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O aborto - sua presença em acórdão da 1ª turma do STF

A dignidade da vida humana é um valor em si e não admite relativização, como pretendido no acórdão objeto deste estudo.

6/12/2016

1. Na última terça-feira, 29/11, acordamos com a tristíssima notícia da tragédia aérea que ceifou a vida de dezenas de pessoas e, praticamente, de todos os jogadores e comissão técnica do time de futebol da Chapecoense, além de jornalistas e radialistas. O abraço triste da morte bateu forte em nossos corações, provocando o testemunho da solidariedade, nunca antes vivenciado, entre nós, na Colômbia e em outros países. O mundo do futebol chorou.

Não bastasse essa tragédia de destruição da vida humana, no final da tarde do mesmo dia, somos surpreendidos com acórdão da 1ª turma do STF, subscrito pelos ministros Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, proclamando, para espanto geral das consciências bem formadas, que o aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime.

Decisão esta lançada <_st13a_personname productid="em Habeas Corpus" w:st="on">em Habeas Corpus, onde se discutia, exclusivamente, a legalidade de prisão preventiva de pessoas presas em flagrante em uma clínica de abortos localizada na cidade de Duque de Caxias, Estado do RJ.

Para bem situar-se aquele surpreendente acórdão, com todas as vênias possíveis e imagináveis, importante fixar os elementos trazidos à apreciação judicial daquele Colegiado:

I) – o objeto da causa versado no Habeas Corpus era único, qual seja a legalidade, ou não, da prisão preventiva, diante dos requisitos cogentes do art. 312 do CPP;

II) – na impetração, a defesa nada, absolutamente nada, arguiu sobre a legalidade do crime de aborto ou, até mesmo, discutiu a sua constitucionalidade.

O ministro Roberto Barroso resolveu, depois de justificar a não presença dos requisitos indispensáveis à decretação da medida cautelar restritiva da liberdade, a fazer proselitismo de sua conhecida e antiga militância doutrinária a favor do aborto. Dois outros ministros resolveram aderir à apologia de destruição da vida humana no ventre materno – Rosa Weber e Edson Fachin. Bem fizeram os ilustres ministros Marco Aurélio (Relator) e Luiz Fux em não ofertar beneplácito a tão estapafúrdia decisão judicial. Ficaram exclusivamente no exame do objeto da impetração referente à ilegalidade da prisão preventiva decretada.

2. A raiz principal do entendimento adotado pelo ministro Barroso é a seguinte: a questão relativa ao aborto está circunscrita aos campos da religião e da filosofia. A solução a ser dada sobre a questão será sempre religiosa ou filosófica. Para Sua Excelência, conforme entrevista jornalística em que defende sua opinião: “se você utiliza um argumento religioso, você exclui do debate quem não compartilha do mesmo sentimento religioso. Portanto, no espaço público os argumentos de razão pública são argumentos laicos e tratam a todos com respeito e consideração” (“Folha de São Paulo”, edição de 1º/12/16, pg. A20). Ademais, a figura do aborto como crime viola “a autonomia da mulher à sua integridade física e psíquica e aos seus direitos sexuais e reprodutivos” e à igualdade de gênero, pois, “na medida que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, é que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”. A mulher seria livre para dispor do próprio corpo. Para Sua Excelência, além do mais, na democracia não se pode transformar em norma jurídica uma única posição religiosa ou filosófica. Aquele que por sua crença religiosa for contra o aborto deve segui-la, mas não pode impor ao conjunto da sociedade que aja de igual forma.

3. Trata-se de afirmativa que se contrapõe às verdades primeiras que a Lógica denomina de princípios axiomáticos baseados em noções categóricas que fazem compreender a essência e a natureza das coisas.

Pois bem, a vida humana é, em primeiríssimo lugar, um fato natural que se repete no tempo, independente de noções religiosas ou filosóficas. Esta verdade primeira nos leva a uma segunda, qual seja que sem vida humana não existe pessoa capaz de ser sujeito de direito e sem pessoas não há sociedade.

