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O sistema de precedentes do novo CPC, o dever de integridade e coerência e o livre convencimento do juiz

A lei deixou de ser o único paradigma obrigatório que vincula a decisão do julgador.

11/11/2016

É fato que o novo CPC estabeleceu um sistema de precedentes que deve ser observado pelo juiz no momento de sua tomada de decisão.

A lei deixou de ser o único paradigma obrigatório que vincula a decisão do julgador. Os precedentes judiciais também vinculam as decisões judiciais atualmente, já que o novo CPC estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir precedente ou jurisprudência invocada pela parte, sem mostrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Essa é a redação do artigo 489, § 1º, VI, CPC:

Art. 489. (...).
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
VI deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Referido artigo foi introduzido na lei com o objetivo de que as decisões judiciais sejam tomadas com coerência ou integridade, ou seja, não destoem de outras decisões já prolatadas sobre o mesmo tema e envolvendo as mesmas circunstâncias. Aliás, não só o artigo 489 CPC demonstra esse objetivo, mas o sistema processual novo, com vistas a conferir maior segurança jurídica e estabilidade à sociedade, como se observa a partir da leitura dos artigos 926 e 927 do CPC:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade;
II os enunciados de súmula vinculante;
III os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional;
V a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

A existência dos referidos artigos foi inspirada na doutrina de Ronald Dworkin, que pondera que o juiz deve ser fiel ao seu dever de integridade, colocando-se como um autor e, ao mesmo tempo, como um crítico "de um romance em cadeia, escrito por diversos autores".

O "capítulo seguinte de cada romance" deve necessariamente "guardar correlação com o capítulo anterior". Um rompimento total entre similaridade das decisões somente é possível, mediante uma carga de argumentação extrema que se justifique, com base nas peculiaridades do caso concreto. Assim explica o aclamado professor das universidades de Harvard e Londres (DWORKIN, 2003, p. 275-277):

Podemos comparar o juiz que decide sobre o que é direito em alguma questão judicial, não apenas com os cidadãos da comunidade hipotética que analisa a cortesia que decidem o que essa tradição exige, mas com o crítico literário que destrinça as várias dimensões de valor em uma peça ou um poema complexo.
Os juízes, porém, são igualmente autores e críticos.
[...]
Portanto, podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar de "romance em cadeia".
Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade.
[...]
Em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidades de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível.
[...]
Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes. Isso exige uma avaliação geral de sua parte.

Segundo a doutrina de Dworkin (2003, p. 272), analisando o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se derivam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal.

O convencionalismo exige que os juízes estudem os repertórios jurídicos e os registros parlamentares para descobrir que decisões foram tomadas pelas instituições às quais convencionalmente se atribui poder legislativo. Tem os olhos voltados para o passado (DWORKIN, 2003, p. 272).

O pragmatismo exige que os juízes pensem de modo instrumental sobre as melhores regras para o futuro. Tem os olhos voltados para o futuro (DWORKIN, 2003, p. 272).

O direito como integridade é diferente: deve partir da concepção atual, considerando o passado – como adequação linear – mas com vistas a produzir a melhor decisão no futuro. Deve imprimir um caráter de continuidade ao direito (DWORKIN, 2003, p. 273).

A história contém os princípios que lastrearam as decisões anteriores, e serve de adequação linear para construção de uma nova decisão. A integridade requer coerência para interpretação de um princípio e sua identificação (DWORKIN, 2003, p. 273-274).

Nesse sentido que a interpretação do direito pode ser comparada a um romance em cadeia, em que diversos autores devem escrever cada capítulo deste romance. O capítulo posterior deve necessariamente ter uma adequação linear com o capítulo anterior. O juiz não construirá uma nova história, mas continuará escrevendo a história posterior com as adequações necessárias. Uma ruptura total pode existir, mas exigirá uma argumentação maior para ser justificada, sobretudo em termos de princípios (DWORKIN, 2003, 275-277).

