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A destruição da teoria das incapacidades e o fim da proteção aos deficientes

A capacidade de fato corresponde à aptidão de um sujeito de direito para praticar por si mesmo os atos que produzem efeitos jurídicos.

12/8/2015

1. Introdução a absurda lei 13.146/2015

Na última coluna falamos sobre as aberrações da lei 13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência e, entre outras aberrações, modifica substancialmente os arts. 3º e 4º do Código Civil de 2002.

Hoje, como prometido, faremos alguns apontamentos acerca do sistema de incapacidades. Nosso objetivo é demonstrar o erro do legislador através de uma sintética exposição sobre aqueles que supostamente são os fundamentos da nova lei.

2. O fundamento das incapacidades

A capacidade de fato corresponde à aptidão de um sujeito de direito para praticar por si mesmo os atos que produzem efeitos jurídicos1. Essa aptidão pressupõe autodeterminação2, e, assim, uma capacidade natural de querer e entender3.

Deixando de lado as considerações históricas e a evolução dos conceitos, fiquemos com a ideia mais explícita de autodeterminação. Se esta faltar, a autonomia individual não se desenvolve em sua integridade; e, sendo assim, os instrumentos elementares de sua realização – v.g., o negócio jurídico4 – não se podem estabelecer. Autorizar sua realização seria permitir ato jurídico da parte de quem não manifesta vontade juridicamente apreciável, por falta de discernimento5.

A lei não pode ser insensível a essas situações particulares que desautorizam já – e faticamente – a prática de atos jurídicos em igualdade de condições com o resto dos indivíduos. Daí estabelecer o sistema de incapacidades, pelo qual o direito reconhece que certas pessoas não podem agir em sociedade de forma totalmente livre. De sorte que, para além do raciocínio relativo à própria capacidade de agir e seus pressupostos, vêm as incapacidades como verdadeira medida protetiva daqueles que são abraçados pela norma.

Toda a teoria das incapacidades, então, existe para a proteção do incapaz. Este é o seu fundamento. Protege-se o indivíduo que não tem idade suficiente ou que padece de algum mal que lhe impede de discernir bem sua conduta. Essa proteção não se dá apenas em relação aos outros indivíduos e contra as situações da vida, mas, e talvez sobretudo, em relação ao próprio ser incapaz6. Ele pode ser um risco a si mesmo7.

A construção deu-se, assim, "sobre uma razão moralmente elevada, que é a proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente apreciável"8, ensina Caio Mário da Silva Pereira, acrescentando que "a lei não institui o regime das incapacidades com o propósito de prejudicar aquelas pessoas que delas padecem, mas, ao contrário, com o intuito de lhes oferecer proteção, atendendo a que uma falta de discernimento, de que sejam portadores, aconselha tratamento especial, por cujo intermédio o ordenamento jurídico procura restabelecer um equilíbrio, rompido em consequência das condições peculiares dos mentalmente deficitários"9.

A menção às deficiências delimita o tema. Quanto aos menores de 16 anos a indicação legal de sua incapacidade absoluta não cria grandes problemas. Mas em relação aos enfermos mentais (idiotia e imbecilidade, v.g.) a situação é mais complexa, se bem que uma ideia deve estar sempre presente: afetada a autodeterminação, não pode ser plenamente capaz o indivíduo10, que de fato não se presenta para atos da vida civil.

A doutrina sempre considerou assim. Pontes de Miranda11 explicava que as enfermidades psíquicas e debilidades mentais, atingindo as funções cognoscitivas e volitivas, levam o direito a atender a que o indivíduo nem sempre pode manifestar conhecimento, sentimento e vontade, “donde ter-se de pré-excluir a imputabilidade e a validade dos atos jurídicos”, sendo grave a deficiência psíquica.

3. As incapacidades no Direito brasileiro

No Esboço de Teixeira de Freitas já constava a força dessa proteção, com um rigor sistemático enorme, fruto deste portento jurídico que o Brasil, à época, rejeitou12. O art. 41 tinha a seguinte redação: "art. 41. A incapacidade é absoluta, ou relativa. São absolutamente incapazes: 1º - as pessoas por nascer; 2º - os menores impúberes; 3º os alienados declarados por taes em juízo; 4º - os surdos-mudos que não sabem dar-se a entender por escripto; 5 – os ausentes declarados por taes em juízo". O art. 42 trazia as hipóteses de incapacidade relativa13. A proteção aos incapazes era revelada explicitamente no art. 43 do Esboço.

