Migalhas de Peso

Nós, o Supremo

Temos andado na direção certa, ainda quando não na velocidade desejada.

26/2/2018


I. Introdução

“Quando Tzu Lu, governador de She, perguntou a Confúcio ‘como servir ao príncipe’, ele respondeu: ‘Diga-lhe a verdade, mesmo que o ofenda”.

Amartya Sen, Democracy as a universal value


Todas as instituições democráticas estão sujeitas à crítica pública. E devem ter a humildade de levá-la em conta, repensando-se onde couber. Há algumas semanas, o Professor Conrado Hübner Mendes apresentou na Folha de S.Paulo uma análise severa do Supremo Tribunal Federal. Críticos honestos e corajosos não são inimigos. São parceiros na construção de um país melhor e maior. Aceitei o convite da Ilustríssima para apresentar um contraponto. Um dos fascínios das sociedades abertas, plurais e democráticas é a possibilidade de olhar a vida de diferentes pontos de observação.

Diversas das críticas pontuais apresentadas são irrespondíveis e correspondem a disfunções que eu e outros colegas temos procurado combater. Muitas das críticas institucionais são injustas. As instituições são como autoestradas: passam por inúmeros lugares e tocam a vida de muitas pessoas. Se alguém fotografar apenas os acidentes do percurso, transmitirá uma imagem distorcida do que elas representam. Por fim, no tocante à crítica doutrinária – referente aos papeis de uma Suprema Corte, inclusive o papel iluminista, que eu defendo –, o Professor Conrado e eu temos uma divergência antiga, franca e amistosa: considero suas ideias fora de época e de lugar. Por evidente, o debate que aqui se trava é entre dois professores. E não entre um professor e um ministro.

Parte I

Problemas e dificuldades do Supremo Tribunal Federal

I. As críticas procedentes

A primeira crítica pertinente é o excesso de processos: mais de 100 mil em 2017. A segunda, que decorre da primeira, é a monocratização do tribunal, i.e., o número elevado de decisões individuais dos ministros. A explicação para o fato é singela: se o plenário, em um cálculo otimista, só consegue julgar 200 processos por ano, a alternativa é ficar tudo parado ou optar-se pela decisão individual. A terceira é a oscilação da jurisprudência, i.e., a variação das decisões conforme o caso concreto. A quarta crítica do Professor Conrado é a inobservância, por certos ministros, de orientação firmada pelo plenário. A quinta crítica volta-se contra os pedidos de vista de caráter obstrutivo. A sexta e última diz respeito ao poder de agenda, pelo qual o relator ou a presidência do tribunal podem atrasar indefinidamente qualquer julgamento. Logo à frente, comentarei cada uma delas, com a cogitação das soluções possíveis. A crítica individual dirigida a um colega, de que ofende as pessoas, protege os amigos e atua partidariamente, não será objeto de consideração aqui, por motivos éticos óbvios, que todos poderão compreender.

II. As competências que o STF não deveria ter

Supremas Cortes, na maior parte do mundo, têm como missão institucional interpretar e aplicar a Constituição, com duas finalidades principais: (i) proteger valores e direitos fundamentais, como justiça, igualdade, liberdades individuais e privacidade; e (ii) assegurar o respeito à democracia, traçando os limites de atuação de cada Poder e impedindo que as maiorias políticas manipulem ou falseiem as regras do jogo democrático em benefício próprio. Por exceção, Supremas Cortes exercem, também, alguns papeis atípicos, dentre os quais o de atuarem como tribunal penal de 1º grau para julgamento de determinadas autoridades. A Constituição de 1988 exacerbou este papel, dando ao STF competência para julgar todos os membros do Congresso Nacional. Boa parte dos problemas enfrentados pelo tribunal advêm dessa atribuição que ele não deveria ter. O foro privilegiado acarreta a politização indevida da mais alta corte, gera tensões com o Congresso Nacional e desprestígio perante a sociedade, por se tratar de competência que exerce mal.

III. Propostas de solução

De longa data, desde bem antes de ir para o Supremo, tenho apresentado propostas para enfrentar muitos dos problemas apontados. Diversas delas já vêm sendo debatidas internamente e estão em fase de amadurecimento. A primeira é a mais óbvia e urgente: o STF não deve admitir mais recursos extraordinários (que respondem por 85% de seus processos) do que possa julgar em um ano. Tudo o que não for selecionado – por critérios discricionários, mas transparentes – transita em julgado, i.e., o processo acaba.