Portanto o aborto não pode ser reduzido, como pretende o ministro Barroso, a simples categorias da religião ou da filosofia.

Logo, a premissa de sua argumentação se apresenta de pé quebrado, não se sustenta.

Antes de prosseguir, desejo deixar anotado algo que sempre me intrigou no estudo sobre o aborto, qual seja: aqueles que não foram abortados não podem, agora, defender que outras vidas sejam abortadas. É um paradoxo.

De outra parte, se a mulher tem o direito de decidir, individualmente, sobre a continuidade ou não da vida que traz em seu ventre, deveríamos abolir, também, o crime de infanticídio.

4. A vida humana e a sua consequente preservação são fundamentais para que a sociedade exista. Daí porque, todos os direitos e deveres contemplados pela ordem jurídica e social têm raízes no direito fundamental à vida.

A ciência e não a religião ou a filosofia comprova que a vida humana tem início na concepção, quando o espermatozóide penetra o óvulo. Instala-se a gravidez, que se encerra com o parto. Desde esse momento, há vida humana a ser preservada.

Ademais, avançados estudos médicos e científicos demonstram que o nascituro não é apenas uma porção do corpo da gestante, mas um ser autônomo com vida própria, apenas “transitoriamente ligado, pelas deficiências de uma fase de sua evolução, ao organismo materno”. Bem por isto, quaisquer constrangimentos, físicos ou psíquicos, suportados pela mãe interferem de alguma maneira em seu natural desenvolvimento. Nesta parte, cumpre recordar que o Código Penal alemão “considera o aborto como um delito de homicídio e o feto como um ser vivente autônomo, embora dependente do organismo materno até o parto”, conforme esclarece MEZGER (“in” Enciclopédia Saraiva do Direito”, Ed. Saraiva, S. Paulo, ed. 1977, vol. I, nota 10 à pg. 465).

Por fim, a décima terceira semana completa o primeiro trimestre da gestação, quando o coração, fígado, baço e muitos outros órgãos estão a funcionar.

5. Logo, a norma jurídica preponderante e fundamental, na espécie, está no texto constitucional quando assegura a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, “caput”), como já existia na Constituição anterior, onde se falava no princípio que consagrava “a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida (art. 153, “caput”).

A dignidade da vida humana é um valor em si e não admite relativização, como pretendido no acórdão objeto deste estudo.

6. O Código Penal pune o aborto, como crime contra a vida e contra a pessoa (art. 124). Prevê, também duas hipóteses em que não haverá aplicação de pena, quais sejam as hipóteses de aborto necessário (inciso I do art. 128) e o aborto sentimental (inciso II). Em ambas as hipóteses o Código exige a sua prática por médico.

Na hipótese do inciso I, por exemplo, conforme adverte o eminente professor ANIBAL BRUNO, “é preciso que haja perigo real da morte da gestante, perigo que não possa ser afastado de outro modo, para que se autorize a interrupção da gravidez”, sendo necessário, ainda, “que todas as possibilidades para a salvação da mãe e do filho se tenham esgotado (“Direito Penal”, Ed. Forense, Rio, 1ª ed., 1966, tomo 4º, pg. 172).

Quanto ao aborto definido no inciso II – gestação proveniente de estupro – conforme pondera, com toda razão o professor ANIBAL BRUNO, por mais respeitáveis que sejam os sentimentos em favor da gestante vítima da violência, “tomar a situação como justificativa da morte do ser que se gerou é uma conclusão de fundo demasiadamente individualista, que contrasta com a idéia do Direito e a decidida proteção que ele concede à vida do homem e aos interesses humanos e sociais que se relacionam com ela e demasiadamente importantes para serem sacrificados a razões de ordem pessoal, que, por mais legítimas que possam parecer não têm mérito bastante para se contrapor ao motivo de preservação da vida de um ser humano”, vindo a citar, a lição de ALTAVILLA de que “não há fundamento para falar-se nesse caso em estado de necessidade e deve-se considerar o aborto, na hipótese, extremamente cruel” e “a lei protege sempre uma vida humana, seja embora em estado embrionário, qualquer que seja sua origem” (ob. e tomo cits., pgs. 173/174 e nota 12).

