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O projeto Renan Calheiros – um novo "anteprojeto" de Código Comercial?

O indigesto projeto RENAN CALHEIROS é maior ainda do que o que corre na Câmara: tem 1.103 artigos, que levaremos uns 10 anos, no mínimo, para deglutir.

24/6/2014

Como os leitores devem ter ciência, encontra-se em trâmite no Senado um “novo” projeto de Código Comercial - o projeto RENAN CALHEIROS (PL 487/2013).

A sanha de aprovar um projeto é tanta que não basta um só, tramitando na Câmara dos Deputados. São necessários dois: um na Câmara e outro no Senado1. Houvesse algum outro órgão legislativo e com certeza mais um projeto estaria em andamento (talvez em alguma Câmara de Vereadores haja um tramitando por aí).

O indigesto projeto RENAN CALHEIROS é maior ainda do que o que corre na Câmara: tem 1.103 artigos, que levaremos uns 10 anos, no mínimo, para deglutir2.

A pretensão desse novel documento é assombrosa:

“Art. 1º. Este Código disciplina, no âmbito do direito privado, a organização e exploração da empresa e matérias conexas, incluindo o direito societário, o direito contratual empresarial, o direito cambial, o direito do agronegócio, o direito comercial marítimo e o direito processual empresarial”.

Deus nos acuda. Voltamos a 1850, quando foi editado o Regulamento 737, que disciplinava o processo comercial. Talvez seja o caso até de se pensar em criar novamente Tribunais do Comércio (ou, para soar mais moderno, Tribunais Empresariais).

Mas, vejamos algumas das espantosas inovações do Projeto RENAN CALHEIROS, a primeira delas relacionada ao “processo empresarial”:

“Art. 48. No processo empresarial, o juiz deve sempre levar em consideração as externalidades econômicas de suas decisões, em especial as referentes ao impacto que o entendimento nelas adotado pode ocasionar, se for generalizado, nos preços dos produtos e serviços praticados no mercado brasileiro, atacadista e varejista, na viabilidade das empresas e solvência dos empresários”.

Lembro-me de um grande professor que tive na Parker School of Foreign and Comparative Law, anexa à Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde fiz um rápido curso de verão no ano de 1984. Trata-se do Prof. Henry P. de Vries que, fluente em espanhol e português (era filho de uma colombiana e foi casado com uma escultora brasileira), contou-nos, verdadeiramente horrorizado, sobre um decreto do governo espanhol, promulgado na época das colônias, que autorizava os governantes locais a, conforme o caso, deixar de aplicar a lei…

Pergunta-se (nem vou indagar, por óbvio – porque com certeza os leitores já o fizeram –, se o juiz tem suficiente formação econômica para tanto): se a decisão causar impacto nos “preços dos produtos e serviços praticados no mercado brasileiro, atacadista e varejista”, etc., etc., o juiz deixa de aplicar a lei? É isso? Qualquer juiz do País terá, por assim dizer, um poder de “modulação”, como os Ministros do Supremo Tribunal Federal?

Deixo aos leitores a apreciação desse estrafalário dispositivo, que soa para mim como uma espécie de gracejo3.

Passemos adiante, com o exame de outras fantásticas inovações, inseridas na disciplina das invalidades dos negócios jurídicos empresariais:

“Art. 159. A declaração da nulidade ou a decretação da anulação do negócio jurídico empresarial não gera efeitos retroativos.

(...)

§ 2º. O juiz pode atribuir efeitos retroativos à declaração de nulidade do negócio jurídico empresarial”4.

Como se vê, pretende-se uma vez mais reinventar a roda.

Se a decretação da invalidade do negócio jurídico empresarial não gera efeitos retroativos, para que fim ela serve, então?

Exemplifico: o empresário assina um contrato de compra e venda mercantil sob coação ou induzido por dolo.

Qual é a regra que nos vem imediatamente à cabeça?

Art. 182 do CCiv: "Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”.

Anulada uma compra e venda, portanto, o comprador deve devolver a coisa comprada e o vendedor devolver o preço. É a mesma regra do art. 158 do Código Civil de 1916, assim comentada pelo meu querido e saudoso mestre WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (cuja imensa sabedoria era confirmada pela sua extrema humildade e bonomia):

“A nulidade, absoluta ou relativa, uma vez proclamada, aniquila o ato jurídico. A relativa, embora de menor gravidade que a absoluta, depois de reconhecida por decisão judicial, tem a mesma força exterminadora; num e noutro caso, o ato fica inteiramente invalidado. Seu principal efeito é a recondução das partes ao estado anterior; o reconhecimento da nulidade opera retroativamente, volvendo os interessados ao statu quo ante, como se o ato nunca tivesse existido. Assim, nulo o testamento, por exemplo, deve o herdeiro, ou legatário, restituir ao acervo a coisa herdada ou legada; anulada a compra e venda, o vendedor restitui o preço e o comprador a coisa adquirida, restabelecendo-se o estado, em que antes dele se achavam as partes”5.