A segunda proposta é que, admitido o recurso extraordinário, pelo reconhecimento de repercussão geral ao caso – isto é, que a questão discutida tem uma relevância que ultrapassa o mero interesse das partes envolvidas – será marcada a data do julgamento, saltando-se um semestre. Vale dizer: todos os recursos extraordinários a serem julgados terão data designada entre 6 e 9 meses depois de aceito. Em terceiro lugar, os relatores teriam que distribuir aos colegas, algumas semanas antes do julgamento, ao menos a ementa (o resumo) do seu voto. Por fim, um acordo de cavalheiros – que a maioria já pratica – estabeleceria que nenhuma questão institucionalmente relevante seria decidida por algum ministro individualmente.

Ficariam assim resolvidos os problemas de excesso de processos, monocratização, poder de agenda e pedidos de vista. Sim, porque diante da antecedência da pauta e da prévia circulação da síntese do voto, dificilmente haveria necessidade de vista. Nos demais casos, findo o prazo regimental, dar-se-ia a reinclusão automática em pauta. Quanto à inobservância de orientações do plenário por alguns ministros – o que é a exceção, e não a regra –, trata-se de fato negativo, mas que precisa ser contextualizado: muitos juízes, formados na tradição romano-germânica, ainda não se adaptaram à cultura de respeito aos precedentes, que é uma novidade trazida do direito anglo-saxão. O problema, que é residual, em breve estará superado. A variação casuística da jurisprudência – que tampouco é a regra – está associada, sobretudo, às competências penais nesses tempos convulsionados, e revela que ainda é preciso lutar contra a cultura de leniência e impunidade com a criminalidade do colarinho branco, bem como contra o compadrio em geral. Por fim, quanto ao foro privilegiado, está em curso o julgamento da proposta de restringi-lo drasticamente, deixando-o limitado aos fatos praticados no cargo e em razão do cargo. A maioria absoluta do tribunal já aderiu a ela.

Parte II

A inestimável contribuição do STF para a democracia brasileira

I. A proteção dos direitos fundamentais

O Estado democrático de direito envolve três componentes essenciais: governo da maioria, limitação do poder e respeito aos direitos fundamentais. Manter o equilíbrio entre os três termos dessa equação é a missão das supremas cortes. No tocante à proteção dos direitos fundamentais – uma de suas atribuições principais –, o Supremo teve papel admirável, contribuindo para a derrota de preconceitos e de visões autoritárias da vida. Os exemplos são numerosos. Em relação à comunidade LGBT, (i) assegurou direitos plenos aos casais homoafetivos e (ii) está em vias de permitir aos transexuais o registro do nome social, independentemente de cirurgia de redesignação de sexo. No tocante às mulheres, (i) assegurou seus direitos reprodutivos em caso de anencefalia e, em qualquer caso, até o terceiro mês de gestação (decisão da 1a Turma); (ii) reforçou a proteção contra a violência doméstica na interpretação da Lei Maria da Penha e nas situações de estupro; e (iii) pôs fim à desequiparação entre o casamento e a união estável, para fins de sucessão hereditária, o que causava grave discriminação à mulher não casada.

Também no que diz respeito à população negra, validou as ações afirmativas (i) no acesso às universidades e (ii) no ingresso nos cargos públicos, (iii) assim como protegeu os direitos das comunidades quilombolas. Quanto aos índios, o Supremo assegurou a demarcação de grandes reservas, que protegem não apenas as populações nativas, como também o meio ambiente. Em matéria de liberdade de expressão, derrubou a interpretação que exigia autorização prévia para a divulgação de biografias e foi extremamente proativo na proteção da liberdade de imprensa. Em tema de liberdade científica, assegurou as pesquisas com células-tronco embrionárias, importante fronteira da medicina contemporânea. E esteve na vanguarda da ética animal, uma percepção que só agora começa a entrar no radar da sociedade, proibindo a briga de galo, a farra do boi e a vaquejada. Na vida, a gente deve saber comemorar as vitórias.