No Código de 1916, elaborado por Clóvis Bevilaqua, a matéria vinha nos arts. 5º e 6º. O art. 5º determinava que eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os loucos de todo gênero14; III – os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade15; IV – os ausentes declarados tais por ato do juiz. O art. 6º, a seu turno, elencava como relativamente incapazes: I – os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos; II – as mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal; III – os pródigos; IV – os silvícolas.

O Código Civil de 2002 apresentou inovações. Pelo art. 3º são absolutamente incapazes para os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. O art. 4º determina que são relativamente incapazes: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV – os pródigos. A incapacidade dos índios, pelo parágrafo único desse último art., rege-se por lei especial16.

As hipóteses evoluíram, em geral, com base nos apontamentos da doutrina e jurisprudência construídas ao longo do século XX, ajustando o passo com o conhecimento científico.

A lei 13.146/2015, no entanto, rompe com tudo isso de forma violenta, sem qualquer critério justificável.

4. As incapacidades na legislação comparada.

Os ordenamentos da família romano-germânica, à qual nosso direito se filia, seguem a mesma fundamentação na construção de seus sistemas de incapacidade civil.

No Código Civil português, o art. 138º, n.117 cuida da interdição, aplicável aos afetados psíquicos, aos surdos-mudos e aos cegos, que se mostrem por isso incapazes. A enumeração deve ser vista como exemplificativa18. Em relação aos surdos-mudos e cegos, não é preciso haver nenhuma anomalia psíquica para a interdição, bastando a fática impossibilidade de governarem a si mesmos e a seus bens19. A chamada inabilitação é tratada a partir do art. 152º20, e traz hipóteses semelhantes às de interdição, se bem que menos graves, o que demonstra que a "pedra de toque está, pois, na gravidade da deficiência e nas suas consequências"21.

O Código Civil italiano (arts. 414 e 415) determina que cabe a sentença de interdição para os casos de habitual enfermidade mental, que torna o indivíduo incapaz de defender seus próprios interesses; mas, caso a enfermidade mental não seja grave o suficiente para justificar uma privação total da capacidade, pode-se pronunciar sentença de inabilitação, que apenas limita a capacidade de agir, sem excluí-la.

Na Espanha, o art. 200 do código civil determina que são causas de incapacidade 'as enfermidades ou deficiências persistentes de caráter físico ou psíquico, que impeçam a pessoa de governar-se por si mesma'. A reforma legislativa de 1983 abandonou a tipificação das causas, como constava da redação originária. Hoje, a doutrina destaca a exigência dos dois referidos fatores: persistência e impossibilidade de governar a si próprio22.

Na Argentina, os arts. 54 e seguintes do código civil de 186923 tratavam do tema, enquanto o novo código civil e comercial, aprovado em 2014, regra o assunto na Seção 3ª, parágrafo 1º, artigos 31 e 3224.

As novidades introduzidas no sistema argentino serão mais bem explicadas numa próxima coluna, juntamente com os casos da França e Alemanha (cujos aspectos primordiais enunciaremos mais adiante neste artigo e que, por razões metodológicas, merecem um estudo à parte).

5. Quem são, afinal, os deficientes?

O mais curioso a respeito da lei 13.146/2015 é que seu art. 2º, só por si, já desautoriza todo o resto. Segundo tal dispositivo, "considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas".

As limitações mentais estão no rol das deficiências que impedem, ao menos em alguns aspectos, a participação social do sujeito deficiente em igualdade de condições.

Disso, a constatação: se não está em igualdade de condições, precisa ser levado a esse "pareamento". E o direito é a forma por excelência de proteger tais pessoas. O que exatamente garante essa proteção? Resposta: o sistema de incapacidades!