Mas o projeto RENAN CALHEIROS, como se viu, atrevidamente intenta alterar essa regra multissecular6.

Se a decretação da invalidade não tem efeito retroativo, a anulação do negócio jurídico gera apenas responsabilidade por perdas e danos. Ou seja, à vítima da coação ou do dolo não é dado, no exemplo apontado, reaver a coisa vendida ou o seu preço!

Coatores ou estelionatários, tendes, portanto, o caminho livre! A coisa comprada sob vis impulsiva ou dolus malus ficará sempre com vocês! Podem meter a mão nela: ao coagido ou errante restará o difícil (e muitas vezes impossível) ônus de provar as perdas e danos! E só.

Como se vê, a novidade do projeto RENAN CALHEIROS não tem paralelo no direito: cuida-se de um autêntico incentivo à violência ou até ao delito!

Transplante-se isso agora para os casos de invalidade das deliberações de assembleia.

O acionista controlador está igualmente com o passe livre para votar em conflito com o interesse da companhia!

É a alforria do abuso de poder de controle! O voto conflitante do controlador só dará aos minoritários o direito de pleitear perdas e danos, algo mais complicado ainda de provar do que no direito comum.

Mas o projeto não traz apenas essas extravagantes inovações.

Ele também retroage! Ora, pois. Se é para "impactar", vamos pra frente e vamos pra trás. Um passinho pra lá e outro passinho pra cá.

Como se sabe, os prazos de anulação do negócio jurídico são prazos de decadência – e não de prescrição. Vale dizer, são prazos que não se suspendem e não se interrompem7.

Nesse sentido, o Código Civil de 2002, tachado de ultrapassado, eliminou qualquer controvérsia:

Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado: ...8

Mas o projeto RENAN CALHEIROS resolveu, nesse ponto, retrotrair. E o que é pior, também no terreno das invalidades em direito societário!

"Art. 172. Prescreve em seis meses:

I – a pretensão:

(...)

e) de anular ou declarar a nulidade de deliberação de Assembleia geral, contados da publicação da ata”.

Se o prazo é de prescrição, ele pode ser interrompido (é o próprio projeto que assim o diz, no art. 1739).

Dessa forma, o prazo para anulação de deliberação assemblear pode passar de 6 meses para 1 ano, se isso ocorrer10.

Ora, na imensa maioria das legislações, os prazos de anulação de deliberação assemblear são de decadência e não passam de 3 meses11. Mesmo os casos de nulidade absoluta, em algumas legislações, como a alemã, a italiana e a francesa, são de 3 anos, ressalvados, evidentemente, os casos de objeto ilícito (e aqui o projeto, insciente e inconsequentemente, metendo as coisas de cambulhada, prevê o mesmo prazo de prescrição de 6 meses para a nulidade absoluta das deliberações! É de arrepiar!).

A necessidade de serem reduzidos os prazos de anulação das deliberações diz respeito ao interesse na estabilidade das mesmas, a fim de não ficarem expostas, durante longo tempo, aos acasos decorrentes da eventual propositura de uma ação anulatória. Em prazo mais curto ficam os interessados, ou advertidos da possibilidade de ser invalidada a deliberação – se proposta a demanda no prazo legal –, ou, – na hipótese contrária –, seguros da plena eficácia do ato.

Essa matéria, aliás, é uma das únicas em que há grave falha na nossa esplêndida Lei de S/A, que prevê, no art. 286, um prazo de dois anos para a anulação das deliberações, rotulado ainda como de prescrição12.

Como se viu, porém, o projeto RENAN CALHEIROS conseguiu uma façanha singular.

Ao mesmo tempo em que, contrariando toda a evolução em matéria de anulação (rectius: impugnação13) de deliberações assembleares, estabeleceu um prazo excessivamente longo, em matéria de nulidade absoluta das mesmas estabeleceu um prazo excessivamente curto – exatamente igual ao de anulabilidade – sendo ambos de prescrição!

Com certeza é um caso único no mundo: prazos iguais para os casos de nulidade absoluta e de anulação. É jaboticaba – só dá no Brasil!

Conforme se pode perceber, outrossim, apesar das reiteradas negativas propaladas ao público, o projeto RENAN CALHEIROS vai, sim, interferir na Lei de S/A, não só nos tópicos apontados, como também nas operações societárias de transformação, fusão, incorporação e cisão, por ele reguladas (arts. 336 e segs.).