Todas as demais hipóteses de aborto: indicação eugênica, indicação social, indicação individual e, muito menos, indicação racista não foram acolhidas por nosso Código Penal.

De sua parte, o Código de Ética Médica, de há muito, veda ao médico descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento”. Quer dizer: pelo Código de Deontologia Médica, fora das hipóteses delineadas no art. 128, I e II, do Código Penal, o médico não pode atuar.

O saudoso professor WALTER MORAES, em artigo doutrinário, demonstra a inexistência no Direito brasileiro de qualquer hipótese de aborto legítimo. Tece considerações oportunas sobre a etiologia do crime e da pena, em conjugação com o preceito definido em lei, bem como sobre a descrição do fato típico e antijurídico, para esclarecer que o art. 128 do Código Penal não declara excluída a possibilidade do ilícito penal, pois apenas suprime a pena, mas “fica o crime. Para se colocar uma pá de cal na discussão doutrinária existente, na interpretação do art. 128, do Código Penal, especialmente daqueles que enxergam neste dispositivo caso de exclusão da criminalidade, o ilustre Professor recorda que a norma constitucional, de hierarquia suprema, garante a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida. Logo, não poderia a lei ordinária dispor de modo diverso. De outra parte, o Direito Civil garante os direitos do nascituro, ofertando a este a qualificação de sujeito de direitos e, conseqüentemente, de pessoa, fundada em uma personalidade material. Antes de todos os direitos, o nascituro tem direito à sua vida e tal fato se apresenta claro quando o Código Penal inclui o delito de aborto entre os crimes contra a vida e contra a pessoa. Assim, mesmo que o aborto sem pena, do Código Penal, não fosse crime, “não podemos ter a menor dúvida de que é contra o direito; de que é um ilícito” (“RJTJSP”, vol. 99/20-29).

7. Entramos, já agora, no exame da qualificação do nascituro, como pessoa e sujeito de direito, tema este desprezado por completo, no infeliz acórdão da 1ª turma do STF.

Nosso Código Civil (art. 2º.) afirma a aquisição da personalidade mediante o nascimento com vida. No entanto, não deixa de atribuir direitos ao nascituro.

O Direito Romano, apesar de desrespeitar a vida dos escravos, nunca deixou de respeitar vidas inocentes, ainda no útero materno. Estabelecia penas para punir o hediondo crime do aborto e era tão grande o respeito pela vida do nascituro que não considerava lícito aplicar-se pena à mulher grávida. Ademais, se não afirmava, de forma expressa, a personalidade do nascituro, não a negava.

Diversos juristas preocuparam-se em estudar a personalidade ao nascituro. KOURKOUNOV, por exemplo, afirma que as relações jurídicas só são possíveis entre pessoas capazes de serem sujeitos de direito. Daí concluir que a capacidade começa com o nascimento com vida, mas reconhece que a Lei protege a vida do feto e, portanto, não nega absolutamente, personalidade ao nascituro. “Se são direitos concedidos ao nascituro e se sua vida é protegida ele deverá ser considerado, logicamente, como sujeito de direito e, por isso, pessoa (“apud” Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, Ed. Borsoi, Rio, ed. sem data, vol. 34, verbete “nascituro”, pg. 19). PLANIOL, um dos maiores juristas modernos, observa que a criança não nascida já é capaz de adquirir direitos depois de verificada a sua concepção e, por isso, no seu entender, já se considera o nascituro, por antecipação, figurando entre as pessoas e esta antecipação é admitida objetivando o interesse do menor (idem).

