar uma normatização uniformizadora para todos os entes da federação.

Trata-se de violação ao princípio federativo, cujo conteúdo consiste exatamente na ideia de que todos os entes da Federação dispõem de competência para legislar e administrar seus negócios, aí incluídas a capacidade e auto-organização. No Estado Federal, traço característico é a chamada autonomia que cada ente possui para, a partir da edição de regras próprias, limitadas pela Constituição, gerir e organizar assuntos de interesse interno. A interferência indevida na gestão de bens e serviços públicos que integram a esfera de competência de outro ente da federação já foi, corretamente, rechaçada pelo STF, por ocasião do julgamento da ADI 3358.(...

Não se trata aqui de fato do príncipe, conhecido no universo jurídico como medida de caráter geral e lícita, mas que produz impactos nos contratos em vigor. Isso porque, como dito acima, não poderia a União editar uma medida conferindo isenção com espectro alargado a ponto de alcançar as concessões de rodovias estaduais e municipais.

Em segundo lugar, toda a isenção ou benefício tarifário reclamar a correspondente indicação da fonte de custeio para fins de preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. É o que diz textualmente o artigo 35 da lei 9.074/95, quando explicita que a estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente, fica condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Portanto, a pretexto de atender com um "pacote de bondades" todas as reinvindicações dos caminhoneiros, a MP 833/18 violou o equilíbrio econômico financeiro dos contratos em vigor, que é, a teor do disposto no artigo 10 da lei 8.987/95, aquele definido em cada contrato concessional, considerando a singularidade e racionalidade econômica própria de cada um destes pactos celebrados nas esferas federal, estadual e municipal.

Por arrastamento, violam-se os demais princípios que informam as concessões e que retratam o serviço público adequado em cada contrato, como é o caso da eficiência, continuidade, modicidade tarifária, regularidade, segurança, generalidade e atualidade, previstos expressamente no artigo 6° da lei 8.987/95. Esses princípios são densificados e parametrizados em cada relação contratual, à luz das especificidades, singularidades e racionalidade econômica de cada contrato.

A consequência prática disso é o enorme risco de um apagão sistêmico na gestão das rodovias concedidas, com grave prejuízo para os usuários, porquanto os processos ou métodos para reequilibrar esses contratos costumam ser morosos e complexos, gerando, no mais das vezes, contenciosos administrativos e judiciais que aumentam a litigiosidade em relações duradouras que deveriam ser, na essência, relacionais e vincadas na constituição de efetivas parcerias.

A decisão de conceder isenção tomada no afogadilho produz efeitos colaterais e sistêmicos não apenas no segmento das rodovias, mas em todo o setor de infraestrutura, sinalizando para os investidores, nacionais e internacionais, que o Brasil ainda não aprendeu a lição de que os contratos celebrados com o Estado devem ser cumpridos e que, principalmente, os atalhos e as soluções fáceis nem sempre são as melhores soluções para a construção de um país que pretende e precisa dar um "salto" civilizatório.
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*Thaís Marçal é advogada, coordenadora de Direito Público da Escola Superior de Advocacia da OABRJ e mestre em Direito da Cidade pela UERJ.

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