O ônus argumentativo é ainda maior quando se trata do intérprete-juiz, que, ao decidir, não pode seguir uma opinião estritamente pessoal, mas deve respeitar a tradição como fator de estabilidade do direito, o que demonstrará uma decisão com caráter intersubjetivo. A motivação da decisão guarda relação direta com a sua não arbitrariedade. Não basta que a decisão seja equitativa e aceitável, mas também deve estar de acordo com o direito em vigor (PERELMAN, 2004, p. 222-223).

A construção do que é direito envolve uma dupla exigência: sistemática, na elaboração de uma ordem jurídica coerente e; ainda, pragmática, já que busca decisões aceitáveis pelo meio e, portanto, razoáveis, envolvendo um conceito de adesão e não de verdade (PERELMAN, 2004, p. 238).

O direito deve ser considerado como bem mais do que o produto da consciência do sujeito pensante em relação ao objeto – norma jurídica – pensado. Ponderar o contrário seria admitir que esse mesmo sujeito se apoderasse do objeto em si e o tratasse da forma que melhor lhe aprouvesse, o que, neste quadro absurdo, justificaria que as diferentes experiências pessoais de vários juízes aplicadas à interpretação normativa, caso a caso, culminassem na formulação de decisões judiciais distintas acerca de uma mesma situação, ao seu mero arbítrio.

Deve-se evitar a armadilha em que alguns intérpretes das normas têm caído, ao ponderar, mesmo de forma velada, que a inexistência de um método cartesiano para se distinguir as decisões corretas das erradas tornaria o raciocínio jurídico uma perda de tempo. O direito não pode ser aquilo que o intérprete almeja que ele seja. O jurisdicionado, que busca no estado democrático, além da justiça, o valor da segurança, tem direito a uma decisão fundamentada, que seja exarada a partir de uma regra hermenêutica coerente.

A exigência de que o ato decisório deve ser praticado levando em consideração um dever de exaustiva motivação, decorrente da aplicação estrita do artigo 93, IX da Constituição Federal, norma na qual fica claro que, conforme consta na CF:

[...] todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Imaginar o contrário seria fazer tabula rasa à CF e, ao mesmo tempo, descartar centenas de anos de evolução da ciência hermenêutica, a qual jamais permitiu qualquer uso de relativismo ou prática meramente discricionária no ato decisório e de interpretação da norma jurídica. Observa-se, atualmente, que o princípio da segurança jurídica vem sendo tangenciado, em detrimento do protagonismo e da discricionariedade de alguns atos decisórios que ocultam verdadeiras posturas ideológicas e violam regras democraticamente validadas pelo legislativo, como bem alerta Streck (2011, p. 538-539):

Numa palavra final, não podemos admitir que ainda nessa quadra da história, sejamos levados por argumentos que afastam o conteúdo de uma lei – democraticamente legitimada – com base em uma suposta "superação" da literalidade do texto legal. Insisto: literalidade e ambiguidade são conceitos intercambiáveis que não são esclarecidos numa dimensão simplesmente abstrata de análise dos signos que compõem um enunciado. Tais questões sempre remetem a um plano de profundidade que carrega consigo a "dobra da linguagem", vale dizer, o contexto no qual a enunciação tem sua origem. Esse é o problema hermenêutico que devemos enfrentar! Problema esse que argumentos despistadores, como o da “superação” da literalidade da lei, só fazem esconder e, o que é mais grave, com riscos de macular o pacto democrático.

