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Interpretações sobre o direito ao esquecimento

Apesar de não prever expressamente um direito ao esquecimento, acertadamente a legislação brasileira deixa a cargo do Poder Judiciário a análise sobre cada caso.

23/6/2017

O Judiciário brasileiro se encontra diante do debate pelo reconhecimento (ou não) de um novo bem jurídico: o direito ao esquecimento. Como pano de fundo, temos o caso Aída Curi, cujo julgamento do RE 1.010.606 está pendente no STF.

No recurso extraordinário invocou-se o direito ao esquecimento com a finalidade de proteção da dignidade humana, atingida pelo alegado exercício abusivo da liberdade de expressão da mídia, que não tem caráter absoluto e que o uso da imagem da vítima e de seus familiares seria controverso e não autorizado. Além disso, foram abordadas questões como a falta de cunho jornalístico, a não configuração da contemporaneidade do tema e a consequente falta de interesse público para a configuração do exercício do direito de liberdade de expressão.

Assim, faz-se importante analisar alguns aspectos relevantes desse debate, que podem ser resumidos nos seguintes argumentos: (i) o caso Aída Curi não deve ser tutelado sob o enfoque do direito ao esquecimento, mas sim pelos direitos de personalidade, previstos no Código Civil e na CF/88; (ii) discutir o direito ao esquecimento é relevante para a regulação da responsabilidade de provedores de conteúdo e pode ser tutelado pelas técnicas de desconexão e desindexação; (iii) ambas técnicas só devem ser aplicadas no caso a caso, sendo necessária a autorização judicial para tanto, conforme preceitua o Marco Civil da Internet; (iv) a desconexão só deve ser permitida em casos excepcionais, sob pena de se violar o direito constitucional à liberdade de expressão.

Adiante, discorreremos sobre cada um desses argumentos.

A tutela dos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro

O aspecto central do caso gira em torno da exploração indevida da imagem de Aída Curi realizada sem o consentimento dos herdeiros. O direito à imagem constitui direito de personalidade, resguardando o interesse do titular em se opor à sua divulgação, em proteção à vida privada, à honra e à intimidade. Mesmo no caso de lesão post mortem, o ordenamento jurídico, no art. 20 do Código Civil, preserva a imagem do de cujus, não só em atenção à memória dos mortos, mas também para resguardar de desconfortos e violações os familiares.

O direito à imagem se desdobra em duas perspectivas. Na primeira existe a proteção em face da exploração econômica não autorizada. Dessa forma, ao se utilizar de imagem alheia, com a finalidade de auferir lucros, sem a sua autorização ou de seus sucessores, constitui locupletamento indevido e enseja a reparação pecuniária cabível, conforme art. 12 do Código Civil. Já na segunda perspectiva do direito à imagem, a tutela dos bens extrapatrimoniais surge diante de situações que atentem contra os direitos de personalidade. De tal forma que eventuais abusos no uso de direito de imagem e dos demais direitos personalíssimos conexos, a exemplo, de relatos que se mostrem inverídicos ou que representem ofensas à honra e intimidade, suscitam medidas de reparação diversas, de natureza repressiva (indenização, direito de resposta) ou preventiva (impedir divulgação). O art. 186 do Código Civil dispõe tratar-se de ato ilícito pela violação do direito que causa dano a outrem, tanto material como moral.

Neste sentido, em 2015, o STF julgou procedente a ADI 4815 e firmou a tese de que não é necessária autorização prévia do indivíduo biografado e nem de seus familiares para a publicação de biografias. O julgamento se desenvolveu em torno da tensão entre a liberdade de expressão vs. os direitos de personalidade, quanto à divulgação de informações que envolvam diretamente uma determinada pessoa. Embora relacione essa dicotomia de princípios, o julgamento não ocorreu à luz do direito ao esquecimento, mas sob a tutela típica dos direitos de personalidade.

