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Acordo de não-persecução penal: aprofundamento da atuação negocial do Ministério Público e valorização da autonomia da vontade do investigado

O acordo de não-persecução penal constitui um promissor avanço do direito processual penal brasileiro. Parece precipitado rejeitá-lo, sem que se reflita melhor sobre o assunto.

29/9/2017

Quem comete crime é passível de prisão. O Código Penal descreve mais de duas centenas de condutas consideradas crimes. Outras leis, tão abundantes quanto diversificadas, reproduzem numerosos comportamentos classificados como infrações penais: Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher1 , Interceptação Telefônica2 , Genocídio3 , Lavagem de Dinheiro4 , Organizações Criminosas5 , Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e as Relações de Consumo6 , Meio Ambiente7 , Desarmamento8 , Defesa do Torcedor9 , Idoso10 etc. Até no Estatuto do Índio11 e na lei que trata de organismos geneticamente modificados (OGM)12 há descrição de fatos puníveis. Em suma, no Código Penal e nas demais leis penais (extravagantes) cabe a própria existência humana.

Qualquer maneira anormal, desviante, inadequada ou imprópria de se comportar, de agir e de viver pode, em tese, ser enquadrada nos tipos/modelos penais de conduta. Por exemplo: urinar em lugar público (ato obsceno13), corte forçado do cabelo (lesão corporal14), chamar alguém de incompetente (injúria15 ), abate clandestino de gado (infração de medida sanitária preventiva16 ), soltar balões (crime contra a flora17 ), prática habitual de passes espirituais com o intuito de cura (curandeirismo18 ), jogo das tampinhas19 (induzimento à especulação20 ). Sequer o descuido e a imprudência escapam desse latente enquadramento – ex.: abandonar animal de carga em via pública (omissão de cautela na guarda ou condução de animais21) e motorista que se envolve em acidente com morte, enquanto dirige falando ao celular (praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor22).

Em meio à infinidade de infrações penais, contudo, a expressiva maioria das pessoas está presa no Brasil pela prática de poucos e determinados crimes, cuja quantidade é possível contar com os dedos das mãos: latrocínio (roubo seguido de morte), estupro, tráfico de drogas, roubo com emprego de arma, homicídio cometido por certo motivo (v.g. fútil e torpe) e modo (v.g. emprego de veneno, tortura, à traição, de emboscada), entre alguns outros. A quase totalidade dos demais crimes não resulta, via de regra, em prisão.

Na mesma vala comum, pois, encontram-se os que não precisam e os que fazem jus à prisão. O sistema de justiça criminal, incapaz de investigar, processar e julgar todos os crimes, e sempre às voltas com uma demanda incessante e invencível, funciona por amostragem. Há uma massa de pessoas investigadas e indiciadas sem processos; acusados e réus sem sentenças. À espera de delegados de polícia que concluam a apuração das infrações penais e da sua autoria; ao aguardo de membros do Ministério Público que promovam as respectivas ações penais; e na expectativa de juízes que as julguem. Pessoas, enfim, processualmente, reféns das leis e dos responsáveis pela sua aplicação.

Também, vê-se audiências designadas para dali a 3, 4, 5 anos da data da ocorrência do crime; punibilidades extintas antecipadamente pela prescrição (supõe-se qual será a quantidade de pena ao final do processo, e com base nela se declara que decorreu o prazo para aplicá-la), acarretando a inutilidade dos processos; quando não tem lugar essa prescrição em perspectiva (virtual), repudiada pelos tribunais superiores, porque não prevista na lei, mutirões judiciais são realizados para aplicar in concreto a pena, e, apoiada nela, declarar que passou o prazo para punir. De igual forma, extingue-se o processo. Um simulacro de julgamento.

Tem-se, então, um sistema de justiça criminal que deixa os acusados em geral, inclusive o primário, sem qualquer passagem pela polícia, em um estado de indefinição/incerteza que perdura anos. Enquanto para a sociedade eles estão fora do sistema, os investigados sentem-se inseridos nele, sob a constante e espera ansiosa de serem chamados – sabe-se lá, se e quando - para acertar as contas com a justiça. Muitos permanecem nesse limbo processual até que se possa utilizar o tempo decorrido como uma borracha para apagar os crimes, pela prescrição.

