Migalhas de Peso

A decisão correta de Sérgio Moro de levantar o sigilo das interceptações telefônicas de Lula

Observância estrita ao Direito fundamental à liberdade de expressão e ao princípio da proporcionalidade - Decodificação do Direito em prol da Justiça e não em prol da possível vontade pervertida de poder

18/3/2016

"Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor. Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende. Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir."

(Cora Coralina)

É fato notório1 que o Juiz Federal Sérgio Moro autorizou que as conversas telefônicas de Lula fossem interceptadas, o que ocorreu quando ele não havia tomado posse como Ministro da Casa Civil e, portanto, não possuía foro privilegiado. Os diálogos de Lula sugerem, como também vem sendo amplamente noticiado2, que ele aceitaria o cargo para fugir das investigações da operação “Lava-Jato”, o que poderia configurar prática de obstrução de justiça e ainda desvio de finalidade perpetrado pela Presidente Dilma, além de crime de responsabilidade.

Curiosamente, ao invés de discutir o mérito chocante das gravações, qual seja, a possibilidade, se confirmados os fatos, de a República estar sendo tomada de assalto por um grupo que não mede as consequências de seus atos para manter sua vontade pervertida de poder, a comunidade jurídica e a sociedade decidiram focar o debate num ponto: poderia o Juiz Sérgio Moro ter levantado o sigilo das interceptações telefônicas?

Focaremos esse breve trabalho na resposta a essa indagação e, além disso, justificaremos que muitos rios de tinta se tem gastado pelo Governo para decodificar o direito conforme sua possível – se confirmada a versão dos investigadores da “Lava-Jato” – vontade espúria e pervertida de poder.

Nesse sentido, é de vital importância ter em mente que o único investigado no momento da liberação do sigilo telefônico por Moro era Lula, que teve a linha telefônica que utilizava interceptada com autorização judicial e não possuía foro privilegiado, já que não havia tomado posse como Ministro da Casa Civil.

Ao receber uma ligação da Presidente Dilma - que não era investigada por Moro -, o juiz, naquele ato, tomou conhecimento de fatos de relevantíssimo interesse nacional, talvez, nunca vistos antes na história deste país: um ex-Presidente e uma Presidente, poderiam estar envolvidos num esquema para perpetrarem, a qualquer custo, sua vontade ilegítima e ilegal de poder.

O que fazer?

Privilegiar o princípio da liberdade de expressão e cientificar todos os brasileiros de que a República poderia – se confirmadas algumas hipóteses – estar sendo tomada de assalto, achacada, vilipendiada, ou, ao revés, zelar pelo princípio da intimidade dos envolvidos na conversa, Lula e Dilma?

Preservar o direito de o cidadão conhecer os fatos e ajudar a construir o futuro do país, ou, ao revés, preservar a intimidade dos envolvidos, talvez, num esquema audacioso, de perpetuação espúria de poder, que atenta contra o Estado Democrático de Direito?

Decidir pela liberdade de expressão é a melhor resposta, melhor opção, melhor decisão para o caso concreto. Isso porque o princípio da liberdade de expressão, prima facie - segundo parte considerável da doutrina e como se poderá observar, a seguir -, tem maior carga axiológica que o princípio da intimidade. Assim, pois, quando se resolve referida colisão de princípios “deve-se partir da premissa de que a liberdade de expressão situa-se num elevado patamar axiológico na ordem constitucional brasileira, em razão da sua importância para dignidade humana e democracia3. E, a atribuição de maior dimensão de peso a um princípio, no ato de sua positivação, em detrimento de outro, no plano abstrato é denominada “precedência geral” por Robert Alexy, que assim afirma:

Duas normas levam, se isoladamente consideradas, a resultados contraditórios entre si. Nenhuma delas é válida, nenhuma tem precedência absoluta sobre a outra. O que vale depende da forma como será decidida a precedência entre elas sob a luz do caso concreto. É necessário notar, neste ponto, que à já mencionada variedade de formas de se denominar os objetos do sopesamento deverá ser acrescentada mais uma, a dos “valores constitucionais”.

Depois da constatação de uma colisão entre princípios cujos valores abstratos estão no mesmo nível, o Tribunal Constitucional Federal, em um segundo passo, sustenta uma precedência geral da liberdade de informar (P2) no caso de uma “informação atual sobre atos criminosos” (C1), ou seja, (P2PP1) C14.