E com isso vai trazer grave insegurança jurídica no direito societário, sem falar na insegurança jurídica decorrente da retrógrada reintrodução da dicotomia obrigações civis x obrigações comerciais (empresariais!).

A proteção substancial à minoria, de sua parte, que foi verdadeiramente introduzida pela primeira vez em nosso direito das sociedades contratuais pelo Código Civil de 2002 (alterações estruturais na sociedade limitada, por exemplo, demandam 3/4 do capital social, como em algumas legislações europeias: alemã, § 53, 2, da GmbHGesetz - 3/4 dos votantes - portuguesa, art. 265º do Código das Sociedades Comerciais - 3/4 do capital votante14), fica agora afastada pelo estabelecimento de um quórum único, de maioria absoluta, para todas as deliberações.

Pela pequena amostra trazida acima, os leitores podem calcular o que está por aí15:

Um novo "antiprojeto" de Código Comercial!16

___________

1 E o que importa é a aprovação de um projeto, qualquer que seja o seu conteúdo!

2 Com o auxílio, obviamente, de digestivos de última geração.

3 E nem considero necessário ressaltar, evidentemente, a insuportável insegurança jurídica que o mesmo irá causar.

4 "Pode"! E somente à declaração de nulidade, note-se bem. Em casos de anulabilidade, o efeito retroativo está definitivamente afastado!

5 Curso de Direito Civil, Parte Geral, Saraiva, 35ª ed., 1997, p. 278-279, destaques nossos).

6 Que apenas no direito societário não é inteiramente aplicável: anulada a constituição da sociedade, por exemplo, não há, por razões óbvias relativas à proteção de terceiros que com ela contrataram, restauração ao estado anterior: a sociedade se dissolve (arts. 1.034, I, do CCivil e 206, II, “a”, da LSA).

7 CCiv, art. 207: "Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição”.

8 Cf., outrossim, os arts. 119, parágrafo único, e 1.078, § 4º, CCiv.

9 “Art. 173. A interrupção da prescrição, que somente pode ocorrer uma vez, verifica-se: I – nas hipóteses do art. 202 do Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002); ou II – por protesto notarial”.

10 Se a prescrição for interrompida, como se sabe, o prazo recomeça a correr por inteiro (art. 202, parágrafo único, CCiv).

11 Para ficar apenas em alguns exemplos: a AktG alemã de 1965 (tal como o fazia a de 1937), prevê o prazo de um mês (§ 246, 1); o Código das Obrigações Suíço, o prazo de dois meses (art. 706a); o Código Civil Italiano de 1942, o prazo geral de noventa dias (art. 2.377); o Código de Sociedades Comerciais português de 1986, o prazo de trinta dias (art. 59); a Lei de Sociedades Comerciais argentina de 1972, o prazo geral de três meses (art. 251). Mesmo países que não têm o desenvolvimento econômico do Brasil, já encurtaram drasticamente os prazos de anulação: o Código Comercial Boliviano de 1977, o prazo de sessenta dias (art. 302); o Código Comercial Venezuelano de 1955, o prazo de quinze dias (art. 290); a Lei de Sociedades Equatoriana de 1977, o prazo de trinta dias (arts. 229 e 291, 1º).

12 Tal prazo, todavia, é de decadência, como sustentei em exegese do dispositivo em questão (cf. Invalidade das deliberações de assembleia das S/A, Malheiros Editores, 1999, p. 126 e segs.), pouco importando o nomen juris que a lei lhe dê. O Código Civil de 1916 capitulou todos os prazos extintivos, previstos no art. 178, como prazos prescricionais, mas isso não impediu que doutrina e jurisprudência, na interpretação do referido dispositivo, enxergassem casos de decadência, como os relativos à anulação do casamento, à preempção, à contestação da legitimidade do filho, etc. (v. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ob. cit., p. 294-295).

13 Cf. lição de ASCARELLI citada pelo signatário em "Lineamentos da reforma do direito societário italiano em matéria de invalidade das deliberações assembleares", em Temas de direito societário, falimentar e teoria da empresa, Malheiros Editores, 2009, p. 102-103, nota de rodapé n. 6.

14 Pode-se até estabelecer um quórum menor, mas para as alterações estruturais, obviamente, é necessário um quórum qualificado, que outorgue à minoria poder de barganha perante a maioria - e não um quórum único para todas as deliberações, como o faz o projeto (art. 242 e § 1º). A propósito, confiram-se os quóruns dos arts. 129 e 136 da LSA.

15 Há até uma ação, prevista nos arts. 981 a 991, cognominada de "ação de superação de impasse"! Bonito, não?

16 Com algumas poucas exceções de nota, um amontoado de disparates, como os apontados ao longo do texto.

___________

* Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é Professor Associado do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e advogado em SP.

 

 

 

 










 

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