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Da litigância de má-fé nos processos trabalhistas e da busca pela verdade real e boa-fé processual

O princípio da boa-fé processual é suscitado em nossa legislação em diversas oportunidades, ainda que indiretamente, relacionando-se nestes casos à litigância de má-fé, à prática de atos ilícitos.

1/11/2016

1. Do dever de boa-fé

O bom exercício da Justiça exige a obediência a alguns princípios balizadores, a fim de que possa ser garantida uma prestação jurisdicional plena, satisfatória e desincumbida de vícios. Para tanto, um dos princípios que deve nortear o processo judicial, bem como os contratos e, até mesmo, as atividades cotidianas, a fim de trazer transparência e paridade às relações, é o da boa-fé.

No âmbito processual, este princípio é o que conduz, principalmente, os procedimentos judiciais, auxilia na produção probatória e na formação do convencimento do juízo. O art. 5º do CPC, aplicado de forma subsidiária também ao processo trabalhista, prevê que todo agente processual deve se comportar conforme a boa-fé. No artigo seguinte, o diploma processualista adiciona ainda o dever processual de cooperação para que a decisão de mérito, justa e efetiva, se dê em prazo razoável.

Neste sentido, o princípio da boa-fé processual é suscitado em nossa legislação em diversas oportunidades, ainda que indiretamente, relacionando-se nestes casos à litigância de má-fé, ao dever com a verdade ou, até mesmo, à prática de atos ilícitos.

2. Da busca da verdade real e da litigância de má-fé

Tendo em vista a necessária busca pelos fatos que circundam a relação que desencadeou uma ação judicial, a verdade real diferencia-se neste aspecto da verdade formal. Isso porque a verdade formal se refere aos fatos comprovados através de provas nos autos, ou seja, o que se pode provar, embora não reflita fidedignamente os fatos.

Para as ações trabalhistas, não basta a existência da verdade formal, se esta não corresponde à verdade real dos fatos. Exemplificando: os cartões-ponto possuem o registro de uma hora de intervalo intrajornada pleno, porém o funcionário, na realidade, somente gozava de quinze minutos. Desta forma, embora o registro em cartão-ponto sirva como prova, a princípio, ele não retrata a situação ocorrida, tendo em vista que a ausência do gozo integral do intervalo intrajornada pode vir a ser matéria de contraprova, e, assim contribuir para o convencimento do juízo.

Ou seja, cabe ao juiz o dever de investigar, de perseguir a situação ocorrida de fato, de obter a verdade real. É esta busca que conduz as demandas provenientes de relações laborais, corroborado pelo disposto no art. 77, I do CPC, que trata do dever para com a verdade, de forma que se obtenha senão uma verdade inconteste, ao menos sua versão o mais próxima possível da realidade.

O propósito é que se atinja não meramente uma verdade processual, posta nos autos, mas aquela mais próxima do universo fático. E muito embora a ideia de verdade seja por demais relativa, uma vez que os fatos comportam diversas visões ou versões, o julgador, munido de seus poderes instrutórios deve empreender os esforços necessários para que se atinja um grau de segurança processual, devendo buscar informações para além das provas trazidas pelas partes aos autos.

Ou seja, a busca da verdade material está intimamente relacionada a uma postura mais ativa do julgador, que coopera com o processo. A valoração das provas e das verdades ou suas versões apresentadas pelas partes deve ocorrer conforme o livre convencimento motivado, de forma transparente e objetiva, já que o dever de boa-fé também é afeto do Judiciário.

Da ausência da verdade e do uso de subterfúgios na tramitação processual, somos conduzidos ao instituto da litigância de má-fé, conforme disposto no art. 80 do CPC. Dentre as condutas elencadas em seus incisos que configuram a litigância de má-fé, destaca-se o inciso II, que trata justamente da alteração da verdade dos fatos.

Ou seja, ainda que as partes alterem suas versões dos fatos, procurando induzir o Judiciário, através de argumentos e provas falaciosas, a um julgamento favorável, o juiz tem o poder-dever de investigar a verdade dos fatos, ou seja, a verdade real. E ao contrário do que por muito tempo se considerou, a busca pela verdade material não significa uma postura imparcial do juiz, mas de compromisso com a verdade, até porque, ao mergulhar em sua busca, o juiz não sabe de antemão o que encontrará, ou seja, seu compromisso é institucional, com o processo, e não com dada parte.

Sendo constatada a má-fé, podem ser responsabilizados a este título tanto o autor quanto o réu, bem como as partes intervenientes, vindo a responder por perdas e danos na forma do art. 79 do CPC, sem prejuízo de eventual multa cabível.

Observa-se, pois, que a boa-fé processual, assim como a antagônica litigância de má-fé, estão intimamente ligadas à verdade real que deve nortear os processos judiciais, funcionando a sanção como mais uma forma de se garantir a observância prática do princípio.

3. Da litigância de má-fé e suas consequências nas ações trabalhistas

As relações laborais são reconhecidamente fruto de grandes controvérsias. As reclamatórias são protocolizadas em demasia, audiências restam frustradas por ausência das partes reclamantes, processos são arquivados, novamente propostos e, não tão raros, arquivados novamente.

