Em 5 de outubro de 2018 completa 30 anos de vigência da CF, promulgada em 1988 pela Assembleia Nacional Constituinte, ocasião em que o Brasil deu o primeiro passo rumo ao Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar, dentre outros direitos sociais e individuais, a justiça, "comprometendo-se com a solução pacífica das controvérsias", tanto no âmbito da ordem interna como internacional, conforme se depreende do seu Preâmbulo.
E falar em acesso à justiça é trazer à tona uma série de discussões acerca desse direito fundamental, especialmente no que tange à atuação do Poder Judiciário, criado para garantir a todos um tratamento igualitário na resolução dos conflitos, limitando o poder dos mais fortes em detrimento dos mais fracos, razão última da intervenção estatal, onde exerce o poder-dever de julgar em tempo razoável os processos que lhe são encaminhados.
A noção de acesso à justiça atrelado ao preceito de inafastabilidade do controle judiciário, insculpido no art. 5º, XXXV, da CF, acabou gerando uma ideia errônea de que todo conflito deve ser solucionado exclusivamente pelo Poder Judiciário. Em verdade, o referido preceito deveria ser analisado em conjunto com o princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional, segundo o qual, uma vez provocado, o magistrado não pode se abster de julgar, mesmo na falta de norma, devendo apresentar solução baseada em outros critérios, como os usos e costumes, a analogia e os princípios gerais do direito.
Ao longo destes 30 anos de CF o Estado reconheceu que o processo judicial não é o único e nem o melhor meio para se enfrentar os problemas sociais, vindo a elaborar Políticas Públicas de implementação de tratamento adequado aos conflitos, como a Resolução 125/10 do CNJ. E recentemente, seguindo este pensamento, tivemos o marco da mediação no ordenamento jurídico brasileiro através do novo Código de Processo Civil – lei 13.105/15, que estabeleceu, como norma fundamental, a mediação e a conciliação dos conflitos. Vejamos:
"CAPÍTULO I – DAS NORMAS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL:
Art. 3º, § 3º - A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial".
Inspirado neste modelo de processo civil contemporâneo, baseado em princípios e valores constitucionais, dentre eles repita-se, o compromisso de solução pacífica das controvérsias, é que o novo Código de Ética da OAB também passou a estabelecer no seu art. 2º, parágrafo único, inciso VI que:
"Constitui dever do advogado estimular, a qualquer tempo a conciliação e a mediação".
O acesso à justiça, portanto, não se confunde com o acesso ao Judiciário, nem se resume apenas à prática de protocolização de petições. E a busca pelos métodos extrajudiciais tem o objetivo não só de se efetivar este direito como ainda de cooperar para o fim do acúmulo de processos no Poder Judiciário, que é outro impasse experimentado nestes 30 anos de judicialização exacerbada, provocada, principalmente, pelo próprio Poder Público, considerado o maior demandante, bem como pela tardia implementação de políticas públicas voltadas a incentivar e a implantar os mecanismos para prevenir demandas.
Dados estatísticos do CNJ apontam mais de 100 milhões de processos, sendo que, para cada dez novas demandas, apenas três antigas são resolvidas, indicando, induvidosamente, um acúmulo a exigir mudanças urgentes que felizmente estão sendo buscadas pelo Poder Judiciário. A exemplo, em dezembro de 2014 houve a instituição do Fórum Nacional de Mediação e Conciliação – FONAMEC, com o objetivo de promover discussões e levantar boas práticas para aprimorar os métodos consensuais de solução dos conflitos através da edição de Enunciados com abrangência em todo o território nacional e com efeito vinculativo, no que diz respeito à Justiça Estadual.
Diante desta nova realidade, os tribunais estão criando os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos – NUPEMEC e implantando os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSC, com o objetivo de realizar as sessões de conciliação e mediação, atuando de maneira preventiva, bem como no âmbito dos processos já iniciados, apoiando os Juízos. As Escolas Judiciais estão incumbidas de realizar cursos de capacitação de mediadores e conciliadores para atuar nestes centros, seja diretamente ou através de entidades por ela credenciadas.
E outra grande novidade para a efetivação do direito fundamental de acesso à justiça, corroborando com a Política Pública de resolução adequada dos conflitos, é a criação de Câmaras Privadas de Mediação e Conciliação, com o objetivo de atuarem exclusivamente com os métodos autocompositivos, ou seja, promovendo o diálogo entre as partes através do auxílio de um terceiro imparcial – mediador ou conciliador, que não fará o julgamento da questão, mas estimulará a busca da solução através da aplicação de técnicas bem elaboradas.
O novo CPC dispõe sobre as Câmaras Privadas de Mediação e Conciliação, no Capítulo - Dos Auxiliares da Justiça, artigos 165 e seguintes, traçando princípios e regras gerais, complementadas pela lei 13.140/15, que dispõe sobre a mediação como meio de solução pacífica de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, instituindo e regulamentando a atividade, tanto no âmbito judicial como extrajudicial.
A previsão legal, contudo, não é suficiente, sendo necessário empenho dos Tribunais, da própria OAB, das instituições de ensino e demais entidades relacionadas à Justiça para que haja uma conscientização da sociedade para que o cidadão busque, primeiro, os meios autocompositivos, levando a questão para o Poder Judiciário somente quando não for possível pacificá-la pela via alternativa, favorecendo, assim, a efetivação do compromisso que a Constituição Federal firmou no seu preâmbulo e que só agora foi regulamentado e imposto como norma de preceito cogente.
Enfim, podemos concluir que há bons motivos para comemorar os 30 anos de Constituição Federal, principalmente considerando que não tivemos, neste período, nenhuma interrupção do Estado Democrático, como tantas vezes ocorreu na vigência do regime anterior. A nossa carta magna não concentrou, ao contrário do que muitos enganosamente pensam, a justiça nas mãos do Poder Judiciário, mas sim, garantiu o acesso à justiça comprometendo-se com a solução pacífica das controvérsias, de modo que a responsabilidade pela condução de causas complexas e litigiosas deve permanecer com o Judiciário, cercado pelos princípios jurídicos que o norteiam. E a desjudicialização de questões passíveis de mediação, através da união de esforços entre particulares e órgãos estatais, atende à hodierna concepção de celeridade, efetividade e justiça, com a participação de todos os interessados e sem ruptura do princípio da segurança jurídica.
_________________*Sônia Caetano Fernandes é advogada e professora, especialista em Direito Processual Civil