II. A proteção das regras do jogo democrático e da moralidade política e administrativa

Outro papel decisivo de uma suprema corte é evitar o abuso dos governantes e das maiorias políticas. Também aqui o tribunal teve momentos de elevação. Um deles foi a proibição do modelo mafioso de financiamento eleitoral por empresas que vigorava no país. Merecem registro, da mesma forma, a validação e a interpretação expansiva da lei da ficha limpa. A intervenção para impor regras ao procedimento de impeachment, evitando que ele fosse conduzido errática e tendenciosamente, embora tenha gerado alguma incompreensão, foi um dos pontos altos do tribunal. Quanto ao mérito, faltava atribuição constitucional ao Supremo para se pronunciar. No esforço por promover decência política, o STF proibiu o nepotismo nos três Poderes, contribuindo para o enfrentamento da cultura patrimonialista que ainda é onipresente no país. Também procurou impor um mínimo de fidelidade partidária no desmoralizado sistema político brasileiro. E, em muitas situações, foi capaz de conter abuso e desvio de poder, como na recente suspensão cautelar de aspectos inaceitáveis do decreto presidencial de indulto.

III. Os diferentes papeis de uma suprema corte

Supremas cortes desempenham três grandes papéis em uma democracia: contramajoritário, representativo e iluminista. Sua atuação contramajoritária se dá, tipicamente, quando o tribunal declara a inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato do Poder Executivo. Essa é o única atribuição que vem expressa na Constituição. Por não enxergarem além da literalidade dos textos, há autores que só reconhecem este papel. Cortes constitucionais, porém, desempenham também uma função representativa, quando atendem demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a hora pelo Legislativo. Na história recente do Brasil, proibição do nepotismo, fim do financiamento eleitoral por empresas e fidelidade partidária se inserem nessa categoria: foram decididas na omissão ou contra a vontade do Congresso, para acudir inequívocas reivindicações da sociedade, não acolhidas em razão de um déficit de representatividade.

Já o papel iluminista deve ser exercido com grande parcimônia e autocontenção, em conjunturas nas quais é preciso empurrar a história. Em alguns momentos cruciais do processo civilizatório, a razão humanista precisa impor-se sobre o senso comum majoritário. A abolição da escravatura ou a proteção de mulheres, judeus, negros, homossexuais, deficientes e minorias em geral foram conquistas que nem sempre puderam ser feitas pelo processo político majoritário. É preciso que um órgão não-eletivo ajude a dar o salto histórico necessário. Exemplos de decisões iluministas de cortes constitucionais: fim da segregação racial nas escolas públicas nos EUA; proibição da tortura de “terroristas” em Israel; abolição da pena de morte na África do Sul; reconhecimento das uniões homoafetivas no Brasil. Há exemplos pelo mundo afora. Pela posição do professor Conrado Hübner Mendes, nada disso teria acontecido, e viveríamos sob o risco da tirania da maioria e do paternalismo moralista. Com o respeito devido e merecido, esta é uma visão superada desde o segundo pós-guerra.

Parte III

O STF e o momento brasileiro: a dura luta contra a corrupção

I. Extensão e profundidade do problema

A corrupção no Brasil, que vem em processo acumulativo desde muito longe, não se manifesta em falhas individuais ou pequenas fraquezas humanas. Ela é fruto de um pacto oligárquico celebrado entre boa parte da classe política, do empresariado e da burocracia estatal para saque do Estado brasileiro. O modo de fazer política e de fazer negócios no país funciona mais ou menos assim: o agente político relevante indica o dirigente do órgão ou da empresa estatal, com metas de desvio de dinheiro; o dirigente indicado frauda a licitação para contratar empresa que seja parte no esquema; a empresa contratada superfatura o contrato para gerar o excedente do dinheiro que vai ser destinado ao agente político que fez a indicação, ao partido e aos correligionários. Note-se bem: este não foi um esquema isolado! Este é o modelo padrão. A ele se somam a cobrança de propinas em empréstimos públicos, a venda de dispositivos em medidas provisórias, leis ou decretos; e os achaques em comissões parlamentares de inquérito, para citar alguns exemplos mais visíveis. Nesse ambiente, faz pouca diferença saber se o dinheiro vai para a campanha, para o bolso ou um pouco para cada um. Porque o problema maior não é para onde o dinheiro vai, e sim de onde ele vem: de uma cultura de desonestidade que foi naturalizada e passou a ser a regra geral.

II. O papel decisivo do STF na mudança da cultura de impunidade

O Supremo Tribunal Federal tem dado uma contribuição importante para o enfrentamento deste estado de coisas, ainda que de forma menos vigorosa do que pessoalmente acho que deveria. De fato, ao longo do julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão), pela primeira vez, empresários, políticos e burocratas foram condenados por crimes como corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituições financeiras. Foi uma virada histórica na cultura da impunidade, que abriu caminho para a Operação Lava-Jato. Na sequência histórica, com participação direta ou indireta do Supremo, vieram a ser presos três ex-presidentes da Câmara dos Deputados, dois ex-chefes da Casa Civil, um ex-secretário de Governo da Presidência da República, ex-governadores, alguns dos maiores empresários do país e um político símbolo da corrupção atávica. Impossível negar que o Brasil já mudou.