É claro que a incapacidade advinda de deficiência mental não é de simples fixação. Já que, para o direito, a causa orgânica não se sobrepõe aos seus efeitos – pois estes é que são relevantes – é necessário sempre apreciar a cognoscibilidade e a autodeterminação do indivíduo. Estes são os parâmetros, como já dissemos na coluna anterior.

Caio Mário da Silva Pereira25 alertava que tanto a ciência jurídica quanto a medicina encontram dificuldades no estabelecimento do alcance da alienação mental do paciente, "em razão da imensa diversidade que podem assumir os estados patológicos e a gradação variadíssima de sua extensão nas qualidades psíquicas do enfermo (...)".

Perícia feita, de toda forma, não importa por si só na incapacidade relativa ou absoluta. A gradação é aferida pelo juiz, no processo de interdição, que conclui por uma ou por outra, seguindo desde 2003 a ótima segmentação do código civil (deficiência mental que retira o discernimento; deficiência mental que reduz o discernimento; desenvolvimento mental incompleto).

Aliás, concluía. Com a nova lei, isso "vai pelo ralo", ao que tudo indica.

6. A lei 13.146/2015 fere a proteção dos deficientes e os direitos humanos.

O paradigma da inclusão dos deficientes, que tem seu marco inicial na década de 1980, substituiu, em relação a essas pessoas, "uma perspectiva exclusivamente médica ou biológica por uma perspectiva que é também social"26. As legislações atuais tendem a esse processo inclusivo, sempre realizado a partir do pareamento de condições em vida social através do rompimento de barreiras e de obstáculos que possam marginalizar os indivíduos portadores de deficiências. Assim, em poucas linhas, é que se encaminha o direito do século XXI. E isso está bem.

Mas o afã de promover essa etapa (inclusão) pode resultar em grandes fracassos, se não houver critérios equilibrados e racionalidade no processo legislativo acerca da matéria. Eis o erro trazido pela lei 13.146/2015. Ela não consagra os direitos humanos. Ela os contradiz, e uma simples colocação dos termos das convenções internacionais já o demonstra.

Vejamos a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência27. Ao determinar que a igualdade seja promovida, a Convenção reconhece, é claro, a diferença que existe e que precisa ser dirimida o quanto possível em seus efeitos.

A definição feita para efeitos da Convenção a respeito de pessoas com deficiência é de que essas "têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas".

Difícil deixar de apontar que só esses termos já tiram muito do pretenso fundamento da lei 13.146/2015. Reconhecer que as pessoas com deficiência encontram barreiras implica em criação de mecanismos para derrubá-las. Retirar a proteção do deficiente não parece um bom mecanismo....

Já a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência28, cujo objetivo é prevenir e eliminar todas as formas de preconceito contra as pessoas portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração à sociedade (art. 2º), apresenta definições sutilmente mais qualificadas e recomendações bem mais concretas.

Afirma-se, em seu art. 1º, que, para os efeitos da Convenção, entende-se por deficiência "uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social".

A própria Convenção Interamericana, portanto, afirma que a deficiência importa numa limitação à capacidade de exercer atividades essenciais da vida diária. Nisso o conteúdo se aproxima da lei 13.146.

Mas a Convenção não dá azo à "sequência" funesta da referida lei brasileira. Veja-se, a título de exemplo, o art. 3º, n. 1, a:

"Art. 3º. Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados-partes comprometem-se a:

1. Tomar as medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natureza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, entre as quais as medidas abaixo enumeradas, que não devem ser consideradas exclusivas:

a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração;”

(...)

Será que a legislação protetiva dos deficientes mentais, especialmente o regime das incapacidades, contraria essas recomendações da Convenção?

De modo algum. A própria Convenção – e este é aqui o ponto mais relevante – determina em seu art. 1º, n. 2, b, que, "Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado-parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não constituirá discriminação."

Está claro que não há aí um repúdio às legislações internas dos Estados que, objetivando promover o bem-estar (proteção) dos deficientes, aplicam-lhes tratamento diverso, como é o caso da incapacidade – que constitui exceção – e, disso, o procedimento de interdição.