Ademais, um novo elemento nesse cenário diz respeito ao caso Aída Curi ser caracterizado como um fato de interesse público, por conter dados históricos. Essa noção vai de encontro ao próprio conceito e implicações do direito à memória1, o que afasta ainda mais a ideia de esquecimento do caso do Recurso Extraordinário. Uma solução para preservar a privacidade da família da vítima seria tornar anônimos os dados da vítima, mas não eliminar o fato histórico em si. Aumentar o âmbito de abrangência do direito ao esquecimento pode acabar por esvaziar ou tornar sem identidade essa segmentação de tutela jurídica.

O direito ao esquecimento no âmbito da internet

Apesar de o caso se referir à tutela de direitos da personalidade, a discussão a respeito do chamado direito ao esquecimento é essencial frente às novas tecnologias. Este tema não é novo e retoma a figura da reabilitação criminal. A disponibilidade e proliferação de informações proporcionada na nova era digital, bem como a velocidade dos meios de comunicação, permitem agregar valor comercial aos dados pessoais, transformando-os em moeda de troca na internet2, o que leva à necessidade de atentar-se à proteção desses dados e ressignificar a noção de exposição e, por conseguinte, do conceito de direito ao esquecimento.

O direito ao esquecimento no ciberespaço remonta a duas noções básicas que necessitam ser diferenciadas para compreender melhor seu significado: desindexação e desconexão. A desindexação consiste na retirada de determinada informação dos resultados de pesquisa em sites de busca virtuais, continuando, entretanto, armazenadas nos sites hospedeiros. A principal garantia desse direito é minimizar os efeitos da ampla divulgação e exposição da informação propiciada pelos sites de busca. A desconexão ou remoção do conteúdo trata-se do efetivo impedimento de armazenamento de informações em servidores ou sites, garantindo a tutela do esquecimento.

A aplicação de ambas as técnicas deve ser realizada com parcimônia, por implicarem em potencial limitação à liberdade de expressão. Daí a importância do enfrentamento de cada caso pelo Judiciário. Como veremos no próximo tópico, este tem sido o modus operandi estabelecido pelo legislador brasileiro.

O controle do conteúdo em mídias eletrônicas na regulamentação brasileira

A questão da atribuição de responsabilidade aos provedores de aplicação/hospedagem, por conteúdo ilícito publicado em sua plataforma e o dever de removê-lo da rede, vem à tona nesse contexto. No Brasil, antes do Marco Civil da Internet, o entendimento jurisprudencial era que o provedor de aplicação tinha o dever de remover do ar do ilícito hospedado em sua plataforma, no prazo de vinte e quatro horas, mediante notificação extrajudicial, remontando à não responsabilização do provedor mediante a retirada imediata no conteúdo após ser notificado ("notice and take down"). O art. 19 do MCI, no entanto, altera esse entendimento, ao inserir a necessidade de ordem judicial para responsabilização civil dos provedores, almejando a garantia da liberdade de expressão.

Assim, embora o esquecimento efetivo, nos moldes da ampla desconexão, seja distante da realidade na maioria dos casos, não se pode menosprezar avanços promovidos ao redor do mundo mediante a desindexação, em relação ao tema do direito ao esquecimento. A desindexação, por mais que não elimine o conteúdo em si, já minimiza a exposição pessoal decorrente dos resultados de pesquisa em sites de busca. A preocupação em garantir a proteção de dados, estimulando a manipulação responsável destes e resguardando a privacidade dos usuários é o cerne da discussão no âmbito internacional.

O panorama europeu quanto às práticas de desconexão e desindexação

A atual legislação sobre a proteção de dados pessoais, em vigor na União Europeia, é a Diretiva 95/45/CE de 1995, que estabelece diretrizes para a uniformização do tratamento de proteção de dados pessoais pelos Estados-membros, busca a proteção dos direitos individuais e prevê a imputação de penalidades por reparação de danos aos responsáveis pelos tratamentos de dados.