Foi decisiva, para esta nova realidade, a decisão de permitir a execução das condenações penais após o 2º grau. Pela primeira vez, ricos delinquentes, que sempre escapavam do sistema penal pela procrastinação indefinida, passaram ser punidos e a colaborar com a Justiça. O impacto prático dessa modificação foi expressivo e abrangente, desbaratando esquemas diversos. Sem surpresa, já se fala em voltar atrás. Parte da elite brasileira, inclusive no Judiciário, milita no tropicalismo equívoco de que corrupção ruim é a dos outros, mas não a dos que frequentam os mesmos salões que ela. Infelizmente, somos um país em que alguns ainda cultivam corruptos de estimação. Mas há um sentimento republicano e igualitário crescente, capaz de vencer essa triste realidade.

III. A reação oligárquica

A reação oligárquica não tardou. A Nova Ordem passou a atingir pessoas que se imaginavam imunes e impunes. Para combatê-la, uma enorme Operação Abafa foi deflagrada em várias frentes. Entre os representantes da Velha Ordem, há duas categorias bem visíveis: (i) a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e (ii) um lote pior, que é o dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente. Gente que tem aliados em toda parte: nos altos escalões, nos Poderes da República, na imprensa e até onde menos seria de se esperar. Mesmo no Judiciário ainda subsiste, em alguns espaços, a mentalidade de que rico não pode ser preso, não importa se corrupto, estuprador ou estelionatário. Volta-se aqui à malsinada competência penal do Supremo. Neste universo de criminalidade, em que se misturam ideologia, desonestidade e projetos de poder, coube ao tribunal o ônus de arbitrar as perdas e danos causados pela tempestade ética, política e econômica que se abateu sobre o Brasil. Seria ingenuidade supor que pudesse escapar ileso, sem desagradar a muitos, de todos os lados. Onde foi possível, o tribunal exerceu sua função moderadora. Mas seria fantasioso imaginá-lo como uma instância hegemônica, capaz de neutralizar todas as tensões e atritos vindos dos outros dois vértices da Praça dos Três Poderes. Com um detalhe: o Supremo é uma instituição plural. Não tem chefe. Hierarquia existe é nas Forças Armadas. Este foi o outro filme.

Conclusão

Em um livro notável, intitulado “Por que as Nações Fracassam”, Daron Acemoglu e James A. Robinson exploram as causas da prosperidade e da pobreza nos diferentes países. A principal conclusão da obra é que o sucesso dos países está associado à existência de instituições políticas e econômicas que não sejam apropriadas pelas elites, mas que sejam verdadeiramente inclusivas, capazes de dar a todos segurança, igualdade de oportunidades e confiança para inovar e investir. E promover a “destruição criativa” da Velha Ordem. É possível – apenas possível – que o Brasil esteja vivendo um momento de refundação, um novo começo. Aos trinta anos de democracia, as instituições estão sendo construídas e consolidadas. Uma das tarefas mais difíceis é derrotar a cultura da desigualdade, da apropriação privada do que é público e do compadrio no andar de cima, que sempre adiaram o futuro do país.

Sem ter conseguido escapar de algumas armadilhas deixadas pelo passado, o Supremo Tribunal Federal tem prestado bons serviços à estabilidade institucional e ao avanço social no Brasil, protegendo as regras do jogo democrático e assegurando o respeito aos direitos fundamentais. Os aspectos mais problemáticos de sua atuação se deram relativamente a uma competência que ele não deveria ter: a de funcionar como juízo criminal de 1º grau para políticos encrencados. Mesmo assim, vem tendo papel decisivo no enfrentamento da corrupção, contribuindo de forma relevante – ainda que nem sempre linear – para atender a imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo que germinou na sociedade brasileira. Temos andado na direção certa, ainda quando não na velocidade desejada. E, nos dias ruins, há sempre um consolo libertador, que vale para todos e ajuda a mudar o mundo: não importa o que esteja acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder.

______________

*Luís Roberto Barroso é mestre em Direito pela Universidade de Yale, Doutor e Livre-Docente pela UERJ, Pós-Doutor pela Universidade de Harvard. Professor titular da UERJ. Professor do UniCEUB. Ministro do STF.






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