A afirmação de Alexy, não impõe, como se pode observar, que o princípio da liberdade de expressão sempre deve prevalecer sobre o princípio da intimidade, mas que pode existir uma condição (em potencial) de “precedência geral” da primeira norma em relação à segunda, condição esta que pode ser alterada levando em consideração as peculiaridades de cada caso concreto, conforme pondera o próprio Robert Alexy:

Essa lei, que será chamada de “lei de colisão”, é um dos fundamentos da teoria dos princípios aqui defendida. Ela reflete a natureza dos princípios como mandamentos de otimização: em primeiro lugar, a inexistência de relação absoluta de precedência, e em segundo lugar, sua referência a ações e situações que não são quantificáveis5.

(...).

Ao contrário, é necessário “decidir qual interesse deve ceder, levando-se em consideração a configuração típica do caso e suas circunstâncias especiais”6.

(...)

Essa relação de precedência é interessante, porque nela se sustenta apenas uma precedência geral ou básica. Isso significa que nem toda informação atual é permitida. A condição de precedência e, com isso, o suporte fático da regra que corresponde ao enunciado de preferência segundo a lei de colisão incluem uma cláusula ‘ceteris paribus’, a qual permite o estabelecimento de exceções7.

Entende, também, José Adércio Leite Sampaio que a “precedência geral” do princípio da liberdade de expressão em relação ao princípio da intimidade, ou seja, que a sua maior carga axiológica em abstrato, não é capaz de antecipar, de forma absoluta, uma solução que depende dos contornos do caso concreto, o que se pode concluir a partir da preleção abaixo:

A fronteira mais frequentemente aparente da intimidade se dá com a liberdade de imprensa e expressão ou, coletivamente, do direito à informação. Não há como antecipar, de modo absoluto e cadente, uma prevalência abstrata de um ou outro direito fundamental. Tudo depende da situação de conflito, a considerarem-se, por exemplo, o tipo de informação captada e publicada, o lugar da captação, o comportamento do titular do direito, o interesse público e a objetividade na divulgação da notícia8.

A partir do que até o momento foi exposto, pode-se asseverar que, diante de um caso concreto que apresente um conflito entre o princípio da liberdade de expressão e o princípio da intimidade, o intérprete pode decidir, prima facie, que o princípio da liberdade de expressão tenha maior dimensão de peso do que o da intimidade, lembrando, sempre, que a regra não é absoluta e que somente pode ser definida a partir caso concreto apreciado.

E, no caso concreto, estavam em jogo os valores republicanos. O Povo tem o direito de saber o que ocorre, principalmente, com os atores políticos do país, para apoiar ou reprovar sua conduta. Manter em sigilo esse comportamento – a possibilidade de se empossar Ministro um ex-Presidente investigado para que ele fuja da Justiça, com o possível apoio da Presidente - seria subtrair do povo um direito fundamental, seria privilegiar um retrocesso, ou, ainda, a tentativa de eliminar uma posição jurídica do cidadão, o que não pode ser concebido, o que pode se inferir a partir do estudo da obra de Robert Alexy:

O terceiro grupo de direitos a ações estatais negativas é constituído pelos direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito.

(...)

Quando se proíbe a expressão de determinadas opiniões, elimina-se uma posição de a: a permissão de expressar essas opiniões. Uma tal proibição pode ser encarada sob dois aspectos: sob o aspecto do embaraço de uma ação e sob o aspecto da eliminação de uma posição. No caso de ações que não são atos jurídicos, o primeiro aspecto é o decisivo.

Mais uma vez é aconselhável reduzir a diversidade a uma forma padrão simples, como a seguinte:

(8) a tem, em face do Estado, um direito a que este não elimine a posição jurídica RP de a.

A existência de uma posição jurídica significa que uma norma correspondente (individual ou universal) é válida. O direito do cidadão, contra o Estado, a que este não elimine uma posição jurídica sua é, nesse sentido, um direito a que o Estado não derrogue determinadas normas.9

Impedir a divulgação do conteúdo da gravação telefônica licitamente interceptada seria atentar contra a liberdade de expressão e contra o direito de o cidadão não ter eliminada sua posição jurídica de ter informações relevantes sobre o que se passa na República Federativa do Brasil, principalmente o que vinha sendo talvez tramado à sorrelfa!

