O princípio da insignificância
Wilson Silveira*
À primeira vista, nada. Mas, se examinarmos a questão um pouco mais a fundo, poderemos entender melhor.
A Claus Roxin se deve a reintrodução do princípio da insignificância no direito penal (kriminalpolitik und strafrechtsystem)). Por esse princípio, pequenas ofensas ao bem jurídico (infrações bagatelares) não justificam a aplicação do direito penal, que se mostra desproporcionado quando castiga fatos de mínima importância.
Mas, qual seria a medida precisa para se dizer que um fato é insignificante?
Ainda que esse princípio não conte com reconhecimento normativo explícito no nosso ordenamento jurídico, a jurisprudência, apesar de alguma divergência, o vem admitindo, através de julgamentos que são de conhecimento público.
Exemplo disso é o caso do juiz Wilson Safatle Fayad, da 11º Vara Criminal de Goiânia, que rejeitou denúncia oferecida pelo Ministério Público contra Alex Evangelista Barros, que foi preso em flagrante tentando furtar meio quilo de fios de cobre avaliados em R$ 12,00.
Mais dificuldade teve Moisés Alves de Souza, que havia sido condenado a dois anos de detenção pelo furto de R$ 0,15, solto somente após conseguir Habeas corpus perante a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
Ainda perante instância Superior, a mesma 6ª Turma do STJ, dois homens conseguiram Habeas corpus para ver trancada a ação penal que sofriam em razão do furto de seis frangos congelados de um frigorífico no interior de São Paulo, cujo valor é de R$ 21,00.
Também de Goiânia, da mesma 11ª Vara Criminal, e do mesmo juiz Wilson Safatle Fayard é a decisão que concedeu liberdade a um acusado de furtar algumas barras de chocolate em um supermercado.
Chegou até o Supremo o caso da condenação a dois anos de prisão de Cesar da Silva, 19 anos, que havia furtado um boné, que foi suspensa pelo Ministro Celso de Mello.
Por outro lado, o mesmo STF negou o pedido de Habeas corpus impetrado por Flávio Rodrigues Mendes, condenado em primeira instância a um ano e dois meses de prisão em regime semi-aberto, em razão de furto de uma bicicleta de R$ 60,00.
Já a venda de um cigarro de maconha, algo como 0,102g do entorpecente, foi considerada insignificante pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás, que absolveu um menor, que havia sido condenado por tráfico.
Assim considerou, também, a decisão da 5ª Câmara Criminal do TJRS, ao absolver um pedreiro que fora antes condenado na Comarca de São Lourenço do Sul, por apropriação de uma panela de ferro de uma vizinha, algo com o valor de R$ 20,00.
21 abóboras também foram consideradas insignificantes, conforme acórdão da 8ª Câmara Criminal do TJ do Rio Grande do Sul, que absolveu os dois homens que pularam uma cerca para furtá-las, tendo tais bens o valor de R$ 15,00.
Igual sorte teve um rapaz que furtou uma fita de video-game, avaliada em R$ 25,00. O Ministro Celso de Mello, do STF concedeu liminar em Habeas corpus para determinar a suspensão da condenação que fora imposta ao rapaz.
Apesar de incrível que tais casos subam a instâncias superiores, pode-se mencionar, também o paraense preso por furtar dois pares de sandálias de borracha, que foi solto por ordem do Ministro Nilson Naves, presidente do STJ, com base no princípio da insignificância.
O furto de um litro de aguardente, avaliado em R$1,50 também não foi suficiente para que fosse mantida a condenação de José Ivaldo Faustino de Albuquerque, segundo o entendimento do Juiz Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim, da Comarca Criminal de Garanhuns, em Pernambuco.
É ainda do Ministro Nilson Naves, do STJ, a decisão que concedeu habeas corpus em favor de um homem que havia furtado quatro frascos de desodorante em um supermercado de Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro. O valor da mercadoria, R$ 9,96, foi considerado insignificante.
Não foi tão feliz a empregada doméstica Maria Aparecida de Matos, de 24 anos, que ficou presa por um ano e sete meses, no curso dos quais perdeu a visão do olho esquerdo por causa de tortura sofrida na prisão. A liberdade só foi obtida por decisão do STJ, depois que o TJ paulista negou o mesmo pedido.
Maria Aparecida, mãe de dois filhos e que mal sabe desenhar o próprio nome, foi presa por ter tentado furtar um frasco de shampoo, caso que indignou o público, após ter sido, exaustivamente, apresentado em jornais e noticiários de TV.
Também não foi feliz a ex-bóia fria Iolanda Figueiral, de 79 anos, doente terminal de câncer de ovário, pesando menos de 40 quilos, que se contorse de dor na cama de uma penitenciária em São Paulo, onde aguarda julgamento, longe dos filhos, dos 15 netos e 15 bisnetos. Iolanda é uma das 600 presas da penitenciária feminina do Tatuapé, e é acusada de tráfico de drogas (crime equiparado aos crimes hediondos, tanto quanto um homicício qualificado cometido com crueldade). Só que Iolanda é presa provisória e nega ter cometido o crime pelo qual foi acusada, já que a polícia encontrou em sua casa crack, sim crack. Mas algo como 17 gramas... Uma bagatela. Uma verdadeira insignificância. Iolanda não tem antecedentes criminais, tem residência fixa e vive com a aposentadoria de R$ 300,00. Mesmo assim, a justiça negou todos os pedidos de relaxamento da prisão por falta de provas, liberdade provisória em caráter excepcional, indulto humanitário ou prisão albergue.
Cana nela.
