Ab ovo, ad hoc, erga omnes, ex tunc, in dubio pro reu, non bis in idem, pacta sunt servanda, sub judice e ultra petita. Esses são alguns termos em latim muito usados até hoje por juízes brasileiros em suas decisões. Se você já foi parte em algum processo judicial, deve ter ouvido falar de pelo menos um deles. E, certamente – se você não é da área jurídica –, não deve ter entendido nada. Tudo bem que o nosso ordenamento jurídico tem sua raiz no Direito Romano, que utilizava o latim clássico, mas para se fazer compreensível, principalmente na hora de transmitir a mensagem, é preciso deixar de lado o chamado o "juridiquês".
O problema na transmissão da mensagem se agrava porque não é preciso utilizar termos em latim para tornar o texto de uma tese ou de uma decisão ininteligível (no bom juridiquês). O vocabulário em português adotado por muitos operadores do Direito no país, mesmo os mais novos na área, é rebuscado, difícil e, data venia, muitas vezes incompreensível. Em vez de dizer que "o indigitado evadiu-se do ergástulo público", seria muito mais simples afirmar que "o réu fugiu da cadeia". E pode piorar: em alguns casos, até os jornalistas de assessorias de comunicação dos órgãos do Poder Judiciário, que têm o papel de informar de forma clara as decisões judiciais, não têm conseguido traduzir a linguagem jurídica.
Claro, não podemos generalizar. Em 2015, um juiz convocado do TRT da 4ª região, no RS, surpreendeu a própria classe ao mostrar que uma decisão pode, sim, ser redigida em linguagem simples e, dessa forma, a Justiça pode ficar ainda mais próxima dos cidadãos. João Batista de Matos Danda abusou do coloquial em sua decisão, e soube usar, sem exagero, as expressões jurídicas que eram realmente imprescindíveis. O objetivo do juiz foi justamente provar que o "juridiquês" é perfeitamente dispensável, e alertar para o fato de que o Judiciário é capaz de ser mais "amigo" da sociedade.
A decisão de Danda foi dada em um processo envolvendo um pedreiro que pedia o reconhecimento de vínculo de emprego e indenização por danos morais, depois de sofrer um acidente quando trabalhava em uma obra particular. A história do operário não poderia ter sido contada de forma mais clara: "Três meses depois de iniciada a obra, o pedreiro caiu da sacada, um pouco por falta de sorte, outro pouco por falta de cuidado, porque ele não tinha e não usava equipamento de proteção. Ele, Itamar [o dono da propriedade], ficou com pena e acabou pagando até o serviço que o operário ainda não tinha terminado".
A conclusão do magistrado também foi indiscutivelmente compreensível: "Essa indenização serve para amenizar um pouco o sofrimento de Lucas [o pedreiro], mas também serve para Itamar lembrar que tem obrigação de cuidar da segurança daqueles que trabalham na sua casa, mesmo quando não são empregados. (...) Lucas, por sua vez, não pode pretender ficar rico com a tragédia; mas também o dinheiro tem que fazer alguma diferença na sua vida. Pensando nisso tudo, considerando a metade de culpa que cada um tem e das condições financeiras dos dois, além das circunstâncias do acidente, fixo a indenização em R$ 7.000,00 (sete mil reais)". Deu para entender, não é mesmo?
Há 12 anos, encucados com as consequências que uma decisão judicial prolixa e intrincada poderia gerar na relação entre Poder Judiciário e sociedade, os juízes da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançaram um livreto muito útil para todos os cidadãos que não conseguem compreender facilmente a linguagem jurídica. "O Judiciário ao Alcance de Todos – Noções Básicas de Juridiquês" foi inicialmente dirigido a jornalistas – profissionais que têm a missão primordial de comunicar com clareza e objetividade. Contudo, o sucesso foi tanto, que ainda hoje a publicação é livro de bolso de muita gente por aí, inclusive da turma do Direito.
Prefaciado pelo jornalista Franklin Martins, o livreto aborda a relação, as semelhanças e as diferenças entre o Judiciário e a mídia, traz um histórico sobre as leis e sua aplicação no mundo e no país e explica o organograma, o papel, as atribuições e as funções dos órgãos de todos os ramos da Justiça, incluindo os tribunais superiores.
A publicação da AMB ainda apresenta informações sobre órgãos que, embora pareçam integrar o Judiciário, atuam, na verdade, em parceria ou de forma complementar ao trabalho da Justiça, como o MP, a Defensoria Pública, a Advocacia Pública e Privada e os cartórios extrajudiciais. Uma breve aula sobre a tramitação, ritos processuais e recursos judiciais também integra o livro, bem como um glossário (a parte que mais gosto) que traduz o "juridiquês" para o bom português. Infelizmente, o livreto parou em sua segunda edição, mas ainda pode ser acessado no site da AMB.
Não é preciso muito esforço para comunicar com clareza, pois nos dias de hoje há uma infinidade de instrumentos que facilitam o nosso trabalho (a internet é o principal deles). Já a velha boa vontade é fundamental. É um trabalho diário, como quando começamos a fazer um regime: mudamos hábitos, retiramos e inserimos certos alimentos no nosso dia a dia e acabamos por nos acostumar com as novidades. Magistrados, que tal promovermos uma verdadeira reeducação nos hábitos, a fim de fazer uma verdadeira dieta em nosso vocabulário, pelo fim do juridiquês? Todos sairão ganhando.
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*Ruy Conde é jornalista e sócio da It Press Comunicação.
*Letícia Capobianco jornalista e colaboradora da It Press Comunicação.