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A (in) aplicabilidade do direito de arrependimento ao setor da aviação civil

O Código de Defesa do Consumidor merece reforma, especialmente diante das mudanças estruturais pelas quais passou o comércio brasileiro.

8/9/2014

O campo de aplicação do CDC é a relação de consumo na tentativa de equilibrar a relação entre fornecedor e consumidor municiando a parte mais fraca e vulnerável.

Essa relação vem sofrendo alterações com o decorrer do tempo na medida em que a ciência avança e as tecnologias se modificam, por exemplo, com a chegada do comércio eletrônico e o surgimento do superendividamento, o que repercutiu em certos aspectos do consumo brasileiro.

Em consideração a tais modificações e a intenção de se manter o CDC atualizado com as demandas sociais, em 2010, o então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), convocou uma comissão de juristas para modernizar o Código de Defesa do Consumidor.

Em 2012, os trabalhos da Comissão viraram três projetos de lei: o PLS 281/12, que dispunha sobre o comércio eletrônico; PLS 282/12 que tratava das ações coletivas (tirado de pauta) e o PLS 283/13 que normatizava o superendividamento.

O PLS 281/12 tem como foco aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico. Assim, teve como um dos temas cruciais o direito de arrependimento, também conhecido como prazo de reflexão, tratado no artigo 49 do atual CDC.

Segundo Cláudia Lima Marques, o direito de arrependimento foi instituído para proteger a declaração de vontade do consumidor, para que essa possa ser decidida e refletida com calma, de forma a resguardá-la das técnicas agressivas de vendas a domicílio.

Ou seja, o direito de arrependimento ou prazo de reflexão justifica-se pela aparência de necessidade imediata que a prática do marketing agressivo causa no consumidor, além da inexistência de prévio contato do consumidor com o produto ou serviço adquirido.

Nesse contexto, a Comissão Temporária de Modernização do Código de Defesa do Consumidor, acolheu, num primeiro momento, a emenda n° 20 do senador Rodrigo Rollemberg, que propunha o alargamento do prazo de reflexão e arrependimento do consumidor pela experiência de outros ordenamentos jurídicos, a exemplo do que ocorreu na Argentina e na Europa, de forma a permitir que o consumidor, como na tradição dos direitos norte-americanos, tenha dois finais de semana para refletir (cooling off period), pois o prazo de sete dias se demonstrou curto em demasia.

Porém, conforme relatório do Senado, “o prazo atual previsto no CDC, de 7 dias tem se mostrado plenamente suficiente e adequado para o consumidor brasileiro averiguar se o produto ou serviço contratado corresponde com a oferta. Diante disso, foi suprimida a alteração e mantida a redação original sugerida pela Comissão de Juristas”.1

Hoje, um dos principais objetos do comércio eletrônico é a comercialização de passagens aéreas, fato que felizmente não passou despercebido à Comissão Provisória ao acolher, ainda que em parte, a emenda n° 25 do Senador Antonio Carlos Rodrigues.

Referida proposta de emenda n.º25 propõe um dispositivo adicional enumerado por 49-A, e que estabelece que “Sem prejuízo do direito de rescisão do contrato de transporte aéreo antes de iniciada a viagem (art. 740, § 3º do Código Civil), o exercício do direito de arrependimento do consumidor de passagens aéreas poderá ter seu prazo diferenciado, em virtude das peculiaridades do contrato, por norma fundamentada das agências reguladoras”.

Assim é que o PLS 281/12 admite a possibilidade da agência reguladora, no caso, a ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil, diferenciar o tratamento do direito de arrependimento das passagens aéreas e terrestres, levando em consideração suas peculiaridades.

Atualmente, a aplicação do direito de arrependimento no âmbito do comércio eletrônico de bilhetes aéreos varia conforme a política de cada companhia aérea, reféns das dúvidas sobre a aplicabilidade do atual artigo 49 do CDC ao setor da aviação civil, bem como da forma de sua aplicação.

Extrai-se essa conclusão de uma pesquisa sobre a aplicação do direito de arrependimento junto às quatro principais empresas áreas atualmente em atividade no Brasil realizadas pelos próprios autores, na pele de consumidores.

Conforme informações obtidas por telefone junto ao call center de cada empresa aérea (e desde já alertamos sobre a inexistência de documento oficial fornecido no decorrer desta pesquisa), apenas uma das 4 (quatro) empresas aéreas pesquisadas de fato observam o direito de arrependimento de 7 (sete) dias previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, apesar do efetivo reembolso ocorrer em um prazo não especificado e que varia conforme a política da administradora de cartão de crédito.

As outras três empresas trabalham com a opção de cancelamento da compra da passagem por meio do estorno da transação quando comprado via cartão de crédito e exercido o direito de arrependimento até 23h59m do dia da realização da compra. Não sendo no mesmo dia, há o reembolso em 30 dias com desconto de taxas e multas aplicáveis a depender da tarifa da passagem aérea e da política de compra da passagem aérea.

Notou-se também que, além da aplicação divergente, há uma carência de informação sobre o exercício do direito de arrependimento junto aos call centers das empresas aéreas, por eles chamados de “lei do arrependimento” unanimemente.

Esse discurso desalinhado das empresas de um mesmo setor demonstra a operante incerteza quanto à regulamentação do exercício de tal direito dentro de seu mercado específico.

A título elucidativo, a ANAC publicou seu posicionamento em 2013 no sentido de entender inaplicável o direito de arrependimento à aviação civil2.