Para TEIXEIRA DE FREITAS, um dos maiores gênios do Direito, a existência antes do nascimento é real e a ela a Lei atribui efeitos jurídicos e, assim, pessoas por nascer que existem, embora não nascidas, já vivem no ventre materno.

O notável jurista, que inspirou com o seu opulento e fantástico “Esboço” o Código Civil argentino, considera inconcebível “que possa existir um ser com suscetibilidade de adquirir direitos, sem personalidade”. Se se atribuem direitos às pessoas por nascer, posto que, os nascituros são “representados sempre que lhe competir a aquisição de bens, dando-se-lhe curador ao ventre, deve-se concluir que já existem e são pessoas, pois o nada não se representa. É o caso absurdo de “um curador sem curatelado, de um representante sem representado e outras aberrações a que chegam aqueles que negam personalidade ao nascituro”. Não se deve confundir personalidade com capacidade. Em suma: “ao nascituro não falta completamente personalidade, devemos considerá-lo pessoa por nascer (ibidem, pgs. 21/22).

Aliás, o ensinamento de TEIXEIRA DE FREITAS é adotado pelo Código Civil argentino que, em seu art. 7º, dispõe: “desde la concepción en el seno materno comienza la existencia de las personas, y antes de su nascimiento pueden adquirir algunos derechos, como se ya hubiesen nacido. Esos derechos quedan irrevocablemente adquiridos si los concebidos en el seno materno nacieren con vida, aunque fuera por instantes después de estar separados de su madre”.

SERPA LOPES anota que “o estudo da legislação comparada propende pela solução dada pelo Código Civil argentino e o estudo da legislação comparada indica que os códigos mais modernos se aproximam daquele critério” (Curso de Direito Civil, Ed. Freitas Bastos, Rio, 9ª ed., 2000, vol. I, n. 133, pg. 254).

CLÓVIS, o maior de nossos civilistas, <_st13a_personname productid="em seu Projeto" w:st="on">em seu Projeto do Código Civil Brasileiro elaborado em 1899, veio a declarar em seu art. 3º, que a “personalidade começa desde a concepção sob a condição de nascer com vida”. Para o inesquecível jurista, a solução se impunha, pelas seguintes razões:

“a) desde a concepção o ser humano é protegido pelo Direito, tanto que o aborto constitui um crime;

b) a gravidez autoriza a posse em nome do ventre e a nomeação de um curador especial, sempre que competir à pessoa por nascer algum direito;

c) considera-se o nascituro como nascido desde que se trata de seus interesses;

d) admissibilidade de seu reconhecimento”.

Apesar da lógica desse entendimento, preponderou o oposto, isto é, o início da personalidade a partir do nascimento, com retroação ao início da concepção (apud SERPA LOPES, Curso de Direito Civil, Ed. Freitas Bastos, Rio, 9ª ed., 2000, vol. I, n. 133, pg. 254).

8. Muito embora aceita a concepção natalista, nosso Código Civil não deixa de ressaltar os direitos do nascituro que, em seu nome, poderão ser exercidos.

Direitos do nascituro que a lei põe a salvo, desde a concepção e, por conseguinte, ampara e protege a sua mãe que a ele oferece o seu ventre como criadouro de seu desenvolvimento como ser humano.

9. Cumpre anotar que em 22/11/69 foi subscrita a “Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”. O Brasil veio a ratificá-la em 25/9/92, após sua aprovação pelo Congresso Nacional, mediante o decreto Legislativo 27, de 26/5/92 e o Governo brasileiro, pelo decreto 678, de 6/11/92 determinou a sua aplicação no Direito interno, sem reserva alguma.

