O Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral pelo Plenário Virtual no Recurso Extraordinário 450, de relatoria do ministro Luiz Fux, e irá decidir se certos tipos de tatuagens devem ser considerados impeditivos para o ingresso em cargo, emprego ou função pública, exigência que geralmente consta dos editais de concursos. Trata-se de uma ação em que um candidato de ingresso à carreira da Polícia Militar de São Paulo foi excluído após ter sido submetido a exame médico conclusivo de que a tatuagem na perna direita não atendia as normas do edital, que estabelecia os parâmetros para sua aceitação.
Não se pode dissociar a pessoa de seu corpo. Ambos compõem um universo individualizado, cada qual carregando seus predicados psíquicos e físicos, um como a exteriorização de uma entidade privada e outro como pública. Um como éthos, outro como instrumento. Assim, numa lógica inquestionável, a mente, geradora e administradora da volição que anima o corpo, assenhora-se dele e o transforma em um latifúndio indisponível. E passa a regê-lo de acordo com suas configurações pessoais e as normas externas relacionadas com o comportamento social e moral, direcionando-o de acordo com sua conveniência e estabelecendo o controle responsável de suas ações, inclusive a aplicação de tatuagens.
Nesta linha de pensamento, é indiscutível questionar a autonomia da pessoa humana. A autonomia, assim como a liberdade, deveria ser absoluta, porém, em razão do regramento imposto pela sociedade com a intenção de tutelar as pessoas, encontra seus limites. O ideal seria viver em um Estado onde ocorresse a realização espontânea do Direito, a liberdade e o comprometimento social em seu estágio natural, como imaginou Montesquieu, no Espírito das Leis. Desta forma o devedor, sponte propria, assumia seu débito; o pai, igualmente, honraria o pagamento da pensão alimentícia devida ao filho e assim por diante. Na impossibilidade de se atingir tal utopia, os direitos são restringidos e encontram a barreira da dignidade do ser humano como o fator limitador e regulador das condutas sociais. A autonomia, desta forma, nada mais é do que o resultado de variáveis estruturais biológicas, psíquicas e socioculturais.
A tatuagem vem se intensificando entre os jovens, profissionais de variadas áreas e ganha o corpo humano como uma expressão de arte (body art). É corriqueiro já encontrar homens e mulheres com várias partes do corpo tatuadas, em um universo de imagens que rodam ao redor do mundo, com significados subjetivos, explícitos e mensagens de diversos conteúdos. Basta ver que o internacionalmente conhecido marinheiro Popeye tem uma âncora em cada braço.
E é indisfarçável também que a tatuagem provoca lesão corporal, de natureza deformante e permanente, daí deve ser obtido o consentimento do interessado, maior e capaz para a prática do ato.
É sabido que o edital, na famosa lição do mestre Hely Lopes Meirelles, é a lei interna da licitação. Isso significa que o edital deverá prever os critérios de habilitação e classificação, preço, pagamento, sanções e as demais regras procedimentais do certame. Ora, levando-se em conta que o concurso público nada mais é do que uma espécie do gênero licitação, verifica-se que o edital do concurso deve prever todas as regras que serão exigidas, bem como critérios e requisitos para aprovação, justamente por ser a lei interna do concurso público.
Mas tal lei não pode e nem deve restringir direitos consagrados no texto constitucional. Com efeito, há mandamentos constitucionais explícitos, previstos nos artigos 7º, inciso XXX, 37 e 39 § 3º, todos da CF/88 e implícitos, que recomendam e exigem maior cuidado quando da imposição de restrições aos candidatos em concursos públicos. Sendo assim, no âmbito de uma hermenêutica mais adequada à ordenação jurídica brasileira, em nenhuma hipótese o edital pode inserir cláusula que não se coadune com a coerência legislativa, sob pena de ser inexigível a restrição. Neste sentido, a súmula 683 do Supremo Tribunal Federal adverte que eventual restrição só se legitima quando possa ser justificada pela natureza do cargo a ser preenchido.
Assim, numa leitura prévia, e ao que tudo indica no julgamento da questão, vislumbra-se indesejável preconceito e descriminalização, consistente na ofensa ao princípio da isonomia, pois considera desiguais pessoas tatuadas. O <_st23a_dm w:st="on">óbice <_st13a_verbetes w:st="on">afeta a <_st13a_verbetes w:st="on">garantia de <_st23a_hdm w:st="on">exercer o <_st23a_dm w:st="on">trabalho, <_st13a_verbetes w:st="on">que será <_st13a_verbetes w:st="on">proibitivo <_st23a_dm w:st="on">para <_st13a_verbetes w:st="on">tais pessoas e tal entrave se contrapõe à igualdade social, que abrange igualdade de ocasiões e oportunidades. Em consequência, amargarão a pecha de pessoas capacitadas, porém inutilizadas profissionalmente em razão da opção pelo tattoo, como se fosse ele o responsável pela qualificação do candidato e qualificação do serviço a ser prestado. Cria-se, se assim pode ser dito, até mesmo um embaraço na convivência social.
Finalmente, afiança a Lei Maior que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e o bem de todos, sem preconceitos e outras formas de discriminação é um dos objetivos da República. A respeito, adverte Bobbio: "O processo de Justiça é um processo ora de diversificação do diferente, ora de unificação do idêntico. A igualdade entre todos os seres humanos em relação aos direitos fundamentais é o resultado de um processo de gradual eliminação de discriminações, e portanto de unificação daquilo que ia sendo reconhecido como idêntico: uma natureza comum do homem acima de qualquer diferença de sexo, raça, religião, etc"1.
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1 Bobbio, Norberto. O terceiro ausente. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP, 2009, p. 93.
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