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A inércia do réu e a estabilização da tutela antecipada

A estabilização somente se admite no procedimento de tutela antecipada concedida em caráter antecedente, não sendo possível, em regra, sua aplicação quando se tratar de tutelas provisórias de natureza cautelar, tampouco de evidência.

11/5/2017

O novo Código de Processo Civil trouxe diversas modificações ao modelo processual, contudo, nenhuma me parece mais instigante que a possibilidade de estabilização da tutela antecipada concedida em caráter antecedente, ou seja, em procedimento prévio, preparatório, ao aforamento da ação principal.

Inspirado nos ordenamentos jurídicos de França e Inglaterra, a estabilização da tutela provisoriamente deferida em procedimento de cognição sumária não é de todo uma novidade entre os estudiosos do direito, uma vez que, há muito tempo, tenta-se introduzir a ferramenta no ordenamento processual civil pátrio, como, por exemplo, através do malfadado Projeto de Lei do senado 186/05, que propunha alterar o artigo 273 do Código de Processo Civil de 1973, disciplinando a possibilidade de estabilização da tutela antecipada.

De início, uma importante ressalva: a estabilização somente se admite no procedimento de tutela antecipada concedida em caráter antecedente, não sendo possível, em regra, sua aplicação quando se tratar de tutelas provisórias de natureza cautelar, tampouco de evidência. Portanto, somente poderá ser requerida no mencionado procedimento, admitido quando a tutela for, no dizer do CPC, contemporânea ao ajuizamento da ação, muito embora tenha pecado o legislador, já que contemporânea é sinônimo de recente, atual, simultâneo, e nunca de antecedente, prévio, anterior.

Mas isso é debate para outro artigo.

Pois bem. Neófitos no manejo da ferramenta, é natural que nós, processualistas e operadores do direito em geral, deparemo-nos com toda sorte de obstáculos e incertezas, que, a propósito, já vem desafiando a doutrina processual civil. E, o que me parece mais latente é saber qual comportamento do réu é adequado para fins de sustar a possibilidade de estabilização da decisão sumária.

O artigo 304, caput, parte final do Código de Processo Civil é de textualidade inquestionável ao disciplinar que estabilizar-se-á a decisão que concede a tutela antecipada em caráter antecedente se contra ela “...não for interposto o respectivo recurso...”.

E, por evidente, o recurso cabível contra tal decisão, de natureza interlocutória, é o Agravo de Instrumento, por força do artigo 1.105, inciso I do CPC.

Os mais eméritos processualistas, contudo, vem flexibilizando a literalidade da norma, entendendo que qualquer meio de impugnação da decisão manejado pelo réu tem o condão de sustar o efeito estabilizatório da tutela provisória.

Na versão final do PL 166/10, saído do senado federal e encaminhado à câmara de deputados, onde tramitaria sob o n°. 8046/2010, antes de retornar ao Senado para sua aprovação final, assim constava do artigo 281, ipsis litteris:

Art. 281. Não sendo contestado o pedido, os fatos alegados pelo requerente presumir-se-ão aceitos pelo requerido como verdadeiros, caso em que o juiz decidirá dentro de cinco dias.
§ 1º Contestada a medida no prazo legal, o juiz designará audiência de instrução e julgamento, caso haja prova a ser nela produzida.
§ 2º Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia.

À época, ainda debruçado sob o texto provisório do PL, Eduardo Talamini (2012, p. 29) publicou artigo jurídico advogando que a impugnação prevista no texto provisório compreenderia qualquer medida efetivamente manejada pelo réu, fosse a interposição de recurso, fosse a apresentação, desde logo, da contestação.

Contudo, aprovada e sancionada a lei 13.105 de 16 de Março de 2015, que instituiu o novo CPC, a matéria restou então disciplinada pela redação definitiva do artigo 304 que, na parte final do caput estabelece a estabilização na hipótese de não manejado o competente recurso em face da decisão que concede a medida antecipatória em caráter antecedente.

Todavia, mesmo com a redação definitiva, estabeleceu-se um dissenso na prematura doutrina sobre o tema, sobre os meios de impugnação eficazes à esvaziar a possibilidade de estabilização da medida provisória satisfativa concedida de forma antecedente.

Cássio Scarpinella Bueno (2015, p. 226) adota postura positivista, anotando que “A decisão concessiva da tutela antecipada nos termos do art. 303, torna-se estável se não houver interposição do respectivo recurso (art. 304, caput), que é o agravo de instrumento (art. 1.015,I)”. No mesmo sentido, o magistério de Dierli Nunes e Érico Andrade (2016, p. 15-17) .

Talamini ao que tudo indica, parecer ter firmado entendimento no mesmo sentido, uma vez que em obra publicada após a vigência do novo texto legal, não mais aborda tal polêmica, limitando-se a pontuar que “se o réu não interpuser recurso contra a decisão que, em primeiro grau, concede a tutela antecipada antecedente, essa estabilizar-se-á” (WAMBIER; TALAMINI, 2016. P. 891).

Há, no entanto, boa parte da doutrina sustenta a tese de que qualquer meio de impugnação é suficiente para evitar a estabilização da medida concedida provisoriamente. Didier Jr., Braga e Oliveira (2016, p.622) defendem que se no prazo recursal o réu entender por antecipar a apresentação da defesa, ficara afastada a sua inércia, uma vez que “...se contesta a tutela antecipada e a própria tutela definitiva, o juiz terá que dar prosseguimento ao processo para aprofundar sua cognição...”.

