Por ocasião da recente escolha de um advogado amigo, brilhante e muito correto, para cargo de direção em forte seguradora no ramo de veículos, ocorreu tecer algumas ponderações sobre esse importante ramo do mercado segurador.
O seguro de acidentes pessoais, chamado pela sigla DPVAC, obrigatório para qualquer proprietário de veículo automotor, é hoje regulado pela lei 6.194/74 (depois complementada pela lei 8.374/91) que de resto alterou o decreto-lei 73/66 lei básica na matéria securitária.
Buscando ali a proteção ou a cobertura de danos pessoais, a indenização terá seu pagamento efetuado “mediante simples prova do acidente e do dano decorrente, independentemente da existência de culpa” (artigo 5º, caput).
Nessa trilha de ampla cobertura para agravos pessoais derivados de acidentes com veículos, até mesmo a vitima de veículo não identificado - esses casos lamentáveis e frequentes em que o causador do dano foge--,ou veículo sem seguro ou com este vencido, terá sua compensação securitária em parâmetros iguais aos dos casos comuns, por um consórcio compulsório das seguradoras que no ramo operem (artigo 7º), criada no caso(para efeitos do regresso) uma especial garantia real do veículo a favor do consórcio, oponível até á, se existente, alienação fiduciária do mesmo. Resta saber aqui como tem convivido essa antinomínia entre a acaso inscrita propriedade fiduciária e essa garantia real específica a favor da seguradora.
Nem precisa a lei dizer que nos casos de veículo identificado, havendo culpa o causador do dano responde perante a seguradora, subrogatária esta nos direitos do segurado vítima (artigo 786 do Código Civil).
Mas, lei especial que é, temos que confrontar as regras ali contidas com os parâmetros do Código Civil vigente, o qual, no seu artigo 762 declara como nulos os contratos de seguro para garantia de risco “proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou do representante de um ou de outro”. Registre se que o código anterior (artigo 1.436) declarava nulidade se ocorresse “ato ilícito” do segurado ou do beneficiário, o que levou seu intérprete autêntico, o grande Clovis Bevilaqua a afirmar:
“Não me parece que, em face do art. 1.436, seja possível o seguro da culpa em nosso direito. A culpa, segundo o artigo 159 do código, constitui elemento conceitual do ato ilícito;... não é juridicamente possível segurar a culpa, seja leve ou grave” (“Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, vol.II, edição histórica, RJ, Editora Rio, 1979, pág.567”.).
Já na égide do atual código, mais estritamente se direcionando a ato “doloso” do segurado ou beneficiário dizem Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes (Código Civil interpretado, vol. II, 2 edição, Renovar, pág. 571:
“O risco do ato ilícito praticado pelo segurado, beneficiário de um ou de outro, torna incompatível a contratação de seguro e nulo o negócio jurídico.... Pela regra atual, ao contrário do que ocorria sob a codificação anterior, a culpa, ainda que grave,não enseja a nulidade do contrato, contentando se o legislador com o dolo, ou seja, com a vontade dirigida à produção do resultado lesivo, ou ao menos à assunção do risco de se produzir tal consequência”.
Como se tem visto há uma pressão da melhor doutrina, enfrentando uma parcela renitente e permissiva da jurisprudência no país, em se titular acidentes causados por extrema e radical irresponsabilidade como casos de dolo eventual ou dolo alternativo. E há decisões interessantes, como a do STF pela segunda turma no HC 91.159 sendo relatora a Min. Ellen Gracie (julgado em 02/09/2008).
Onde se consagrou como dolo eventual e não culpa o elemento subjetivo no crime de trânsito ocasionado por um “pega” nas vias normais em alta velocidade “no caso concreto a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus veículos respectivos realizando aquilo que coloquialmente se denominou “pega” ou “racha”, em alta velocidade em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo(onde estavam as vítimas) Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz se necessário que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente”.
Assim, como o Código Civil não distingue no seu artigo 762 sobre os tipos de dolo ali contemplados, acreditamos que nesses crescentes casos de dolo eventual em acidentes de trânsito, temos uma séria questão sobre os efeitos nulos do seguro obrigatório criado pela lei 6.194. A regra da lei civil básica, longe de ser uma norma geral face á norma especial dessa lei própria, é na verdade uma regra principiológica aplicável a todo e qualquer contrato de seguro, por tratar da natureza íntima desse tipo contratual onde a vontade distorcida de modo grave, seja na própria contratação do seguro, seja na ocorrência do seu fato segurado, acarreta a nulidade da cobertura ajustada.
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