Com relação às provas, geralmente recorre-se à coleta de depoimentos em audiências de instrução, procedimento que pode ser moroso, tendo em vista o número de testemunhas inquiridas ou até mesmo a extensão das matérias probatórias. Todos estes procedimentos fazem com que a tramitação processual seja menos ágil, embora a Justiça laboral tenha como caráter a celeridade, até mesmo por exigência da matéria proposta.

Diante destas situações, os magistrados do Trabalho têm se posicionado de maneira mais rígida no que tange à litigância de má-fé por parte das reclamantes, como já comumente aplicada às partes reclamadas.

A falta com a verdade e a má-fé na imputação das alegações têm sido matérias recorrentes na configuração da má-fé processual por partes dos reclamantes na esfera trabalhista, acarretando nas penalidades dispostas caput do art. 81 do CPC, como a imposição de multa e indenização à parte contrária, bem como o pagamento de honorários e despesas.

Cabe salientar que a legislação trabalhista não traz previsão quanto à condenação por litigância de má-fé ou suas penalidades. Para tanto, recorre-se ao direito comum como fonte subsidiária a fundamentar esta aplicação, conforme a orientação do parágrafo único do artigo 8º da CLT.

No sentido do exposto, cabe mencionar o trecho da sentença proferida em 7/2/13, pela juíza Anna Beatriz Matias Diniz de Castilho Costa da 5ª vara do Trabalho de Vitória/ES no processo nº 0053600-05.2012.5.17.0005, no qual a Reclamante foi condenada em litigância de má-fé:

(...) A petição inicial é temerária, trazendo elementos imaginários e destituídos de qualquer fundamento fático e jurídico. A artimanha é sempre muito semelhante; mentir, ocultar a verdade ou exagerar.
Ocorre que o Judiciário realmente não pode tolerar tal sorte de comportamento. São muitos os que têm sede de Justiça. Este Poder está abarrotado de processos. São inúmeras as pessoas que efetivamente precisam da mão pesada do Estado para reparação/prevenção de direitos. E tipo de demanda prejudica a coletividade, visto que faz com que a Justiça perca tempo e dinheiro desnecessariamente, retardando o atendimento daqueles que efetivamente carecem e clamam por Justiça. (...)

A crença na hipossuficiência da parte reclamante, bem como na gratuidade da Justiça não raro motivam, na prática, o descompromisso com a verdade no processo. Faz crescer a sensação de impunidade, da ausência de responsabilização, principalmente financeira. Entretanto, tal premissa não é verdadeira. Atentos a isto, os juízes do trabalho têm imposto penalidades aos que litigam de má-fé, inclusive condenando-os à perda da gratuidade da Justiça. Com isso, gera-se aos reclamantes graves prejuízos, diante da conduta maliciosa, principalmente na interposição de recursos.

Corroborando o exposto, menciona-se os julgados n° 0001700-29.2014.5.12.0012 e 0000810-44.2014.5.09.0022. Cabe ainda verificarmos o posicionamento do Juiz Giani Gabriel Cardozo da 1ª vara do Trabalho de Gravataí/RS ao proferir sentença em 17/10/2014 no processo nº 0000804-64.2013.5.04.0231:

(...) Atitudes como esta demonstram o desrespeito do autor com o Poder Judiciário e merecem ser alvo de sanção, de forma a evitar que se repita.
Dessa forma, aplico multa de 1% por litigância de má-fé (Art. 18, caput, CPC) e condeno o autor ao pagamento de indenização, na razão de 10% (Art. 18, § 2º, CPC), ambas calculadas sobre o valor da ação (R$ 70.000,00), valores que serão executados nesta ação e revertidas às reclamadas.
(...) O autor declinou não ter condições de suportar custas processuais, mas por ter incorrido em litigância de má-fé não faz jus ao benefício da Justiça gratuita.
É indevida a concessão dos benefícios da Justiça Gratuita ao litigante de má-fé, por absoluta incompatibilidade entre estes dois institutos. A gratuidade da Justiça está intimamente ligada à lealdade processual, de sorte que o seu beneficiário não está dispensado de agir eticamente, sob pena de a sociedade ter que arcar com os custos daquele que impulsiona a máquina judiciária obtendo vantagens indevidas. Rejeito. (...)

Trata-se de uma visão mais moderna, de acordo com os princípios gerais a serem observados no processo na Justiça Laboral, que prima pelo crescente reconhecimento da litigância de má-fé aos reclamantes, como já tradicionalmente aplicado aos reclamados, e sua consequente penalização. É, em suma, desmistificar a ideia de que a hipossuficiência, a gratuidade da Justiça e a flexibilidade das formalidades que amparam o Direito do Trabalho trariam impunidade aqueles que pretendem maquiar a relação fática. Isso porque caso se conformasse com a verdade meramente formal, conforme posta nos autos pela parte, o julgador certamente poderia até dizer o direito, mas não contemplaria o acesso à Justiça e seu compromisso com um julgamento justo em sua essência e universalidade.
__________

*Carolina Alves de Oliveira Rocha é advogada e coordenadora do escritório Almeida Guilherme Advogados Associados no Rio de Janeiro.







*Daiana de Castro Silveira é advogada associada do escritório Almeida Guilherme Advogados Associados.



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