Outro viés a ser levado em consideração é que no novo modelo processual, com a previsão de realização da audiência de conciliação e mediação (CPC, art. 334), que somente não será realizada com consentimento de ambas as partes (CPC, art. 334, §4º, inc.I), é possível que o réu apresente manifestação informando seu (des)interesse na realização da solenidade. Nesta hipótese, o prazo contestacional somente será computado do protocolo da mencionada petição (CPC, art. 335, inc. I e II). Tal comportamento adotado pelo réu não pode, de forma alguma, ser considerado omissivo, pois demonstra seu efetivo interesse em angularizar a relação processual, em responder, resistir, à pretensão vertida pelo autor da demanda.

Em casos tais, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (2015, p. 216), doutrinam que a manifestação do réu é suficiente para afastar a possibilidade de estabilização da medida de antecipação dos efeitos da tutela, com a vantagem de economizar o recurso de Agravo de Instrumento, já que demonstra, sem dúvida, a manifesta e inequívoca vontade do réu “...no sentido de exaurir o debate com o prosseguimento do procedimento”.

Em recentíssima decisão, o TJ/MG entendeu pela interpretação restritiva e literal da exigência do artigo 304 do CPC, entendendo, ainda, pela aplicabilidade em face da fazenda pública, muito embora este não seja o enfoque do presente artigo. Trago a ementa à colação:

APELAÇÃO CÍVEL. PROCEDIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE. AUSÊNCIA DE RECURSO. INTERPRETAÇÃO LITERAL DO ART. 304 DO NCPC. ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPATÓRIA. APLICABILIDADE À FAZENDA PÚBLICA. - O art. 304 apresenta uma redação clara em relação ao requisito para se tornar estável a tutela de urgência na modalidade antecipada, isto é, a não interposição de recurso contra a decisão que a conceder. - O legislador optou por utilizar o termo "recurso" contra a decisão que conceder a tutela de urgência, na modalidade antecipada, não cabendo ao intérprete sua ampliação, no sentido de admitir qualquer impugnação para obstaculizar a estabilização da tutela concedida, com a consequente extinção do processo. - Lecionam os Professores Érico Andrade (UFMG) e Dierle Nunes (PUC Minas) que, se obtida a tutela de urgência, no procedimento preparatório da tutela antecipatória (satisfativa), e o réu não impugnar a tutela concedida, mediante recurso de agravo de instrumento (art. 1015, I, novo CPC), o juiz vai extinguir o processo e a medida liminar antecipatória da tutela vai continuar produzindo seus efeitos concretos mesmo na ausência de apresentação do pedido principal (art. 304, §§ 1º e 3º, novo CPC). - A Fazenda Pública se submete ao regime de estabilização da tutela antecipada, por não se tratar de cognição exauriente sujeita a remessa necessária. (Enunciado 21 sobre o NCPC do TJMG). -Recurso improvido. (TJ-MG - AC: 10348160004894001 MG, Relator: Heloisa Combat, Data de Julgamento: 03/11/2016, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/11/2016) – grifo nosso.

Neste contexto, tudo indica que um dos grandes desafios com relação à nova técnica de estabilização da tutela provisória satisfativa concedida de forma antecedente à propositura da ação principal é definir qual meio de impugnação manejado pelo réu tem eficácia suficiente à sustar a estabilização: se o recurso de agravo de instrumento, stricto sensu, ou se qualquer meio de impugnação, como a defesa antecipadamente apresentada ou, ainda, o pedido de reconsideração?

Na nossa perspectiva, a interpretação restritiva da norma seria improdutivo, estimulando a interposição de recursos desnecessários, aumentando a demanda dos tribunais sem qualquer justificativa, quando uma simples manifestação demonstrando o (des)interesse na realização de audiência de mediação e conciliação, ou, ainda, a antecipação da contestação, são medidas que, por si, manifestam a inequívoca vontade do réu de resistir à pretensão do autor.

Por outro lado, estimularia também o ajuizamento de ação autônoma para invalidação, revisão ou reforma da decisão (CPC, art. 304,§ 2º), em oportunidades que o réu, ainda no bojo do procedimento prévio, já tenha apresentado contestação ao pedido, mas a tutela antecipada tenha se estabilizado por falta de manejo do respectivo recurso.

A situação retratada seria de um absurdo absolutamente desarrazoado: teríamos o procedimento de tutela antecipada em caráter antecedente tramitando conjuntamente com ação aforada pelo réu pleiteando a revogação da tutela estabilizada, admitindo-se, inclusive, decisões contraditórias.

Portanto, neste particular, ouso apontar que a contestação é a medida de impugnação por excelência, sendo incoerente considerar-se inerte o réu que a apresenta tempestivamente, de modo que, por consequência, ilógico relacionar a irresignação do demandado à interposição do recurso, necessariamente.

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ANDRADE, Érico; NUNES, Dierli. Os contornos da estabilização da tutela provisória de urgência antecipatória no novo CPC e o “mistério” da ausência de formação da coisa julgada, 2015. Disponível em: (Clique aqui.) Acesso em 11 de Dez de 2016.

BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 186/2005. Disponível em: (Clique aqui.) Acesso em 15 de nov de 2016.

BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11. Ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 16.ed. 2.v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

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*Felipe Morador Brasil é advogado especialista em Direito Processual Civil.



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