Em consonância com a legislação vigente (Diretiva 95/45/CE), o entendimento da Corte de Justiça da União Europeia (a "CJUE") em relação ao julgamento do caso do Sr. Mario Costeja González contra a empresa Google Spain, realizado no ano de 2014, abriu precedente para o direito de esquecimento, pelo qual as pessoas possam pedir aos provedores a desindexação de suas informações pessoais quando os resultados das buscas por seus nomes forem ofensivos3. No caso, os resultados do site de busca da Google apresentavam uma publicação de um jornal, datada de 1998, sobre um leilão de imóveis, que se realizaria em razão de dívidas. Por não querer ter aquele fato associado à sua imagem, pois a dívida já teria sido quitada, e também pelo fato de que a notícia não apresentava qualquer relevância e contemporaneidade, o sr. Mario Costeja González requereu a desindexação de seu nome em relação a tal notícia.

A CJUE decidiu ser incompatível com a legislação de proteção de dados vigente a permanência dos links que o sr. Mario Costeja González solicitou exclusão, nos resultados de buscas do site Google, tendo em vista os princípios de proteção da privacidade e de dados pessoais. Portanto, foi estabelecida a responsabilidade dos sites de busca sobre os resultados e ainda, atribuída a função destes em avaliar as solicitações de desindexação dos indivíduos interessados. A decisão também deixou clara a necessidade de avaliação do interesse público em relação à informação a ser desindexada, especialmente se o indivíduo tiver vida pública.

Como forma de cumprir a regulação da União Europeia e a decisão da CJUE, o Google não tem removido o conteúdo de seus arquivos originais de pesquisa, mas apenas excluído os links que conectam a pesquisa do nome de um indivíduo aos resultados ofensivos4, caracterizando a desindexação do conteúdo.

Nesse sentido, é de extrema relevância a compreensão sobre o entendimento da CJUE com relação à própria definição do direito ao esquecimento na Internet, já que no caso Gonzalez prevaleceu o entendimento pela desindexação e não remoção do conteúdo em si. Desde o julgamento do caso Gonzalez, em 2014, o Google recebeu mais de 720 mil solicitações de desindexação e as acatou em proporção aproximada de 43% (quarenta e três por cento)5.

Outro julgamento da CJUE, referência para o tema, é o case C-398/15 Manni.6 O caso se refere à solicitação de um empresário, o sr. Manni, para a remoção de seus dados pessoais do Registro Público de Empresas (Public Registry of Companies). O requerente alegou ter perdido clientes que efetuaram pesquisas sobre seu histórico em razão de uma falência declarada por uma empresa previamente administrada por ele. As questões centrais no caso Manni se referiam à necessidade de os Estados-membros da União Europeia manterem públicos os dados dos registros das empresas, bem como qual seria o tempo necessário para disponibilização dos dados pessoais.

A CJUE entendeu que as disposições da Diretiva 95/45/CE eram aplicáveis ao caso, concluindo pelo caráter pessoal dos dados do sr. Manni, e ainda, que a autoridade titular dos registros era efetivamente a controladora de tais dados. Contudo, a CJUE não aplicou o direito ao esquecimento, e o pleito de remoção de dados foi negado por tratar-se de disponibilidade de informações em consonância com a legislação vigente e existir legítimo interesse público de terceiros na busca por tais informações.

Em abril de 2016, a União Europeia aprovou regulamentação relacionada à política de proteção de dados e à privacidade do usuário, a General Data Protection Regulation (GDPR), que entrará em vigor em 25/05/2018, substituindo a atual legislação sobre o tema, a Diretiva 95/45/CE. A GDPR foi elaborada com a finalidade de harmonizar as leis de privacidade de dados da Europa, proteger e empoderar a privacidade de dados dos cidadãos da União Europeia, bem como para remodelar a forma como as organizações abordam a privacidade de dados7.

É previsto, expressamente, no artigo 17 da GPDR o direito ao esquecimento (o "Right To Be Forgotten"), pelo qual os titulares de dados poderão solicitar aos controladores de tais dados o seu "apagamento" (conforme a redação original da GPDR, "erasure"), cessando a disseminação. Como condições para tal pedido, os dados devem ter deixado de ser relevantes para os propósitos originais ou tenha havido a retirada de consentimento pelos titulares. Deve-se notar também, que este direito preconizado pela GPDR exige que os controladores dos dados analisem se há interesse público na disponibilidade dos dados, ao considerar tais pedidos.