Ora, retirar a proteção de alguém que comprovadamente não pode governar sua própria conduta é aplicar a lógica dos direitos humanos? Nada mais inaceitável e cruel. O pior de tudo é que, na tentativa frenética de ganhar terreno entre os operadores do direito, a nova lei usa como justificativa.....os próprios direitos humanos!

É um disparate.

O problema que nos traz a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2007), especialmente com relação ao instituto da "decisão apoiada", será analisado em uma próxima coluna. Mas, ainda assim, se o objetivo dessa Convenção é ‘promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais’ pelos deficientes (art. 1), a retirada de proteção trazida pela lei 13.146/2015, no Brasil, está em desacordo com esses termos.

Além disso, permitir "o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais" (art. 2) por parte dos deficientes pressupõe a existência de um aparato que impulsione essa verdadeira quebra de barreiras.

7. As modificações do sistema de incapacidade/interdição em alguns ordenamentos.

É preciso considerar que, contemporaneamente sugiram alterações ao quadro tradicional das interdições em diversos países, como é o caso do maior protegido, na França, e do instituto do acompanhamento, na Alemanha29. Menezes Cordeiro explica a situação afirmando que o radicalismo de muitas interdições não mais encontra espaço frente aos avanços da psiquiatria, por exemplo, e já não se encaixa perfeitamente naquele "objetivo romântico, que era a tutela do pupilo"30.

Isso está bem, e não cabe discordar. A flexibilidade dos institutos, em matéria tão delicada – e de resto informada pelos avanços científicos – de fato cabe melhor que a rigidez da interdição e da incapacidade absoluta, por exemplo.

Mas será essa ideia forte e consolidada a ponto de colocar os que até agora são absolutamente incapazes no rol dos plenamente capazes?

É certo que não. A França modificou seu ordenamento, abolindo a interdição, em 1968. Antes mesmo, portanto, de nosso atual Código Civil brasileiro se transformar em projeto de lei. Mas naquele país o instituto do maior protegido – cujos atos não gozam de pronta validade, como tudo leva a crer que ocorrerá com os atos dos deficientes mentais brasileiros - não se aproxima do novidadismo trazido, entre nós, pela lei 13.146/2015.

De igual modo na Alemanha, por reforma de 1990, suprimiu-se a tutela aos maiores, abolindo-se a interdição e introduzindo-se o acompanhamento, instituto visto como mais flexível31.

Os desacertos da lei 13.146/2015, sua má técnica principalmente, expõem a diferença em relação a essas alterações nos ordenamentos estrangeiros. Lá fora, a mudança opera com cautela, avaliando antes as deficiências do sistema vigente e, daí, propondo-se novos meios de tratamento da matéria. O olhar sobre a situação dos indivíduos então "excluídos" da plena capacidade orienta de fato a lei, que busca melhorar seu processo de inclusão. Já a lei que aqui discutimos (13.146) passa muito longe disso. Numa sofreguidão delirante, tenta criar uma inflexão revolucionária em um tema que merece sempre um tratamento delicado.

Esse tema, no entanto, será objeto de uma próxima coluna, quando abordaremos a "decisão apoiada" instituto novo introduzido pela lei 13.146. Nessa oportunidade retomaremos mais detalhadamente os aspectos da legislação comparada e demonstraremos, como temos feito, o desacerto de nosso legislador.

Conclusão

O Código Civil de 2002 aponta (nos ainda vigentes arts. 3º e 4º) diferentes hipóteses de incapacidade. Em relação aos deficientes mentais, temos como absolutamente incapazes aqueles a quem a anomalia retira o discernimento. Entre os relativamente incapazes, há uma bipartição entre os deficientes que tem o discernimento apenas reduzido e aqueles chamamos de excepcionais, onde falta desenvolvimento mental completo, de sorte a diminuir a cognoscibilidade.

É um bom sistema protetivo, que tem funcionado muito bem. O direito não pode fechar os olhos à falta de autodeterminação de alguns indivíduos, e tratá-los como se tivessem plena capacidade de interagir em sociedade, em condições de igualdade.