E, no caso, a lei indica que os precedentes judiciais devem ser observados, nos termos do artigo 489, §1º, VI, CPC, motivo pelo qual é necessário que o dever de integridade prevaleça nas decisões judiciais, principalmente quando a parte invoca um precedente amoldável de forma silogística ao caso concreto que, se observado pelo julgador, em respeito à lei processual vigente, culminaria no acolhimento da tese lançada no julgado, como observa a doutrina pátria (MARINONI & ARENHART & MIDIDIERO, 2015, p. 494):

Existindo precedente constitucional ou precedente federal sobre o caso debatido em juízo, a fidelidade ao direito constitui fidelidade ao precedente. Daí que a ausência de efetivo enfrentamento – mediante a demonstração da distinção – pelo juízo de precedente invocado pela parte constitui omissão relevante na redação da fundamentação. Existindo precedente invocado pela parte, esse deve ser analisado pelo juízo. Se disser efetivamente respeito à controvérsia examinada em juízo, deve ser adotado como razão de decidir. Se não, a distinção entre o caso precedente e o caso concreto deve ser declinada na fundamentação. A ausência de efetivo enfrentamento do precedente constitui violação do dever de fundamentação (art. 489, § 1º VI, CPC).

Quando presentes os requisitos dos artigos 489, 926 e 927 CPC, ou seja, invocando a parte um precedente judicial, plenamente amoldável ao caso concreto, não há que se abrir espaço para que o livre convencimento judicial, exaltado na vigência do Código de Processo Civil antigo, prevaleça, pelo simples fato de que a lei determina que o juiz deve observar os precedentes, se aplicáveis ao caso concreto.

Tergiversar a respeito dessa imposição legal seria violar o que Ronald Dworkin (DWORKIN, 2002, p. 60) denominou princípio "da supremacia do Legislativo", ou seja, as regras nasceram para serem cumpridas no Estado Democrático de Direito e, contrariar essa máxima – não aplicar um precedente sem motivo justificável -, implica uma violação do pacto Democrático. Vejamos:

Porém, não é qualquer princípio que pode ser invocado para justificar a mudança; caso contrário, nenhuma regra estaria a salvo. É preciso que existam alguns princípios com a importância e outros sem importância e é preciso que existam alguns princípios mais importantes que outros. Esse critério não pode depender das preferências pessoais do juiz, selecionadas em meio a um mar de padrões extrajurídicos respeitáveis, cada um deles podendo ser, em princípio, elegível. Se fosse assim, não poderíamos afirmar a obrigatoriedade de regra alguma. Já que, nesse caso, sempre poderíamos imaginar um juiz cujas preferências, selecionadas entre os padrões extrajurídicos, fossem tais que justificassem uma mudança ou uma reinterpretação radical até mesmo da regra mais arraigada.
Na segunda maneira de considerar o problema, um juiz que se propõe a modificar uma doutrina existente deve levar em consideração alguns padrões importantes que se opõem ao abandono da doutrina estabelecida; esses padrões são, na sua maior parte, princípios. Esses padrões incluem a doutrina da "supremacia do Poder Legislativo", um conjunto de princípios que exige que os tribunais mostrem uma deferência limitada pelos atos do Poder Legislativo. Eles incluem também a doutrina do precedente, outro conjunto de princípios que reflete a equidade e a eficiência que derivam da consistência. As doutrinas da supremacia do Poder Legislativo e do precedente inclinam em favor do status quo, cada uma delas na sua própria esfera, mas não o impõe. Os juízes, no entanto, não têm liberdade para escolher entre os princípios e as políticas que constituem essas doutrinas – também neste caso, se eles fossem livres, nenhuma regra poderia ser considerada obrigatória.

Considerando o que foi exposto, pode-se concluir que: a) as decisões judiciais não estão vinculadas somente à lei, mas aos precedentes judiciais; b) caso a parte invoque um precedente judicial perfeitamente amoldável ao caso concreto e o juiz não siga esse precedente e, ainda, não justifique a distinção do caso ao precedente, está violando flagrantemente o princípio da "supremacia do Legislativo"; c) não há espaço para o livre convencimento judicial capaz de alterar o dever de o juiz, num caso concreto, aplicar um precedente, quando caracterizada a mesma situação de fato.
__________


DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________________. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo CPC comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. Vergínia K. Pupi. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011.
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*Francis Ted Fernandes é advogado e sócio do escritório Tortoro, Madureira e Fernandes Advogados. Mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Pós-graduado em Administração de Organizações pela USP. Foi Professor Assistente de Direito Constitucional da PUC-SP.





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