Trata-se de um tratado multilateral americano, que tem por objeto a reafirmação dos direitos humanos, a prescrição de garantias do seu exercício e proteção para que não sejam violados. No tema concernente aos direitos humanos, o art. 1º, 2 do “Pacto de São José” preceitua: “Para efeitos dessa Convenção, pessoa é todo ser humano. A expressão “pessoa é todo ser humano” nos leva, necessariamente, a concluir pela proteção do direito à vida, desde a concepção. Com efeito, ser humano não é apenas o nascido, mas o nascente, pois vida há no novo ser concebido.

Para o eminente jurista JOSÉ AFONSO DA SILVA, “no momento em que o óvulo é fecundado existe vida humana e se existe vida e pessoa – em potencial – deve ser protegida contra tudo e contra todos, inclusive a mãe. A “árvore” será “árvore” se, antes, for semente. Sem semente não haverá árvore”... Logo,, destruída a semente, não permitindo o processo, destrói-se a árvore”. Aliás, o professor LEJANE, autoridade mundial em biologia genética, dirigiu à Comissão Especial do Congresso dos Estados Unidos da América, no ano de <_st13a_metricconverter productid="1981, a" w:st="on">1981, a seguinte observação: “A vida poderá ter uma história longa; entretanto, cada indivíduo tem um início bem determinado: o momento da concepção”.

Não se pode olvidar, ainda, que no Direito Romano, segundo JUSTINIANO, “a criança uma vez concebida, considera-se já nascida”.

De sua parte, completando o enunciado de que pessoa é todo ser humano”, o art. 4º do Pacto de São José prescreve: “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito tem de ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida, arbitrariamente”.

O Código Civil brasileiro de 2002 dispõe: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (art. 1º). Como o Brasil subscreveu o “Pacto de São José”, ficou assente a sua aplicação no Direito interno, sem qualquer ressalva. Logo, o termo pessoa” haverá de ser interpretado consoante o disposto no art. 1º. daquele Tratado, como “todo ser humano”. Assim, a proteção da vida do nascituro há de ser efetiva, desde o momento da concepção, bem como a garantia de seus direitos. E não se pode esquecer, que o § 3º, do art. 5º da Constituição Federal dá aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, uma vez aprovados por cada Casa do Congresso Nacional, na forma ali estipulada, a eficácia de emendas constitucionais. Isto é, incorporam-se ao texto permanente da Constituição, quanto à garantia dos direitos humanos.

Assim sendo, qualquer tentativa legislativa tendente a autorizar o aborto, fora dos casos já consagrados no Código Penal, será inconstitucional.

Na aplicação da lei, juízes, advogados e membros do Ministério Público não podem deixar de examinar valores substanciais consagrados na norma a ser aplicada. Em tal exame, não podem se deixar levar por modismos, pelo ativismo judicial, no emprego de argumentos sem sentido ou sob pressão da mídia.

Em toda concepçãovida de um ser humano. Logo, o nascituro no ventre materno é um ser cujo direito à vida deve ser garantido, bem como os outros diretos que a lei lhe assegura.

Portanto, diante dessa realidade comprovada pela ciência médica e pelos estudos de Psicologia e Psiquiatria aplicadas – e não pela religião e filosofia na visão do ministro Barroso -, os direitos do nascituro devem ser respeitados e assegurados como próprios do ser humano que vive no ventre materno.

Recorda-se, especialmente, para o mundo de hoje tão distante dos verdadeiros valores que inspiram a família e, através da família a própria sociedade e o relacionamento entre as pessoas, que o filho é um gesto definitivo de amor, como afirma, com rara felicidade o Papa João Paulo II.

10. ORLANDO GOMES ensina que ao lado da personalidade relevante existe a personalidade presumida e entre os casos de personalidade presumida arrola a do nascituro, visto que a lei resguarda direitos do que foi concebido e afirma: “ainda não tem personalidade, pois que esta começa com o nascimento, mas, desde a concepção, é como se a possuísse”, pois a própria lei “reconhece no nascituro aptidão para ter direitos” (Introdução ao Direito Civil, Ed. Forense, Rio, ed. 1957, n. 75, pg. 135).

