"O empresário é antes de tudo um forte... Mas nem tanto".
(Com a devida licença de Euclides da Cunha).
Esse malfadado projeto de Código comercial parece ser um zumbi: de vez em quando morre e de vez em quando volta do cemitério, cada vez com um odor pior do que o antigo.
Alguém poderia ser tentado a dizer que somos contra tal iniciativa porque gostamos do Código Civil de 2002 e não desejamos que seja revogado na parte do direito empresarial. Longe disto! Este também é muito ruim sob diversos aspectos, especialmente quando pretendeu cuidar dessa área do Direito, copiando mal o Codice Civile de 1942, sem atentar para as transformações socioeconômicas. Exemplo é a sentença letal da sociedade limitada, entre outros danos muito sérios, aí incluída a exigência de outorga de cônjuge na prestação de garantia cambiária, anteriormente definida como DECLARAÇÃO UNILATERAL!!!! A limitada, tal como regida pelas novas regras, que afastaram substancialmente a estrutura regulada em 1919, tornou-se, na verdade, de sociedade comercial em camisa-de-força, tendo conferido poder de veto a minoritários. Haja democracia representativa! Nossa objeção em relação a novos códigos é mais geral. Não nos agrada esse projeto por questão de princípio, como tivemos oportunidade de afirmar em diversas ocasiões, especialmente nos dois últimos textos aqui mesmo publicados, nos quais afirmamos que não o lemos e mesmo assim não gostamos (Vide "Projetos de Código de Direito Comercial: não li e não gostei!" e "Projetos de Código de Direito Comercial: não lemos e não gostamos!", respectivamente de 17 e de 25/5/18).
Repetimos: codificar não é o meio adequado na atual conjuntura em que se discute, inclusive, a reforma da legislação falimentar, entre outras. Um novo código deveria ser precedido de uma lei geral de introdução ao Direito Comercial que agasalhasse os seus princípios fundamentais e acolhesse sob suas asas os microssistemas já existentes, voltados umbilicalmente para esse mesmo ramo do direito. Também não é o momento de se introduzir novidades descoladas das necessidades ou resultantes de práticas que se mostrem adequadas para equacionar a especificidade das relações negociais nessa área, ainda que, em princípio, pudessem ser consideradas boas. Em meio a uma economia que vive espantosa crise de recessão e de absoluta falta de credibilidade, dados os mais diversos planos que se mostraram incorretos e cuja correção é custosa, complexa, não é absolutamente o momento de se vir com coisas novas que, certamente, aumentarão de forma sensível os custos da atividade empresarial.
Podemos tranquilamente afirmar que os efeitos da greve dos caminhoneiros foram a gota d’água que fez o copo transbordar, consequência de inúmeras causas relativas ao desequilíbrio econômico-financeiro do país que não afeta apenas um setor da economia. Não é de hoje que assim acontece, sendo que boa parte das causas de tal situação se encontra no passado, algumas delas muito além dos terríveis dois governos findos há dois anos, seguidos deste, não menos infeliz do ponto de vista econômico, devido à sua profunda tibieza, entre outras causas.
Estamos vivendo uma de muitas décadas perdidas. Desde que nascemos fala-se em década perdida, uma a uma, e pelo visto, teremos mais outras tantas pela frente, as quais serão suportadas por nossos filhos a que se somarão os nossos netos. Décadas perdidas a perder de vista. E não há vislumbre de mudança em um país no qual temos políticos baratos e dólar caro. Benesses destinadas a alavancar a atividade que, no final se mostram sem apoio para acionar a alavanca.
Jamais passamos por uma guerra civil de grandes proporções, mas nos encontramos em situação pior do que aquela que viveram outros países e que souberam superar as suas vicissitudes. Não sabemos dizer precisamente como aconteceu o seu resgate econômico, de natureza profunda e complexa, mas em comparação com o Brasil, observemos o que se deu, por exemplo, com a Coréia do Sul e com o Vietnã depois das guerras sangrentas das décadas de cinquenta e sessenta do século passado. Enquanto hoje são economias estáveis e crescendo, nós nos encontramos no pântano de mais uma recessão. A nós parece que esses países não gozaram do benefício de qualquer "Plano Marshal" para terem chegado aonde chegaram. Isto se deu pelo seu próprio esforço, por investimentos em educação e pesquisa, cujos resultados estão aí.
Voltemos ao nosso zumbi. Ele certamente trará muitas alterações ao Direito Comercial vigente, que é precisamente o seu propósito, caso contrário não teria razão para ser engendrado, mesmo que parte da motivação tenha sua origem no deus grego Narciso.