Nessas circunstâncias, em que as reformas das leis penais e processuais penais tardam décadas – quando, nunca chegam -, a resolução 181 do CNMP instituiu o acordo de não-persecução penal. A confissão da prática de crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa, que antes resultava, efetiva ou potencialmente, em provável processo, e possível condenação, agora pode ser objeto de uma solução de compromisso. Um compromisso assumido entre o Ministério Público e o investigado, tendo por fim o mesmo resultado – quiçá, melhor – que se alcançaria pelo processo.

Um caminho que, além de ser mais curto e célere, em razão de prescindir do processo, respeita a autonomia da vontade do próprio investigado. Pelo acordo, baseado na boa-fé e confiança recíprocas, ele pode determinar por si mesmo o que melhor lhe convier, preenchidos os requisitos exigidos pela norma23. Além disso, evidencia-se menos gravoso porque livra o investigado do processo, que "impõe custos instantâneos ao pretendido réu. Custos muitas vezes maiores do que a incerta condenação legal. Não são impostos pelo juiz nem pela lei. São custos colaterais. Verdadeiras penas sem julgamento24".

Ainda, assim, insiste-se em indagar: acordo sem previsão legal? Ocorre que se trata de procedimento! O Ministério Público só está disciplinando o modo de fazer, a forma de se encaminhar/colocar certas causas em juízo. Até este exato momento, não há processo. Como se estivesse a dizer: o acordo de não-persecução penal, quando couber, precede o exercício da ação penal. Não há inércia, mas, sim, o cumprimento da função institucional de modo menos coercitivo, por meio da precedência de resolução extrajudicial da infração cometida.

Na realidade, a possibilidade de acordos não é uma inovação da Resolução 181, do CNMP. O Código de Processo Civil/15 permite estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa, antes do processo25; e como consiste em norma que consubstancia a valorização e acolhimento da autocomposição no direito processual, por mais que se alegue a especificidade e autonomia do processo penal, em princípio, a ele se aplica, assim como aos outros ramos (v.g. civil e trabalhista), sempre que não houver manifesta incompatibilidade.

Portanto, o acordo de não-persecução penal constitui um promissor avanço do direito processual penal brasileiro. Parece precipitado rejeitá-lo, sem que se reflita melhor sobre o assunto. Caso contrário, ficará como conclusão – ainda que provisória – a afirmação do velho Hegel: Na facilidade com que o espírito se dá por satisfeito, pode-se medir a extensão daquilo que está perdendo.

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1 Lei 11.340/2006

2 Lei 9.296/1996

3 Lei 2.889/1956

4 Lei 9.613/1998

5 Lei 12.850/2013

6 Lei 8.137/1990

7 Lei 9.605/1998

8 Lei 10.826/2003

9 Lei 10.671/2003

10 Lei 10.741/2003

11 Lei 6.001/1973

12 Lei 11.105/2005

13 artigo 233 do CP

14 artigo 129 do CP. Exemplo extraído do Código Penal Comentado. Fuhrer, Maximiliano Roberto Ernesto e Fuhrer, Maximilianus Cláudio Américo Alencar. SP: Malheiros editores, 3ª edição, 2010, pág. 165.

16 artigo 140 do CP. Idem, pág. 209

17 artigo 268 do CP. Idem, pág. 482.

18 artigo 42 da Lei n. 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais)

19 artigo do 284 do CP. Idem, pág. 507

Jogo em que três tampinhas são coladas sobre uma mesa ou caixa de papelão e debaixo de uma delas uma bolinha. Movimentadas as tampinhas, tem-se que adivinhar sob qual delas se encontra a bolinha

20 artigo 174 do CP. Idem, pág. 330.

21 artigo 31, parágrafo único, alínea "a", do decreto 3.688/41 (LCP)

22 artigo 302 Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro)

23 Artigo 18 da Resolução 181, de 7 de agosto de 2017. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não-persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos arts. 91 e 92 do Código Penal;

III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail;

IV prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público.

V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

VI cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

§ 1º Não se admitirá a proposta nos casos em que:

I – for cabível a transação penal, nos termos da lei;

II – o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de coordenação;

III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei 9.099/95;

IV – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal.

24 Falcão, Joaquim. A pena é o processo. Disponível em: clique aqui.htm. Acessado no dia 25.09.17.

25 CPC, Artigo. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

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*Júlio Gonçalves Melo é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás.

*Ricardo Rangel de Andrade é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás.

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