11. Surge a partir deste despretensioso estudo, a certeza de que há vida humana a partir da concepção e antes de todos os direitos, o nascituro tem direito à preservação de sua vida e o respeito à dignidade conferida a toda pessoa.

Portanto a concepção de considerar-se “pessoa” somente o nascido e portador de personalidade e “sujeito de direito” como sinônimos, concepção esta defendida por diversos juristas não pode ser aceita de modo absoluto, pois o nascituro além de ser “pessoa” pode ser “sujeito de direito”.

Se o nascituro tem legitimidade para propor ação de investigação de paternidade, de igual forma pode ser sujeito de direito representado por sua mãe, para propor ação em defesa de seu direito personalíssimo à sua dignidade como ser humano, como pessoa.

Por fim, se o nascituro, que vive no ventre materno, absorve todas as angústias, sofrimentos suportados por sua mãe, diante de segura comprovação científica e médica, dúvida não pode haver que a ofensa à dignidade suportada pela sua mãe, atinge também igual direito personalíssimo do nascituro.

Ao aviventar tão importante questão, o meu querido Amigo, excelso Advogado e possuidor de um magnífico talento, MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA, em célebre causa em que defende os direitos do nascituro, realça uma certeza quase sempre esquecida, qual seja “o valor da pessoa humana como fundamento de toda a ordem jurídica e que a antiga sabedoria jurídica, de forma lapidar, é expressa por JUSTINIANO no Digesto Romano (1.5.2): “Por causa do homem é que se constituiu todo o Direito”.

Verdade esta que foi esquecida e abandonada pelos três ministros que subscrevem o acórdão, ora analisado.

Aliás, o saudoso professor EDUARDO COUTURE, que tão cedo nos deixou, privando o mundo jurídico de sua inteligência, cultura e abnegado amor ao Direito, nos deixou a sábia lição de que “la sentencia podrá ser justa o injusta porque los hombres necesariamente se equivocan”. Para ele, não havia sido inventada máquina de “hacer sentencias”, tornando possível decidir os casos judiciais como se decidem as corridas de cavalos, mediante um olho eletrônico que registra fisicamente o triunfo ou a derrota. Então, “la concepción constitutiva del proceso careerá de sentido y la sentencia será uma pura declaración, como queria Montesquieu. Pero mientras no pueda lograrse esa máquina de haver sentencias, el contenido humano, profundo y entrañable del derecho, no puede ser desatendido ni desobedecido y las sentencias valdrán los que valgan los hombres que las dicten” (Introducción al Estudio Del Proceso Civil, Ed. Arayú, Buenos Aires, 2ª ed., 1953, pg. 77).

12. Urge ter presente que o homem moderno "não mais sabe distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso, o belo do feio, o justo do desonesto, o útil do prejudicial, o lícito do ilícito, o decente do inconveniente etc. Não é mais seguro de nada; não tem nenhum ponto certo de apoio; vive como que suspenso no vazio" (BATTISTA MONDIM, "Antropologia Teológica", Ed. Paulinas, S. Paulo, 4a. ed., 1986, pg. 60).

É importante que se tenha presente a certeira e grave advertência feita por RALF DAHRENDORF de que com a modernidade, os perigos para a liberdade são diferentes. Para o ilustre professor de Ciências Sociais da Universidade de Constança, todas as palavras cativantes do ideário modernista - democratização, individualização, comunitarismo e assim por diante - passaram a descrever uma atitude que ajuda a enfraquecer e, em última análise, a corroer as instituições sociais. Elas tendem para a liberdade sem sentido, uma liberdade de escolha sem escolhas que façam sentido. Elas servem para “aumentar os distúrbios, a dúvida e as incertezas de todos”. E acrescenta:

"os falsos arautos da liberdade estão cheios de boas intenções, mas preparam o caminho que poderá nos levar, se não for para o inferno, ao menos para o mais próximo dele na Terra, que é a anomia" ("A Lei e a Ordem", Publicação do Instituto Tancredo Neves e da Fundação Friedrich Naumann, Bonn, ed. 1987, pg. 146).