A crítica relevante que se faz quanto à GPDR, no contexto ora debatido, se refere ao alargamento do conceito do direito ao esquecimento, que no julgamento do caso Gonzalez ficou limitado à desindexação de informações dos sites de busca (o "delist"), e de acordo com a redação do GPDR seria levado à esfera de efetiva remoção de conteúdo (o "apagamento" ou "erasure").

Considerações finais

A despeito do entendimento de que o Caso Aída Curi deva ser tutelado sob o aspecto dos direitos da personalidade, o julgamento do Recurso Extraordinário expandiu o debate sobre o direito ao esquecimento, o qual se torna a cada dia mais relevante e complexo devido ao seu caráter multidisciplinar e transnacional.

Nesse momento sem precedentes históricos, no qual o uso da Internet se associa à própria noção de cidadania e ao exercício da democracia, e em que ocorre um aumento significativo do exercício da liberdade de expressão, é imprescindível ponderar sobre os direitos constitucionais de privacidade e intimidade em face à liberdade de expressão e interesse público nas informações.

Seguindo o atual entendimento europeu a desindexação de dados prevalece em relação à desconexão, de forma que o direito ao esquecimento pode ser considerado mitigado.

Contudo, isso poderá mudar com a nova legislação europeia (GPDR), que entrará em vigor em 2018. E em que pese ser considerada um marco regulatório na proteção de dados, especialmente por prever expressamente o direito ao esquecimento, há diversas críticas à GDPR, principalmente com relação ao extremo poder atribuído aos provedores e controladores dos dados, podendo ser caracterizado como censurador.

Apesar de não prever expressamente um direito ao esquecimento, acertadamente a legislação brasileira, no que se refere à responsabilidade dos provedores, deixa a cargo do Poder Judiciário, a análise sobre cada caso.

O debate ainda é incipiente e extenso, especialmente no Brasil, considerando o tempo de vigência do Marco Civil da Internet, bem como a carência de regulamentação específica sobre a proteção de dados pessoais.

Com toda certeza, o entendimento do STF quanto ao tema se tornará paradigma para a análise de diversos casos que envolvam controvérsias similares. Daí a importância de uma decisão ponderada, que encontre o equilíbrio entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade.

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1 ALVES, J. C. R.; RODRIGUES, M. W. A memória coletiva e o direito ao esquecimento. Anais do VII Congresso Brasileiro da Sociedade da Informação, São Paulo, vol. 7, 2014, p. 84-90.

2 NOLETA, E.; PALMA, K. Direito ao esquecimento Discussão europeia e sua repercussão no Brasil. p. 271–283, 2013.

3 The Guardian - EU court backs 'right to be forgotten': Google must amend results on request. Disponível aqui. Acesso em 24/05/2017.

4 Washington Post - Google has now ‘forgotten’ more than a quarter-million URLs. Disponível aqui. Acesso em 24/05/2017.

5 Google - Transparency Report. Disponível aqui. Acesso em: 24/05/2017.

6 Court Of Justice of the European Union. Press Release nº 27/17. Disponível aqui. Acesso em 07/06/2017.

7 EU General Data Protection Regulation. Disponível aqui. Acesso em 07/06/2017.
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*Alexandra Krastins Lopes Souto Maior é advogada do escritório Lemos e Associados Advocacia, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Pós-graduanda em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora do LAPIN - Laboratório de Pesquisa em Direito Privado e Internet.

*Amanda Nunes Lopes Epiñeira Lemos é advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Brasília, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e do LAPIN - Laboratório de Pesquisa em Direito Privado e Internet.

*Ana Carolina Dias Ribeiro é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, Pós-graduada em Direito Eletrônico pela Universidade Estácio de Sá e pesquisadora do LAPIN - Laboratório de Pesquisa em Direito Privado e Internet.


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