Migalhas de Peso

O insancionável PL 7.448/17

Num Brasil de extensão continental, na atual perversão federativa de mais de 5 mil municípios, raramente o agente público – mais de perto nas capitais e maiores cidades – terá condições de colocar em prática o propalado Projeto de Lei para mensurar a conotação econômica e analisar os riscos experimentados decorrentes da respectiva conduta.

25/4/2018

O Senado Federal, a toque de caixa, tendo como Relator o senador mineiro Antonio Anastasia, materializou no PL 7.448/17 um conjunto de normas no escopo de implementar aperfeiçoamento e aprimoramento dos órgãos de gestão, inclusive das agências reguladoras, com previsão de imediata vigência – exceção feita ao artigo 25, aguardando sanção presidencial.

Entretanto, respeitadas as opiniões em sentido contrário, o projeto encerra verdadeira desforra legislativa, porquanto, caso aprovado, criará descalabro e punirá funcionários e servidores conforme a interpretação do cometimento de dolo ou erro grosseiro, em desarmonia com a jurisprudência existente e decisões administrativas.

Os princípios gerais norteadores do Direito Administrativo são flexibilizados pela previsão da criação de uma ação declaratória de validade procedimental a partir do artigo 25, com eficácia erga omnes.

Admitamos exemplificativamente que o Ministério Público, instado pela coletividade, afira remédio fornecido pela Secretaria de Saúde da comuna, e ao longo do procedimento se constate que aquela medicação não produz qualquer eficácia e sequer atende a regras mínimas para que o tratamento produza algum resultado. Nesse caso específico, a autoridade (Secretário de Saúde), isolada ou em litisconsórcio com a Prefeitura, poderá em juízo tentar de forma inversa obter prestação jurisdicional a convalidar a contratação e também a compra do medicamento sem eficácia para o tratamento da população, adiantando-se ao campo específico e também ao próprio controle de fiscalização, feitos pelo Tribunal de Contas do Estado.

Barbariza-se o procedimento a ponto de interferir nas decisões das agências reguladoras, a pretexto de se criar um clima de insegurança e instabilidade – tudo a favor de regras econômicas sem transparência ou desgarradas da verdadeira finalidade do projeto.

Num Brasil de extensão continental, na atual perversão federativa de mais de 5 mil municípios, raramente o agente público – mais de perto nas capitais e maiores cidades – terá condições de colocar em prática o propalado Projeto de Lei para mensurar a conotação econômica e analisar os riscos experimentados decorrentes da respectiva conduta.

Ademais, o gestor público pode se deparar com um caso sem precedentes, ainda inédito, a qualificá-lo para tomar uma decisão de acordo com os interesses públicos e da coletividade. Tenhamos em mente a tragédia ambiental de Mariana, com reflexos em diversos Estados da Federação e profundamente lamentáveis para o meio ambiente.

Como a autoridade administrativa, ao impor vultosa multa, comprovará que seu valor trará comprometimento para a continuidade da atividade empresarial, afetando o núcleo econômico?

De forma idêntica, as empresas pilhadas em ilicitudes, as quais celebraram acordos de leniência, não podem agora mudar a regra do jogo ou alterá-lo mediante transição, até porque normalmente os valores de sanções impostas serão pagos ao longo de décadas – e, no caso dos tributos, serão eles renegociados por meio do Refis.

Deveria o legislador, antes de colocar em votação esse Projeto de Lei, auscultar a sociedade e os especialistas, não colocando em risco a atividade da administração pública e dos seus gestores, por exemplo determinando que o agente ressarça os prejuízos cometidos, o que poderá inclusive inibir a sua forma de agir. Bem mais salutar seria que se consolidasse o procedimento administrativo formalizando coisa julgada, remanescendo apenas o controle da legalidade e da legitimidade pelo órgão judiciário.

Inverte-se completamente a polaridade para que se imponham regras de fiscalização e supervisão do agente, quando justamente a administração pública, pelos princípios da legitimidade, presumida boa-fé, imparcialidade e neutralidade, deveria se sobrepor a qualquer tentativa de minar o seu raio de ação ou de incansavelmente questionar o seu pressuposto, colocando mesmo em risco o resultado prático de sua conduta.

Sabemos que quando as agências reguladoras – desprovidas de infraestrutura e sem eficácia na fiscalização – penalizam os comportamentos enraizando sanções de somas elevadas, sempre advém uma perspectiva de repactuação, renegociação ou investimento indireto para que o agente punido não recolha aos cofres públicos o valor correspondente.

O Parlamento deve estar atento, de forma séria e comprometida, com os resultados da opacidade e dificuldade interpretativa (sem qualquer crítica ao Relator Senador Antonio Anastasia), porquanto regras transformadoras desse calibre provocam verdadeira mutação nos conceitos, no entendimento e na interpretação, causando estranheza conferir-se mais poderes aos fiscalizados do que propriamente aos agentes públicos.

Por tudo isso é verdadeiramente insancionável o PL 7.448/17, a par de alguns artigos de enorme valia, mas que no conjunto peca pela falta de objetividade e transparência na consecução de um resultado pragmático que não apenas aprimore e aperfeiçoe a Administração Pública, mas esvazie todos os predicados em prol da economicidade e do conteúdo econômico de grupos de investidores não familiarizados com os aspectos mais relevantes de nossos patrimônios ambiental, cultural, histórico e ecológico. É a razão pela qual não nos devemos nos curvar ao comodismo subalterno que implica um desserviço à Administração Pública e o comprometimento das futuras gerações.

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*Carlos Henrique Abrão é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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