13. Outro aspecto contém o acórdão subscrito pelos ministros Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, qual seja a prática do ativismo judicial” presente em seu contexto. Ao decidir que o aborto até o terceiro mês de gestação não é crime, Suas Excelências revogaram o art. 124 do Código Penal, que considera o aborto como crime contra a vida e contra a pessoa e acrescentaram ao art. 128, mais uma hipótese de não aplicação de pena, isto é, o “aborto até o terceiro mês de gestação. Deixaram de lado a toga dos juízes e assumiram a vestimenta dos parlamentares, únicos com poderes para criar novas leis e revogá-las.

Os defensores do ativismo judicial não conseguem esconder sua adesão à Escola do Direito Livre, surgida na Europa na segunda metade do século IXX e tem no conhecido jurista François Geny o seu principal corifeu. Para a doutrina da Escola do Direito Livre, o juiz não tem quaisquer limitações na interpretação da lei. Para Geny, cabe ao juiz “criar o direito, tendo como guia a observação da natureza das coisas, dos princípios da justiça, da sociologia, da filosofia, etc.”, levando o jurista suíço Sclosmann a reduzir a lei a “uma folha de papel, não se podendo, portanto, descobrir-lhe uma vontade (“apud” OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, O Poder Judiciário Brasileiro a partir da Independência, Ed. Migalhas, Ribeirão Preto, 2ª ed., 2012, pg. 255).

Temerária e despropositada se apresenta, no meu entender, qualquer doutrina que preconize a livre criação do Direito, pelo juiz. Ainda mais, aceitando que o juiz usurpe o lugar destinado ao legislador, e até mesmo, em certas ocasiões, tome o lugar do legislador constituinte, como ocorreu, recentemente, em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. Interessante recordar a observação atualíssima dos consagrados juristas (Unger, Dernburg e Hellewig) de que os tribunais foram estabelecidos para a “defesa e realização” da lei e o juiz, quando “intenta mudar a lei, comete uma violação jurídica”. Enfim, “a tendência para emancipar o juiz não se pode apreciar senão como uma tendência de revolta contra o legislador” (idem)

Em suma, não pode o juiz, a pretexto de interpretar a lei, revogá-la. Isto porque, conforme ensina Norberto Bobbio “a tarefa da jurisprudência não é a criação, mas a interpretação do direito” (ibidem).

Ademais o Direito, em sua gênese, sempre foi um instrumento de segurança. Todo o esforço realizado, no caminhar dos séculos, foi no sentido de se abonar o princípio da segurança jurídica, especialmente, na solução dos conflitos sociais.

Muito menos, é possível, sob o pretexto de interpretar a lei, se venha substituir uma lei vigente por uma regra criada dentro da subjetividade do magistrado. Instala-se a incerteza jurídica. Sobre tal tema há enorme bibliografia e seu exame não cabe no âmbito restrito deste artigo.

Ainda bem que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal e assinada por três dos ministros de sua 1ª turma, não possui efeito vinculante algum para os demais magistrados e Tribunais. No entanto, poderá vir a influenciar juízes que tenham a visão distorcida de entender ser possível ao Poder Judiciário criar direito novo, revogando preceitos legais do Direito Positivo em plena eficácia e vigência. O tempo dirá. Por ora, estamos diante de uma única decisão judicial que, infelizmente, prestigia a morte de seres humanos que têm vida a ser preservada, independentemente, dos “direitos sexuais e reprodutivos da mulher”. O aborto é um assassinato cruel, repugnante e covarde, pois o abortamento mata um ser humano que não possui mínima possibilidade de defesa.

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado do escritório Saulo Ramos Rocha Barros Sandoval Advogados.


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