Recentemente editada, a súmula 603 do STJ é um retrocesso à efetividade do processo judicial, contraria disposições do novo Código de Processo Civil (CPC) e representa sérios entraves ao barateamento do custo dos empréstimos bancários. Diz a súmula: "É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal especifico e admite retenção de percentual".
Em primeira análise, ao vedar a retenção em conta corrente (sendo a justificativa de fundo, a impenhorabilidade destes recursos) em qualquer extensão dos salários e demais rendimentos provenientes do trabalho, a referida súmula contraria literalmente o espírito norteador da norma do art. 833, CPC, assim como as exceções ali previstas (recursos de caderneta de poupança superiores a 40 salários mínimos e depósitos de qualquer natureza acima de 50 salários mínimos).
Por outra, com a redação do novo CPC, a impenhorabilidade não é mais absoluta, já que, para garantir este status de imunidade, as verbas salarias e outros rendimentos têm que estar atrelados ao sustento do devedor e de sua família. Assim, independentemente de ser proveniente de remuneração salarial, o valor que exceder ao sustento do devedor, de um período ao outro de uma nova remuneração, perde a natureza de verba alimentar, sendo passível, portanto, de ser penhorada e, por consequência, retida pelo credor.
A jurisprudência mais abalizada do STJ (REsp 1285970/SP e REsp 1.330.567/RS ) vinha entendendo, até então, ser cabível a penhora em parte do salário do devedor naquilo que ultrapassar o valor necessário ao seu sustento. Afinal, o que as decisões têm em foco, neste sentido, é vedar que devedores de má-fé se escudem através do manto da impenhorabilidade e não paguem seus débitos, mesmo tendo recursos suficientes para seu sustento e da família, o que ocorre na prática em inúmeros casos. No entanto, a presunção inserida na mencionada súmula de que toda remuneração teria destinação alimentar entra em rota de colisão com o § único do art. 805, CPC, o qual determina que cabe ao devedor provar que a execução em curso lhe é mais gravosa, havendo outros meios de satisfação do crédito. Além disso, como assentado no sempre bem fundamentado voto da min. Nancy Andrighi (Resp 1.330.567/RS), "grande parte do capital acumulado pelas pessoas é fruto do seu trabalho. Assim, se as verbas salariais não utilizadas pelo titular para subsistência mantivessem sua natureza alimentar, teríamos por impenhoráveis todo o patrimônio construído pelo devedor a partir desses recursos."
Assim, da maneira como está redigido, o sumulado impede a retenção na conta do devedor, atraindo o ônus da prova para o credor, que fica na difícil missão de provar a natureza não alimentar dos recursos disponíveis em conta corrente. Saliente-se, ainda, que a própria lei 8009/90, no inciso V, art. 3º, excepciona da impenhorabilidade o imóvel único do devedor dado em garantia hipotecária. Ora, nesta mesma linha, o devedor, que contratualmente permite lhe sejam retidos valores de mútuo, não estaria abrangido pela mesma exceção? Ambas as hipóteses são obrigações contraídas voluntariamente e que necessitam do mínimo de segurança jurídica.
Surge, desta forma, a revisão da mencionada súmula, em consonância com os novos princípios da efetividade da prestação jurisdicional e da melhor jurisprudência do STJ, os quais, sem deixar de reconhecer a necessidade de se resguardar o necessário para a sobrevivência do devedor e sua família, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, excepcionam os recursos que sobejarem esse mínimo, seja fictamente, como nas hipóteses do inciso X e §2º do art. 883, CPC, seja na análise do caso concreto. Assim, não havendo prova, a cargo do devedor, neste sentido, cabe a retenção dos seus recursos para quitar dívidas contraídas voluntariamente perante às instituições financeiras.
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*João Gondim é sócio do escritório Gondim Albuquerque Negreiros ADV.