Apenas se espera que a justiça seja breve, posto que, aos 79 anos e doente terminal, pode ela terminar primeiro. Mas, será ela, também uma bagatela, uma insignificância?
Dos casos em que foi aceita a tese do princípio da bagatela, foi levada em conta, além do valor insignificante do bem, a realidade sócio-econômica do país. No caso das abóboras, o Desembargador Sylvio Baptista Neto, do TJ do RGS, teceu duras críticas ao Ministério Público Gaucho, registrando o Acórdão ser possível que os membros do Ministério Público não tenham serviço suficiente e podem brincar de recorrer das decisões desta e de outras Câmaras, o que é bastante inconveniente para nós desembargadores que, como é sabido, estamos com excesso de trabalho”, afirmando o Acórdão, ainda, mais adiante, que “uma vez que parece faltar trabalho sério aos procuradores de justiça, façam uma força-tarefa e vão ajudar os colegas de primeiro grau na persecução criminal daqueles delitos realmente graves...”
Dos casos que mencionamos, todos se referem a pessoas desprovidas de posses, miseráveis em alguns casos, e os bens envolvidos são de pouquíssimo valor.
Mas a aplicação do princípio da insignificância do crime, também conhecido no meio jurídico como princípio da bagatela vem se alastrando, até para questões que envolvem maiores valores e pessoas melhor dotadas, como é o caso da decisão que absolveu um camelô, um vendedor ambulante que retornava do Paraguai, quando o ônibus que viajava foi interceptado pela polícia federal, que o flagrou com mercadorias sem nota fiscal, que pretenda vender na cidade de Cariacica. O valor das mercadorias aprendidas era de R$ 4.300,00, na época. Mas, mesmo assim, os desembargadores entenderam que o delito praticado e confessado pelo réu não tinha relevância para merecer condenação criminal, diante da crise econômica que leva inúmeras pessoas a tentar garantir a subsistência no mercado informal. Além disso, a decisão registrou, conforme parecer do MPF que “devemos avaliar a conduta do acusado diante de sua reprovabilidade pela sociedade para quem, em última análise, são feitas as normas. Ora, por esse prisma, todos conhecem e toleram (inclusive as autoridades) a venda em bancas de camelô de mercadorias de origem estrangeira que foram internalizados em nosso país sem o cumprimento das formalidades alfandegárias.”
Então, o princípio da bagatela, ou da insignificância, trata dos bens bagatelares, ou da insignificância do agente?
Como se viu, é absolutamente subjetiva a conclusão do que deva ou não ser considerada uma bagatela. Mas, nos casos acima, todas as pessoas envolvidas podem ser consideradas insignificantes.
Estamos diante da consideração de que justo é tratar desigualmente coisas desiguais? Ou pessoas desiguais?
Aí, a coisa vai já complicando, quando a tolerância ou não das autoridades passa a servir para balizar a consideração de insignificância das atitudes reprováveis. Veja-se, até, que o princípio da insignificância não se aplica a funcionários públicos nos crimes contra a administração, conforme decisão do TRF da 2ª Região, que condenou empregada dos Correios, função equiparada a de funcionária pública nos termos da lei, que se apropriou de R$ 189,70, mediante a falsificação da assinatura de uma cliente.
E, se é assim, e se a função de um senador também pode ser considerada equiparada à de funcionário público, o Senador José Sarney deve por as barbas de molho, depois da entrevista que concedeu à Revista Carta Capital.
Com efeito, perguntado pelo entrevistador sobre o fato de existir, naquele Estado, um grande número de edifícios públicos ostentando nomes da familia Sarney, e sendo especificamente mencionado o caso da sede do Tribunal de Contas do Estado, que se chama Palácio Governadora Roseana Sarney Murad, o ex-governador Sarney redarguiu: “Mas o que significa para quem está há 40 anos na política botar o nome em um prediozinho de 2 andares? Pode ser errado ou certo, mas não é uma tragédia”.
Felizmente, não são nossos políticos que julgam o que é ou não insignificante, o que pode ou não ser considerado uma bagatela, até porque, na mesma reportagem, respondendo a uma outra pergunta, sobre existir ou não uma oligarquia Sarney no Maranhão o que, de resto, é fato notório e incontroverso, declarou o imortal Sarney: “somos gente simples, gente de classe média”, achando normal que o Estado tenha doado à Fundação José Sarney o prédio do Convento das Mercês, para que passasse a abrigar o exercício do culto à personalidade do ex-presidente. Não só normal, mas até benéfico ao país, já que acredita que, em sendo lá enterrado (após morrer, é claro) transformando em mausoléu um prédio público histórico, o fato seria mais um atrativo turístico, transformando-se em “ponto de peregrinação”.
Ave Sarney! Nós, os insignificantes te salutant...
Mas, a verdade é que, se a justiça vai considerar certos princípios como o da insignificância, ou da bagatela, é essencial que as decisões sejam, antes de mais nada, coerentes, de modo que o conceito de insignificância possa ser geral.
Se é que isso é possível, já que o que para uns é uma coisa de alto valor, para outros não passa de mera bagatela. Isso fica claro, nesse nosso país de desigualdades, quando lemos nas revistas semanais sobre as festas de casamento de algumas figuras de nossa sociedade, dignas de potentados árabes (alguns até são).
E, acima de tudo, é necessário saber se para considerar a insignificância ou a bagatela, entram nisso as pessoas, principalmente nesse nosso país cujas desigualdades contam com cidadãos insignificantes e pessoas bagatelares, para as quais a lei não é tão igual assim.
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*Advogado do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados e membro do CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL
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