“Cada um de nós tem o direito natural, recebido de Deus, de defender sua própria pessoa, sua liberdade, sua propriedade.”1
O filósofo alemão Wilhelm Von Humboldt dizia que a segurança é uma “condição que o homem é inteiramente incapaz de realizar por seus próprios esforços.”2 Com efeito, todos aqueles que se propuseram a estudar as razões da existência e objetivos do Estado a ele atribuíram uma e somente uma função: a de fornecer segurança aos indivíduos. Nada obstante, em que pese ser o Estado o monopólio do uso da força para atingir esse fim de prover segurança, o indivíduo conserva, em certas circunstâncias, o direito do uso direto da força para preservação de sua vida e também da de terceiros, vale dizer, o direito à legítima defesa. Thomas Hobbes esclarece que “com a instituição do Estado, ninguém renunciou à defesa de sua vida e de seus membros, quando a lei não pode chegar a tempo de assisti-lo.”3 Trata-se, assim, de um direito inato do homem, fundado na sua natureza mesma. “O direito natural de cada indivíduo de se defender e aos seus bens contra um agressor e a prestar assistência e a defender qualquer outro indivíduo cuja pessoa ou bens sejam violados, é um direito”, pontifica Spooner, “sem o qual os homens não poderiam existir na terra. E um governo só é legítimo na medida em que assume esse direito natural dos indivíduos e em que é limitado por esse mesmo direito.”4 Isso significa dizer que qualquer legislação positiva que negue este direito natural do homem ou dele o prive não pode subsistir. Ocorre que, infelizmente, tal legislação existe e subsiste no Brasil há mais de 10 anos. Claro que estou me referindo ao odioso Estatuto do Desarmamento, que deixou a população brasileira, que sempre se sentiu insegura e atemorizada, aos caprichos dos malfeitores. Desde a vigência da referida lei a criminalidade só vem aumentando e não poderia ser de outro modo, pois há mais de 200 anos Beccaria já denunciava o efeito de leis que retiram do cidadão o direito de portar armas:
“Podem igualmente considerar-se como contrárias ao fim de utilidade as leis que proíbem o porte de armas, porque apenas desarmam o cidadão pacífico, enquanto a deixam a arma nas mãos do criminoso, muito habituado a violar a convenções mais sagradas para respeitar aquelas que são somente arbitrárias. (...). Essas leis apenas servem para aumentar os assassínios, colocam o cidadão indefeso aos golpes do criminoso, que fere mais audaciosamente um homem sem armas; favorecem o bandido que ataca, em detrimento do homem honesto que é atacado.”5
É evidente que, se uma pessoa já deliberou matar, estuprar ou roubar (crime-fim e mais grave), para ela é absolutamente indiferente que o porte de armas (crime-meio) seja criminalizado. O efeito, reitere-se, é aquele assinalado por Beccaria: facilita-se a vida do criminoso e dificulta-se a da vítima. À objeção feita pelos desarmamentistas de que as armas de fogo são letais e por isso devem ser proibidas, poder-se-ia opor o simples argumento de que facas, tacos de baseball e garrafas de vidro também o são, pois tais objetos podem muito bem serem utilizados por uma pessoa para tirar a vida de outra. A arma de fogo, tal como os objetos referidos linhas atrás, é um objeto inanimado, que pode ser utilizada para o bem ou para o mal. O triste fato é que, com a lei 10.826/03, a arma de fogo vem sendo utilizada somente para o mal, pois a sua utilização para o bem (legítima defesa própria ou de terceiros6) não é possível, pois a referida lei faz com que somente os malfeitores tenham acesso a ela.
Em trabalho específico intitulado Legítima Defesa, o jurista italiano do século XIX Julio Fioretti observou com percuciência que a ciência por parte do agressor de que a vítima pode lhe oferecer resistência é um forte fator de desestímulo ao cometimento do delito:
“Verificado que no espírito limitado do homem delinquente somente o receio daquelas ameaças que são de uma realização iminente e certa impede-o de realizar seus desígnios, torna-se evidentíssimo que o temor da resistência que o malfeitor poderá encontrar no agredido deve ser um dos principais fatores de intimidação. Que seria se o salteador nada tivesse a temer do viandante, se o homicida nada tivesse que recear do ferido e o ladrão nada do roubado?”7
Noutros termos, a prevenção dos homicídios, latrocínios, estupros e roubos é alcançada se outorgando, ou melhor, devolvendo ao cidadão o direito de portar uma arma de fogo para sua defesa, pois a simples ciência que o criminoso tem de que está diante de uma população armada é fator que certamente restringe, embora não anule de todo, a ideia que surge em sua mente de praticar um delito. Quão diferente seria o resultado daquela noite na boate em Paris, se a França não fosse um país desarmamentista!