Daí concluir-se que, se um ordenamento passa a considerar tais pessoas plenamente capazes, conferindo-lhes apenas algumas medidas de apoio (bastante desprovidas de sentido, como ainda veremos nesta série de colunas) está simplesmente a forçar um pareamento formal. Na vida prática o sujeito continua necessitando de uma lei que o ampare e o iguale aos demais. E, para isso, é preciso reconhecer a desigualdade inicial de condições. Sem isso a lei não incide, a proteção não chega e o indivíduo fica desguarnecido.

Pois a lei 13.146/3015 justamente aniquila a proteção aos incapazes e, utilizando-se de um discurso humanitário, rompe com a própria lógica dos direitos humanos.

A situação é grave e exige manifestação de todos os juristas preocupados com a realidade da justiça. Não se pode baixar uma lei que de uma tacada destrói institutos relevantíssimos para a tutela dos mais frágeis. Tanto menos se deve fazer isso através de uma apropriação patética do discurso protetivo. Isso é falso e cruel.

A lei 13.146/2015, enfim, é um excelente exemplo do pensamento de uma geração caótica e recheada de artificialismos, onde duas palavras de afeto tardio valem mais que duzentos anos de proteção verdadeira.

Bibliografia

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TRIMARCHI, Pietro, Instituzioni di Diritto Privato, Milano, Giuffrè, 1996.

__________

1M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, p. 31.

2"Ela [a capacidade de exercício] pressupõe com efeito na pessoa uma vontade consciente e a aptidão para a determinar de modo legalmente reputado normal, e portanto para gestionar com mediano conhecimento de causa, sagacidade e prudência os seus próprios interesses. Ora isto nem sempre se verifica. Por isso a lei, admitindo embora a capacidade como regra geral, claramente reconhece como possível a incapacidade" (M. A. Domingues de Andrade, Teoria Geral cit., p. 32.)

3C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1990, p. 194.

4E. Eiranova Encinas, Código Civil Alemán Comentado (BGB), Madrid, Marcial Pons, 1998, p. 70.

5"Enquanto a capacidade de direito representa um corolário lógico da personalidade, apresentando-se, por isso, em todos os entes a que a lei reconheça ou atribua personificação, a capacidade de fato, por sua vez, justamente por ser noção afeta ao plano da efetivação dos direitos, pode ser negada àquelas pessoas em quem o legislador não vislumbre a maturidade ou o discernimento necessários à realização de escolhas autônomas" (S. Eberle, A Capacidade entre o Fato e o Direito, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 2006, p. 138).

6J. O. Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral. Introdução. As Pessoas. Os Bens, 3.ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 140.

7Nesse sentido P. Trimarchi, Instituzioni di Diritto Privato, Milano, Giuffrè, 1996, p. 71.

8C. M. Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, 20.ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 272.

9Instituições cit., p. 272.

10Foi esse o absurdo máximo trazido pela lei 13.146/2015, i.e., a plena capacidade dos deficientes mentais.

11Tratado de Direito Privado, atualizado por J. Martins-Costa, G. Haical e J. C. Ferreira da Silva, São Paulo Saraiva, 2012, p. 314, t. I.

12Peculiaridade do Esboço – sistematização fantástica que nos teria dado o melhor código do século XIX, segundo Pontes de Miranda (Tratado cit., prefácio) – eram as consequências do ato praticado pelo incapaz. Tanto no caso de incapacidade absoluta quanto relativa o ato era fulminado de nulidade, atendendo-se a que, no caso dos relativamente incapazes, o ato inválido estava – como hoje está – na categoria dos que não poderiam ser praticados livremente.

13"Art. 42. São também incapazes, mas só em relação aos actos que forem declarados, ou ao modo de os exercer: 1º- os menores adultos; 2º - as mulheres casadas; 3º - os comerciantes falidos declarados por taes em juízo; 4º - os religiosos professos".

14A expressão “loucos de todo gênero” já sofria duras críticas, e mesmo Clovis Bevilaqua admitia não ser a melhor expressão (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, 5.ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1936, p. 178, v. I); foi, por isso, abolida pelo atual código civil.