Neste ano, o jornal Folha de São Paulo publicou matéria noticiando que a ANAC quer adotar o direito de arrependimento para quem desistir da compra até 24h depois de fechado o negócio, beneficiando quem comprou por impulso ou engano, à semelhança do que já vem ocorrendo na prática comercial. Ainda, conforme a notícia, as empresas não poderiam cobrar nada pela desistência, desde que a viagem esteja marcada para uma data distante mais de sete dias do momento da compra.

Contudo, deixemos claro que legitimamente não há regulamentação que permita às empresas aéreas assim prosseguirem.

A matéria também veiculou a informação de que as empresas aéreas discordaram do prazo de 7 (sete) dias, informando que o prazo para a viagem deveria ser de pelo menos 14 (quatorze) dias, para terem tempo de “revender” o bilhete, ao que a ANAC não pareceu reconhecer.

Diante dos fatos apresentados, devemos nos ater que, de fato, o Código de Defesa do Consumidor merece reforma, especialmente diante das mudanças estruturais pelas quais passou o comércio brasileiro.

E, no que atine especificamente o direito de arrependimento ao setor do comércio eletrônico da aviação civil, há certas peculiaridades que não podem ser olvidadas.

Primeiramente, a vulnerabilidade do consumidor que adquire passagens aéreas pelo meio eletrônico possui, indubitavelmente, contornos diferenciados da vulnerabilidade de consumidores de outros setores e serviços, além das próprias características do serviço que se oferece, com certa imutabilidade da forma de sua prestação.

Então, questiona-se, não deveria a legislação regular a vulnerabilidade que permeia o direito de arrependimento com peculiaridades próprias e condizentes com aspectos específicos do setor da aviação civil, como por exemplo, uma diminuição do prazo de reflexão?

Ademais, sob outra perspectiva, o direito de arrependimento constitui um risco às empresas aéreas por permitir a desistência de seu serviço já comercializado e contabilizado simplesmente por não haver previsão de limite temporal ao exercício de tal direito com relação à proximidade da efetiva prestação do serviço, ou seja, do vôo.

O que se quer dizer é que, em tese, da forma como hoje se põe o ordenamento, os sete dias para o exercício do direito de arrependimento se dá mesmo quando o vôo comprado ocorrer já no próximo dia. No mínimo ilógico?

Dando continuidade, a título exemplificativo, suponhamos que o exercício do arrependimento ocorra na véspera do vôo e que o assento tenha sido retirado de comercialização por seis dias, ou seja, na fase final de comercialização do vôo.

O que se percebe é que a empresa aérea suportará todo o prejuízo por uma compra “desnecessária” do consumidor, correndo o risco de não ter tempo hábil para colocar o produto de volta no mercado, e inclusive com reembolso integral.

Note-se que o mesmo já não ocorre na hipótese de se compra uma televisão, pois esta voltará à loja e continuará a ser vendida sem prazo fatal. Além disso, enquanto o consumidor conhece o serviço que está adquirindo de uma companhia aérea, o mesmo já não ocorre nas transações comuns em que se aplica o direito de arrependimento da forma hoje prevista.

E mais, há que ser levada em consideração a repercussão econômica ao permitir o reembolso integral ao consumidor desistente do contrato, tendo em vista que as companhias aéreas suportariam todos os prejuízos da contratação provocada pela desistência unilateral e voluntária do consumidor, inviabilizando a reocupação dos assentos ociosos por outros passageiros.

Assim, não deixemos de observar que o risco e prejuízo desse arrependimento arcado pela companhia deve fazer parte do preço da tarifa, de modo que aumentará o preço do serviço e prejudicará o próprio consumidor. E lembremos, é aviação civil um dos setores mais castigados por impostos, já prejudicando, portanto, o consumidor.

Ademais, é importante ressaltar que a comercialização de forma indireta, ou seja, transação efetuada entre consumidor e fornecedor por meio de uma intermediária (uma agência de viagem), alcança, em média, 60% do faturamento de uma empresa aérea. Desta fatia, aproximadamente 13% de tais transações constituem vendas on-line por intermédio das “Online Travel Agencies” (OTAs). Nesse contexto, 7,5% do total das vendas de passagens aéreas de uma companhia se dão, atualmente, por meio online, e consequentemente, estarão sujeitos ao direito de arrependimento previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.

Outra peculiaridade concernente à comercialização eletrônica da aviação civil é o fato de que uma agência de viagem é remunerada por uma taxa denominada DU referente ao serviço de assessoria e atendimento por ela prestados cujos valores são definidos pela Companhia Aérea. Nas companhias aéreas nacionais, a taxa é de R$30,00 a R$40,00 ou 10% do valor da passagem (o que for maior) e é paga pelo passageiro no ato da compra, podendo ser diluída no parcelamento caso o passageiro opte por esta forma.

Ora, efetuada a compra por intermédio de uma agência de viagem e realizado o pagamento da taxa DU em contraprestação por seus serviços de assessoria e atendimento, não pode o direito de arrependimento implicar na sua restituição, vez que tal serviço fora efetivamente prestado e não faz parte do serviço de transporte aéreo.

Do contrário, estar-se-ia privilegiando o consumidor e desequilibrando a relação com o fornecedor, objetivo que não faz jus ao comando legislativo das relações de consumo. O que se deve, no caso em questão, é corrigir e moldar a previsão legislativa do direito de arrependimento ao objeto aplicável.

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1 https://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=147360&tp=1

2 https://direitodeconsumir.wordpress.com/2013/12/12/anac-arrependimento-de-compra-previsto-no-cdc-nao-se-aplica-a-compra-de-passagens-aereas/

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*Amanda Lobão Torres (Maluly, Lobão e Campos Machado Advogados Associados) e Marcus Vinicius de Souza Mercante.

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