Nesse contexto, para que a legítima defesa, instituída no art. 25 do Código Penal, tenha algum significado e valor para os cidadãos, devem eles ter a sua disposição, quando do exercício desse sagrado direito, os meios necessários de o pôr em prática. E o que a lei 10.826 faz é justamente retirar esses meios necessários que o cidadão precisa para se defender, anulando por completo o significado e fundamento do art. 25. Nas preciosas lições de Hobbes, “sendo inútil a um homem ter direito aos fins, se o direito aos meios necessários lhe é negado, e todo homem tendo o direito de se preservar, deve-se ser também reconhecido a ele, o direito à utilização de todos os meios e a prática de todas as ações sem as quais ele não pode se preservar. Agora, se os meios que o homem está a ponto de usar, ou a ação que está executando, são necessários ou não à preservação de sua vida e membros, pelo direito de natureza, disto só ele pode ser juiz.”8 (sem grifos no original)
Por outro lado, além dessa perspectiva jusnaturalista da legítima defesa, pode-se ainda enxergá-la como uma lídima forma de colaboração dos particulares na repressão dos delitos, conforme a argumentação de Julio Fioretti: “Quem não vê que a legítima defesa não é outra coisa senão uma das formas da luta contra o delito? Ela representa aquea parte do magistério social de repressão que, sem perigo, pode ser deixada à iniciativa particular.” 9
Ademais, digno de se registrar que o Estado brasileiro em particular, além de negar a legítima defesa ao cidadão (pois, insista-se, lhe nega os meios a ela), ainda se demite do dever constitucionalmente imposto de fornecer segurança, alegando justamente a “não onipresença do Estado”:
“APELAÇÃO AÇÃO INDENIZATÓRIA - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO Latrocínio ocorrido em via pública - Pretensão inicial voltada à reparação por danos materiais e morais alegadamente suportados pelos autores, em virtude de suposta falha do Estado na prestação do serviço de segurança pública Inadmissibilidade - Análise que deve se dar sob o enfoque da responsabilidade subjetiva - Estado que, conquanto titular do dever genérico de zelar pela segurança pública (art. 144, da CF/88), não é onipresente, pelo que, a fim de se escusar de sua responsabilidade deve engendrar esforços no sentido de prevenir novos crimes ou mesmo atuar diligentemente na persecução criminal” (Apelação nº 0000065-16.2012.8.26.0053, Rel. Paulo Barcellos Gatti, 4ª Câmara de Direito Público, j. em 10/04/2017)10 (sem grifos no original)
Ora, se a não onipresença do Estado é uma justificativa para isentá-lo da responsabilidade de fornecer segurança em todo e qualquer momento, daí sucede que o direito de portar uma arma de fogo encontra sua razão de ser nessa mesmíssima justificativa, vale dizer, para que o indivíduo possa “exercer tal direito de defesa nos casos momentâneos em que estariam perdidos se aguardassem o socorro das leis.”11 E se o Estado brasileiro simplesmente se demitiu da sua função de prover segurança, seja preventivamente, mostrando-se incapaz de controlar a assustadora e hedionda criminalidade, seja a posteriori, negando a indenização após o cometimento dos delitos, o mínimo que se espera dele é que não impeça o cidadão de “fornecer a si próprio” essa segurança.
A Câmara dos Deputados da Itália esboçou um movimento tímido, mas esperançoso para a comunidade internacional, nesse sentido, ao aprovar um projeto de lei que permite aos cidadãos o porte de armas pelo menos à noite.12
Como cidadãos, em suma, temos o dever e o direito de exigir dos poderes constituídos a revogação do Estatuto do Desarmamento, pois já vigorou tempo o suficiente para demonstrar a sua incapacidade de fazer reduzir a criminalidade; ao contrário, aumenta-a e, o que é pior, viola o mais sagrado direito do homem: o direito à legítima defesa da sua vida, sua liberdade e da sua propriedade.
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1. BASTIAT, Frederic. A lei. Instituto Ludwig Von Mises, 3ª Edição, p. 11.
2. HUMBOLDT, Wilhelm Von. Os limites da ação do Estado. Editora Topbooks, p. 188.
3. HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, Martin Claret, p. 236.
4. SPOONER, Lysander. Vícios não são crime. Editora A, p. 23.
5. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Martin Claret, p. 88. (sem grifos no original)
6. Nesse contexto, veja-se o interessante precedente no HC 111.488/MG, Rel. Luiz Fux, j. em 17/04/2015, no qual foi concedida a ordem para anular a condenação do paciente por porte de arma de fogo, por ter sido o fato típico praticado em situação de legítima defesa de terceiro (no caso, o paciente salvou a sua sobrinha de um estupro). Eis um trecho da decisão: “Destarte, tendo sido afastado o crime de disparo de arma de fogo, por faltar ilicitude à conduta, uma vez que praticada em legítima defesa de terceiro, não subsiste o crime de porte ilegal de arma de fogo no mesmo contexto fático, sob pena de condenação por uma conduta típica, mas não ilícita.”
7. FIORETTI, Julio. Legítima defesa: estudos de criminologia. Editora Líder, 2002, p. 81. (sem grifos no original)
8. HOBBES, Thomas. Do Cidadão, Martin Claret, p. 34.
9. FIORETTI, Julio. Legítima defesa: estudos de criminologia. Editora Líder, 2002, p. 48. (sem grifos no original)
10. São vários os precedentes dos tribunais brasileiros nesse sentido.
11. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Martin Claret, p. 209.
12. Interessante notar que, apesar do avanço, o deputado italiano Matteo Salvini, conforme consta da notícia, fez uma crítica pertinente quanto à limitação do porte de armas ao período noturno, salientando que a legítima defesa é legítima defesa independentemente do horário.(Clique aqui.)
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*Nadir Mazloum é advogado.