Ao ponderar princípios, o intérprete deve levar em consideração o peso do princípio da liberdade de expressão em conexão com as nuances do caso concreto, aplicando o princípio da proporcionalidade, segundo o qual a decisão final deve ser afastada, se observada uma entre as seguintes condições sucessivas: a) a ausência de adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; b) a desnecessidade ou não exigibilidade da medida, dada a existência de outro meio alternativo, menos gravoso, para se chegar ao mesmo resultado; c) a situação em que os custos superam os benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha10. Todos os requisitos da proporcionalidade estavam presentes para justificar o levantamento do sigilo das conversas interceptadas de Lula, a saber:

Por outro lado, entende-se que há uma possível tentativa de setores do Governo, principalmente, de se tentar desqualificar a decisão do Juiz Sérgio Moro, partindo da premissa de que ele teria agido ilegalmente, liberando o sigilo das interceptações telefônicas, pois estaria investigando a Presidente Dilma, já que não teria competência para isso, e, portanto, teria violado seu sigilo telefônico. Ficou claro, conforme explicitado anteriormente, que isso não ocorreu. O investigado era Lula, que não tinha foro privilegiado e a situação exigia a divulgação das gravações, em respeito ao princípio da liberdade de expressão.

O que pode estar ocorrendo é uma tentativa, por parte de setores do Governo, de decodificar o direito, perante os meios de comunicação, conforme a sua vontade de perpetrar seu projeto, talvez, espúrio, de poder, mesmo que para isso tenha que assumir o risco de agir com desvio de finalidade, tentando obstruir a justiça e intimidar os responsáveis por conduzir a operação “Lava-Jato”, que estão cumprindo o seu papel de forma destemida.

Ao decodificar o direito, o Governo, no mundo ideal, deveria fazê-lo com ânimo estritamente técnico, ou seja, deveria questionar qual o verdadeiro significado de um texto legal, artificialmente criado, à luz do caso concreto. No entanto, essa atitude científica pode não estar se verificando na prática, como na análise do caso da liberação do sigilo telefônico de Lula pelo Juiz Moro, pois se constata uma propensão de decodificação com vista a apascentar a vontade de poder do próprio intérprete – Governo -, ou seja, o seu interesse que determinado texto legal seja interpretado de forma a conformar sua pretensão, muitas vezes ilegítima, no dizer do professor italiano Ricardo Guastini11:

Evidente, questões do tipo “Qual é o ‘verdadeiro’ significado desta lei?”, “Qual era a ‘verdadeira’ intenção do legislador?”, e similares, podem surgir somente no âmbito daquele jogo interpretativo peculiar, que é jogado por um juiz fiel, legalitário, devotado na observância e na aplicação da lei (da lei enquanto tal, não importa qual possa ser concretamente o seu conteúdo normativo). Os advogados, contudo, têm um comportamento diferente diante da lei: eles não dão como deduzida alguma obrigação (moral) de si mesmos ou de seus clientes no sentido obedecer à lei enquanto tal. De fato, jogam um jogo interpretativo completamente diferente: não perguntam qual é o ‘verdadeiro’ significado da lei ou qual teria sido a ‘verdadeira’ intenção do legislador. Perguntam-se: como posso interpretar ou manipular as formulações normativas existentes em vista dos objetivos do meu cliente?

Vejam que na situação acima o mestre italiano ressalta que o jogo interpretativo na maioria das vezes é jogado por um juiz fiel e legalitário, devotado à aplicação da lei, que entendemos que é o que ocorre no caso. Moro, até aqui, vem demonstrando ser esse juiz, que preservou o princípio da liberdade de expressão e da proporcionalidade no caso, bem como o direito de milhões de brasileiros de conhecer, talvez, uma trama pervertida que se desenvolvia nas sombras.

_______________

1 https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/03/veja-o-que-dizem-advogados-sobre-decisao-de-moro-no-grampo-de-lula.html - acesso em 17/03/2016.

2 Ibidem.

3 SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 5º, inciso IV. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SALET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 257.

4 ALEXY,Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed.Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 101.

5 ALEXY, op. cit. p. 99.

6 ALEXY, op. cit. p.100.

7 ALEXY, op. cit. p. 101.

8 SAMPAIO, op. cit. p. 283.

9 ALEXY, op. cit. p. 199-201.

10 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4ª. edição – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 281/282.

11 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 144.

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*Francis Ted Fernandes é advogado e sócio do escritório Tortoro, Madureira e Fernandes Advogados. Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Administração de Organizações pela USP. Professor Assistente de Direito Constitucional da PUC/SP.

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