No último dia 25 de outubro, a lei 5.172/66, posteriormente batizada de Código Tributário Nacional1, completou 50 anos de vigência.
A importância da data não passou ao largo da atenção da comunidade jurídica. Diversos eventos foram realizados pelo país afora, dedicados a debater, sobretudo, a contribuição expressiva desta codificação para a história do país.
Na exata data de aniversário do CTN, tive a satisfação de participar, ao lado de grandes juristas, de seminário dedicado à tarefa prazerosa de debater sobre os 50 anos do Código, com a organização dos pensadores e amigos Edison Carlos Fernandes e André Luiz Costa-Corrêa, sob a presidência de Rogério Gandra da Silva Martins.
É praticamente uma unanimidade na comunidade jurídica a percepção de que o CTN se constitui em lei de substancial rigor científico, elaborada de acordo com técnicas legislativas robustas, cumprindo com seu mister constitucional de ordenar o complexo sistema tributário brasileiro. Tarefa essa que se traduz em enorme desafio, sobretudo pela profusão inesgotável de normas emanadas pelos entes federativos – incluindo por suas administrações tributárias – no contexto do federalismo fiscal, nem sempre cooperativo.
Com efeito, não são poucas as atribuições exigidas do Código pelo artigo 146, III da CF. Prevenir conflitos de competência em matéria tributária, regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, ainda que com o auxílio de leis complementares esparsas, são incumbências de enorme grandeza, sobretudo quando o pretendido federalismo cooperativo, nas palavras de Heleno Torres2 assume por vezes índole oposta, marcada pela guerra fiscal, pela invasão de competências e pela concentração da arrecadação do ente central em contribuições não sujeitas à repartição de receitas.
Demonstração dessa capacidade ordenadora do CTN, como lembrou Gustavo Brigagão, manifesta-se na circunstância nada menosprezável de que o Código foi recepcionado por três novas Constituições, sem que qualquer dos seus dispositivos tenha sido declarado inconstitucional3.
Transcorridos 50 anos de enormes transformações políticas, econômicas e sociais, é inevitável a questão que se coloca a respeito da necessidade de nova codificação, ou, ao menos, de uma reforma no CTN. Por evidente, não se deve ceder à ideia reformadora apenas pela idade atingida pelo Código4; e faz necessário compreender, antes, quais são os processos transformadores já sofridos pelo Código ao longo de 50 anos de exegese jurisprudencial, e em adição, identificar as positivações que realmente necessitam adequação ao contexto jurídico e social corrente.
A questão das transformações normativas promovidas sem alteração de texto é tema central de debate na doutrina e nos Tribunais. No campo do Direito Tributário, o tema assume ainda maior relevo a partir da observação do processo de vigorosa constitucionalização de sua disciplina, sobretudo com a CF/88, cujos postulados são submetidos a um processo interpretativo pelo STF que privilegia a mutação constitucional, com contribuições da metódica estruturante, concebida como a alteração de conteúdo ocorrida no interior da própria norma, sem modificação textual5.
O CTN foi submetido, por vezes, ao mesmo processo interpretativo. Este fenômeno ocorreu desde alterações inúmeras em critérios de lançamento promovidas pelas autoridades fazendárias – cujas origens se encontram, inexoravelmente, na interpretação de normas gerais do direito tributário pertinentes à sujeição passiva tributária, decadência e outros temas elementares – até a construção de uma jurisprudência que promoveu, sem exageros, a mudança radical das normas jurídicas subjacentes ao suporte linguístico do texto legal6.
Fixada esta premissa, não se nega que o CTN, em razão do dinamismo da tributação e da constitucionalização substancial da matéria promovida em 1988, necessita de atualizações e mudanças. Diversas delas foram identificadas, de modo percuciente, por Igor Mauler Santiago, em sua defesa da necessidade de nova codificação7. Nesse sentido, o jurista aponta desatualizações, tais como, entre outras: as disposições sobre a natureza jurídica específica dos tributos (artigos 4º e 5º), que não englobam as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios, erigidas em espécies autônomas pelo STF; a omissão de normas gerais a respeito do ICMS e ISS (tratados em leis extravagantes) e do IPVA (que não conta com lei complementar); e a disciplina de impostos inexistentes, como os antigos impostos federais sobre transportes e comunicações.
Outras omissões também se mostram gravosas para a segurança jurídica, tais como a necessidade urgente de uma codificação organizada a respeito de normas gerais do processo administrativo tributário, bem como da disciplina do artigo 146-A da CF, que busca prevenir desequilíbrios da concorrência causados pela tributação.
É de se indagar, contudo, se ditas necessidades – de inegável relevância – exigem uma nova codificação, ou somente uma reforma na lei atual. Em seu inigualável senso de praticidade, Everardo Maciel assevera que um novo Código teria chances reduzidas de aprovação no tempo desejado, face aos desafios políticos de uma empreitada desta monta8.
Não bastasse, seja pelo apego à grande obra erigida por mestres do calibre de Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhôa Canto e Gerson Augusto da Silva, com influências de Aliomar Baleeiro e diversos outros pilares do Direito Financeiro e Tributário; seja pelos obstáculos de ordem prática, é certo que a reforma, em detrimento de nova codificação, teria o resultado de manter inabalados os sustentáculos do antigo, mas inconcusso, CTN.
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1 Conforme Ato Complementar 36, de 13/3/67.
2 Em sua Teoria da Constituição Financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
3 CTN completa 50 anos de idade.
4 Idade sequer tão avançada, se comparada com outras codificações nacionais, tais como o Código Civil de 1916 – que vigorou até janeiro de 2003 -, o CPP e o CP, ambos vigentes desde 1 de janeiro de 1942.
5 Este breve artigo não tem pretensão de esgotamento do tema, muito menos de espelhar com a mais perfeita exatidão o estágio dos debates existentes acerca do assunto. Sugere-se, nesse desiderato, o contato com o excurso realizado por Jean Grondin, acerca dos estágios relevantes da condução do pensamento hermenêutico, em: Hermenêutica. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Ed. Parábola, 2012.
6 Daí a consideração de Misabel Derzi, para quem os limites constitucionais ao poder de tributar, tal como a irretroatividade, devem ser examinados à luz da norma jurídica extraída pela exegese, e não a partir dos textos positivados. Nesse sentido: Modificações da jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009.
7 Chegou a hora de elaborar um novo Código Tributário nacional.
8 Tal como exposto no já citado Seminário dos 50 anos do CTN, realizado em 25-10-16 em São Paulo, na sede do CIEE, com a organização dos colegas Edison Carlos Fernandes e André Luiz Costa-Corrêa.
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*Ricardo Castagna é mestre pela PUC/SP e Doutorando pela USP. Professor do Núcleo de Direito Tributário do CEU-IICS Escola de Direito.