A compra de imóvel de planta é uma operação que envolve riscos para todas as partes, especialmente para o comprador que adquire um "sonho" e paga antecipadamente por ele sem receber, durante anos, nada tangível em troca, apenas um compromisso de entrega futura.
Já o vendedor-construtor incorre em riscos que devem ser calculados, mensurados e incorporados ao preço do imóvel e eventuais perdas no curto prazo, em virtude da atual crise do país, com certeza já foram compensadas por altas margens de lucro em períodos anteriores quando os preços dos imóveis subiram em muitos casos 300%.
Com a queda nas taxas de juros e a retomada da economia, as construtoras estruturadas se manterão na economia e as sem qualidade de gestão desaparecerão, é mais um movimento cíclico da economia inerente ao risco do negócio.
A judicialização do tema é, sem dúvida, fruto da falta de bom senso das construtoras que buscam amenizar os efeitos da crise em seu negócio através de propostas inviáveis aos consumidores, desde permutas para imóveis sem liquidez até a oferta de devolução de valores irrisórios frente ao valor que foi efetivamente pago.
É desumano que o consumidor fique à mercê das propostas de distrato oferecidas pelas construtoras, que visivelmente afrontam o artigo 53 do CDC (nulidade de cláusula que preveja a perda das parcelas pagas). Os consumidores, já fragilizados pela situação de não aprovação de financiamento ou desemprego acabam aceitando valores irrisórios em virtude da dificuldade financeira, pois alternativa não lhe restam.
Não se pode cogitar que as construtoras em caso de distrato fiquem com o imóvel para revenda e também com quase a totalidade dos recursos financeiros do consumidor, se enriquecendo ilicitamente.
O distrato acontece, na prática, diante de três cenários:
a) O comprador, por motivos alheios a sua vontade, perde a capacidade financeira de continuar adimplindo o contrato;
b) O comprador-investidor que, apesar de ter adimplido durante anos, percebe que o valor do mesmo imóvel à vista ainda está mais barato que o próprio saldo devedor com a construtora. Ex.: em dois anos foi pago para a construtora R$ 87.000,00 e ainda há saldo de R$ 300.000,00, sendo que no "stand de vendas" o imóvel está sendo negociado a R$ 240.000,00. Portanto, estaria o consumidor pagando R$ 387.000,00 por um imóvel que está sendo vendido por apenas R$ 240.000,00;
c) O comprador decide rescindir o contrato por culpa do vendedor – atraso na entrega do imóvel.
Os parâmetros para os distratos já definidos pelo Judiciário são muito claros e estão lastreados em centenas de decisões. As regras são as seguintes:
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rescisão por culpa da construtora: atraso na entrega da obra – devolve-se 100% do valor pago corrigido desde o desembolso – a discussão ocorre se deveria ser devolvida também a corretagem, já que o negócio não se concretizou por culpa exclusiva do vendedor e a súmula 543 do STJ1 afirma que a devolução deve ser integral, portanto neste caso, a corretagem se insere no contexto de desfazimento do negócio por culpa do vendedor, logo o ressarcimento dos dispêndios do comprador deveria ser total;
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resilição por impossibilidade superveniente de pagamento por parte do comprador – a jurisprudência brasileira sedimentou a devolução de 90% dos valores pagos corrigidos desde o desembolso, sem direito a devolução da corretagem ao consumidor.
A retenção de 10% dos valores pagos para as construtoras, nos casos de resilição, está lastreada num sopesamento jurídico de centenas de decisões, portanto estas decisões acabam se firmando como uma conquista do consumidor frente aos interesses das construtoras.
Não esqueçamos que o ressarcimento dos valores pagos, na maciça maioria dos casos, se presta a aquisição de outra moradia, muitas vezes, de valor mais baixo, o que põe em risco mais do que capital; na verdade, arruína o sonho brasileiro da casa própria.
As construtoras se articulam muito para, através de pressões políticas no Poder Executivo, regulamentar os distratos de acordo com suas conveniências, ao invés de pautarem suas negociações extrajudiciais em consonância com os entendimentos já sedimentados pelo Judiciário.
Questões como percentual de multa/retenção, prazo de pagamento e outras demandas já tiveram os contornos definidos pelo Judiciário como parâmetro que deve ser respeitado e aplicado nos acordos extrajudiciais, evitando o entupimento da máquina judicial.
O Poder Executivo, através da Senacon – órgão do Ministério da Justiça, que deveria defender os direitos dos consumidores – e as construtoras, por intermédio de suas entidades de classe, buscam regulamentar os distratos, quando, na verdade, de há muito estão submetidos e devidamente regulamentados pelo CDC e pela súmula 543 do STJ, portanto, precisamos ficar alertas, qualquer posicionamento destas negociações deve ser no sentido do que já está definido em lei e em súmulas do STJ.
As negociações da Senacon, devem ainda, obrigatoriamente, convergir no sentido da jurisprudência majoritária dos tribunais estaduais, sob risco de entidades federais de defesa do consumidor estarem pactuando regulamentações em flagrante desrespeito a direitos já adquiridos pelos consumidores e garantidos pelo Judiciário através do devido processo legal.
Desse modo, é essencial que os órgãos de proteção ao consumidor, em geral, estejam a serviço de seu escopo celular – defesa do consumidor – e se alinhem as conquistas já sedimentadas pelo Judiciário em favor do consumidor ao invés de analisar e avaliar propostas em desacordo com o entendimento majoritário do Judiciário, que favoreçam grandes grupos econômicos.
Como se não bastasse as incursões no Executivo, as construtoras buscam dilapidar direitos consumeristas também no Poder Legislativo, no caso concreto, através do PL 774/15, no Senado Federal, de iniciativa do senador Romero Jucá, que busca regular os distratos em completo desrespeito a sedimentada jurisprudência do STJ e legislação vigente e em flagrante benefício em prol das construtoras.
Vivemos tempos estranhos, mas temos que passar este País a limpo, não pode o Direito do Consumidor sofrer uma erosão tão crescente a ponto dos consumidores ficarem totalmente a deriva, sem respaldo.
Não devemos admitir que os consumidores, por falta de poderio financeiro concentrado e lobby estruturado, acabem sucumbindo aos interesses de grupos econômicos.
Perde o cidadão, o país e aprofunda o fosso para atingirmos uma sociedade mais justa.
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1. "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento".
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*Jose Maria Franco de Godoi Neto é sócio do escritório Franco de Godoi Advogados.