Migalhas de Peso

O tabu das tatuagens nos concursos públicos

Convenhamos, somos uma sociedade em evolução e tratar “tatuados” como foras da lei é no mínimo grosseiramente retrógrado.

18/3/2016

Desde sempre temos notícias de bons candidatos preocupados com sua provável reprovação nos exames médicos relacionados na grande maioria dos editais, principalmente aqueles que fazem menção expressa à presença de tatuagens.

Como se é de esperar do Direito por sua própria natureza, já temos o tema sendo tratado pelo Supremo Tribunal Federal, guardião dos Direitos e Garantias Fundamentais, onde o assunto acaba resvalando pela amplitude do artigo 5º. Mais recentemente, o tema foi objeto de análise de repercussão geral em recurso extraordinário, gerando a seguinte e maravilhosa ementa:

“REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. EDITAL. REQUISITOS. IMPEDIMENTO DO PROVIMENTO DE CARGO, EMPREGO OU FUNÇÃO PÚBLICA DECORRENTE DA EXISTÊNCIA DE TATUAGEM NO CORPO DO CANDIDATO. AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA ESTATAL DE QUE A TATUAGEM ESTEJA DENTRO DE DETERMINADOS PARÂMETROS. ARTS. 5º, I E 37, I E II DA CRFB/88. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.” DJe-178 DIVULG 09-09-2015 PUBLIC 10-09-2015.

E como leigos, podemos concluir que a restrição é constitucional, desde que esteja o desenho limitado a determinados parâmetros. Ou seja, a restrição é permitida desde que atente para alguns valores e costumes próprios de nossa sociedade e especialmente da função a ser exercida.

Sendo constitucional, abrem-se algumas discussões sobre a severidade de como o tema é trabalhado pelos editais que são questionados na justiça e, diga-se de passagem, a maioria deles é da área militar. E nesses casos, entendemos que o mérito das ações passa mais uma vez pela necessidade de reforçarmos valores e costumes.

Mas convenhamos, somos uma sociedade em evolução e tratar “tatuados” como foras da lei é no mínimo grosseiramente retrógrado. É muito daquilo que diz a música do rapper Gabriel o pensador quando aborda o tema do Racismo. A letra é clara sobre o caráter e a atitude das pessoas, independente da cor da pele com a qual fomos agraciados ao nascer...

“Você aprendeu que preto é ladrão
Muitos negros roubam, mas muitos são roubados
E cuidado com esse branco aí parado do seu lado
Porque se ele passa fome
Sabe como é:
Ele rouba e mata um homem
Seja você ou seja o Pelé
Você e o Pelé morreriam igual”

De volta à análise crítica relacionada à limitação do edital para a presença de tatuagens no corpo do candidato, o que deveríamos esperar das leis dos concursos (sim, inexoravelmente eles regem tudo em relação a cada um dos certames)? Bom, olhando de fora das corporações, eu acharia absolutamente louvável uma tatuagem gigantesca no braço do (a) candidato (a) com o brasão da corporação. Imaginem vocês o sentimento de pertencimento, o gosto com o qual esse servidor iria trabalhar diariamente.

Por outro lado, por menor que fosse, entenderia como absolutamente inapropriada a reprodução da folha da Canabis no corpo do (a) candidato (a) ao cargo de Policial Militar / Civil ou Guarda Municipal, não por guardar qualquer preconceito em relação ao uso da erva, mas por entender que devendo o servidor zelar pelo cumprimento da lei, e nesse caso ainda uma droga não descriminalizada, que moral teria ele diante de uma apreensão ou mesmo da condução de um usuário? Podemos esperar dele o mesmo rigor de um outro servidor? Não sei, frisando ser essa a minha opinião. E estamos aqui para debater, ouvir críticas e construir um pensamento melhor. Mas até aqui não consegui ser influenciado por outros argumentos.

Excessos devem ser questionados junto à banca examinadora e em última análise, na justiça, lembrando também ao candidato que o bom senso deve a ele ser aplicado. Entendo que o equilíbrio e o justo já sejam de conhecimento do arcaico “homem médio” (piada essa...), ou seja, não acho justa a argumentação de que não existe relação emocional do candidato com sua pintura, ainda mais em tempos de tratamentos para remoção das artes corporais.

De novo, pessoalmente não creio que alguém que tenha tatuado no peito a imagem de um algoz, não guarde em seu íntimo o desejo por sangue, por sofrimento. Para mim, tem algo de errado especificamente para o exercício de algumas funções. Foro íntimo é íntimo; e como já dizia um grande civilista amigo meu, é tão íntimo que a privada (vaso sanitário), deveria ser chamada de intimada, ou seja, só você.

Objetivamente, a Polícia Federal não faz qualquer restrição no edital de ingresso aos quadros da carreira, mas conhecemos a rigorosa investigação de vida pregressa dos aprovados, o que de algum modo acaba buscando os mesmos indícios de conduta e gostos que estariam estampados nas tatuagens, apontando para uma realidade muito mais alinhada com nossos dias: a tatuagem é uma forma de expressão artística e ponto.

Julgar as pessoas por sua presença conjuga tanto quanto o julgamento dos judeus durante a segunda guerra (qual?). Por fim, para que fique claro como o tema é cobrado, peguemos por exemplo a restrição trazida pelo edital da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, 2013. Sinceramente, com toda cabeça aberta que julgo ter, nada de diferente do que esperaria:

“15.4.4 Tatuagem nas mãos, antebraços, pescoço, cabeça e face, a fim de não prejudicar a estética militar quando do uso dos uniformes regulamentares. Serão proibidas ainda tatuagens que afetem a honra pessoal, o pundonor policial militar, o decoro exigido aos integrantes da Polícia Militar, discriminatórias, preconceituosas, atentatórias à moral, aos bons costumes, à religião ou ainda que cultuem violência ou façam algum tipo de apologia ao crime (nesses casos é proibida tatuagem em qualquer parte do corpo).”

Se seu caso resvala em situação como essa, sugiro mudar o desenho ou mudar a profissão. Como sugerido lá em cima, a questão é de valores e algumas funções estatais precisam urgentemente rever seus ocupantes. E até onde percebo, as funções relacionadas à segurança pública têm tentado, a duras penas, manter a casa em ordem.

____________

*Leonardo Pereira é diretor acadêmico do IOB Concursos. Advogado graduado pela PUC/MG, possui pós-graduação em Direito Público e em Direito Privado, ambas pelo Instituto Metodista Isabela Hendrix. Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos.

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