15A referência à surdo-mudez foi também extinta pelo código vigente. De todo modo, destaque-se que essa deficiência somente era motivo de incapacidade, sob o código de 1916, se importasse em impedimento à manifestação de vontade. Sobre isso, Clovis Bevilaqua explicava que "o Direito Civil coloca-se no ponto de vista da manifestação de vontade. Se o surdo-mudo pode exprimir a sua vontade, de modo satisfatório, é porque possui uma inteligência normal, capaz de discernimento e de adaptação ao meio social (...)" (Código Civil cit., p. 180).

16v. Lei 6.001/1973.

17"art. 138º. n. 1. podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens”. O art. 139º explica que “o interdito é equiparado ao menor, sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regulam a incapacidade por menoridade e fixam os meios de suprir o poder paternal".

18A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil português, Coimbra, Almedina, 2007, p. 467, t. I.

19Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 147, v. I.

20"art. 152º. podem ser inabilitados os indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, embora de carácter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a sua interdição, assim como aqueles que, pela sua habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu patrimônio".

21A. Menezes Cordeiro, Tratado cit., p. 467.

22L. Diéz-Picazo e A. Gullón, Institucions de Derecho Civil. Introducción. Parte General. Derecho de la persona, Madrid, EDITORIAL TECNOS, 2000, p. 148. Os autores aplaudem a alteração, já que, sob o sistema anterior, muitas enfermidades mentais não se encaixavam nas hipóteses estritas de “loucura ou demência”.

23"Art.54.- Tienen incapacidad absoluta:

1ro. Las personas por nacer;

2do. Los menores impúberes;

3ro. Los dementes;

4to. Los sordomudos que no saben darse a entender por escrito;

5to. Derogado por la ley 17.711.

Art.55.- Los menores adultos sólo tienen capacidad para los actos que las leyes les autorizan otorgar.

Art.56.- Los incapaces pueden, sin embargo, adquirir derechos o contraer obligaciones por medio de los representantes necesarios que les da la ley."

24"ARTÍCULO 31.- Reglas generales. La restricción al ejercicio de la capacidad jurídica se rige por las siguientes reglas generales:

a) la capacidad general de ejercicio de la persona humana se presume, aun cuando se encuentre internada en un establecimiento asistencial; b). las limitaciones a la capacidad son de carácter excepcional y se imponen siempre en beneficio de la persona; c). la intervención estatal tiene siempre carácter interdisciplinario, tanto en el tratamento como en el proceso judicial; d). la persona tiene derecho a recibir información a través de medios y tecnologias adecuadas para su comprensión;

e) la persona tiene derecho a participar en el proceso judicial con asistencia letrada, que debe ser proporcionada por el Estado si carece de medios; f). deben priorizarse las alternativas terapéuticas menos restrictivas de los derechos y libertades.

ARTÍCULO 32.- El juez puede restringir la capacidad para determinados actos de una persona mayor de trece años que padece una adicción o una alteración mental permanente o prolongada, de suficiente gravedad, siempre que estime que del ejercicio de su plena capacidade puede resultar un daño a su persona o a sus bienes. En relación con dichos actos, el juez debe designar el o los apoyos necesarios que prevé el artículo 43, especificando las funciones con los ajustes razonables en función de las necesidades y circunstancias de la persona. El o los apoyos designados deben promover la autonomía y favorecer las decisiones que respondan a las preferencias de la persona protegida. Por excepción, cuando la persona se encuentre absolutamente imposibilitada de interaccionar con su entorno y expresar su voluntad por cualquier modo, medio o formato adecuado y el sistema de apoyos resulte ineficaz, el juez puede declarar la incapacidad y designar un curador"

25Instituições cit., p. 276.

26D. R. Ikawa, Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, in Código de Direito Internacional dos Direitos Humanos Anotado, São Paulo, dpj, 2008, p. 1364.

27A Convenção foi assinada em Nova York em 30 de março de 2007 e aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008.

28Assinada em 1999 e ratificada pelo Brasil em 15 de agosto de 2001.

29A. Menezes Cordeiro, Tratado cit., p. 461.

30Tratado cit., p. 461.

31A. Menezes Cordeiro, Tratado cit., p. 462.

__________

*Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

*Bruno de Ávila Borgarelli é estudante de Direito da USP e pesquisador jurídico.

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