Tais mudanças serão de variada natureza, das quais resultará a necessidade de adaptação das empresas mercantis ao novo regime o que, certamente, não será de graça, especialmente quanto ao custo jurídico de aprendizado, entendimento, interpretação e aplicação das novas normas. Veja-se que são passados apenas dezesseis anos da promulgação do Código Civil vigente (tempo muito curto para a vida de um corpo jurídico de tal porte) e até hoje muitos dos seus institutos são objeto de permanentes questões vividas no Judiciário, que não tiveram solução adequada. De que serviu todo esse período de apreciação pelos juristas e pelo Judiciário? Como decidir sem conhecer a realidade diária da atividade de comércio, termo aqui empregado em sentido lato?
Todos os que trafegam nessa área estão a par das inúmeras questões jurídicas até hoje não resolvidas, que serão sepultadas eventualmente pelo novo Código, e ao depois renovadas em outras disputas e interpretações e a respeito das quais a insegurança será extremamente sensível.
E quem pagará esse custo serão o empresário de início e o consumidor na ponta final, na medida em que a despesa correspondente será transferida para este último mediante sua incorporação ao preço de produtos e serviços. Daí que o título deste artigo é verdadeiro em parte. Em um primeiro momento os empresários assumirão os custos de que se fala. Depois, se for possível dentro de um mercado que apresenta distintos regimes de concorrência (desde monopólios, oligopólios, monopsônios e oligopsônios), os encargos das adaptações necessárias da vida empresarial, resultantes das normas do temido novo Código, serão repassados em boa parte aos consumidores. Os empresários que não conseguirem fazer isto terão sua margem de lucro reduzida ou serão postos para fora do mercado, o que, da mesma forma, prejudicará os consumidores quando não a cadeia produtiva. Simples assim.
É intrigante, para dizer o menos, que um dos pais recentes desse Código é um conhecido líder empresarial cuja atitude indica ser deliberada ou completamente ignorante dos efeitos aqui mencionados. Pior ainda, se deles tem conhecimento, não lhes está dando a mínima importância porque tem outros objetivos pessoais a alcançar, talvez a fama passageira de ter desfilado pelas ruas em meio a alguns aplausos portando uma pretensa tocha olímpica que se apagará completamente, não antes de queimar a mão de muitos desavisados.
Mais uma observação. Todos os que conhecem a história do Direito Comercial sabem que a sua origem é costumeira, elaborado no seio das corporações de mercadores. Os usos e costumes sempre foram a primordial fonte desse ramo do direito, orientação essa deixada de lado pelo Código Civil em vigor que, felizmente, não conseguiu eliminá-la por completo, ainda que a tenha marginalizado de forma bastante intensa. Ora, os usos e costumes se prestam a construir estruturas e/ou mecanismos eficientes para o atendimento das necessidades dos comerciantes e, portanto, somente florescem em regimes jurídicos de liberdade mais acentuada, o que significa menos regulação. Não tem sido esta, infelizmente, a orientação do legislador, que tem estrangulado a criatividade dos empresários por meio de intensa e extensa normatização de sua atividade, muitas vezes como resultado de uma visão esdrúxula, voltada para uma pretensa proteção da parte mais fraca nas relações comerciais. E aqui não se fala somente dos consumidores finais dos bens e serviços.
Modernamente tem-se falado na adoção da soft Law em contrapartida à hard Law, isto é, em uma aproximação simplificada, na busca de uma normatização mínima e flexível, deixando espaço para a autonomia privada, isto é, liberdade das contratações em lugar de um modelo legislativo fechado e que tenta inutilmente regular todas as circunstâncias possíveis que entende serem eventualmente prejudiciais a um lado das relações jurídicas. Neste último caso o comerciante é um autômato, que aplica sem pensar as funções pré-determinadas, em regime de burrice artificial, no lugar de inteligência natural.
Esse intento de tudo prever e tudo tutelar, que se traduz em um projeto de Código com mais de dois milhares de artigos, é a mesma coisa que tentar segurar água nas mãos: quase todo o líquido sempre sairá pelo intervalo entre os dedos.
Soft law seria mais ou menos assim: a partir de um modelo de código bem enxuto que apresentamos abaixo, parafraseando alguém:
"Art. 1º - As partes em suas relações jurídicas devem ter vergonha na cara".
"Art. 2º - Os casos omissos serão resolvidos diretamente entre elas".
"Art. 3º - Revogam-se as disposições em contrário".
E todos viveram felizes para sempre!
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito de São Paulo.
*Rachel Sztajn é professora Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.