Migalhas de Peso

A proteção de Deus no preâmbulo da Constituição

Segundo o autor, texto introdutório da CF nada mais fez que enaltecer "um fundamento metafísico anterior e superior ao direito positivo" e dar validade à sua aplicação na exegese das normas constitucionais.

8/10/2013

O nosso querido Migalhas do dia 3 de outubro de 2013 trouxe a seguinte observação feita por Euclides da Cunha: "Uma Constituição, sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumulados no envolver das idéias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro garantido pela energia conservadora do passado."

Sentença tão oportuna me levou a refletir sobre o preâmbulo de nossa Constituição, às vésperas de completar 25 anos de sua promulgação.

O preâmbulo da Constituição de 1988 deixa expresso que a sua promulgação foi realizada "sob a proteção de Deus".

Invocação esta que vem causando desassossego e porque, não dizer, irritação e desassossego por parte de ateus, agnósticos, associações que os congregam, sem falar em outros grupos que lançam os valores religiosos às urtigas, sem qualquer cerimônia. O argumento principal lançado ao debate se resume a invocar o Estado laico e, assim, a "proteção de Deus" no preâmbulo de nossa Constituição estaria fora de lugar. Investem, até mesmo, contra símbolos e objetos que retratam a lembrança do Cristianismo em terras brasileiras, especialmente, o Crucifixo exposto em repartições públicas, inclusive em salas dos Tribunais.

Entendo conveniente não entrarmos a discutir se o preâmbulo é norma constitucional obrigatória ou não. Prefiro ficar com o meu saudoso e querido professor Vicente Ráo, ao ensinar que as declarações programáticas, que enunciam princípios gerais, usadas, especialmente, nas Constituições, valem "como diretrizes a inspirar os intérpretes, na aplicação dos textos, os quais, com as mesmas declarações formam um só todo, isto é, a unidade da Constituição, ou do Código, ou da lei."1 Aliás, o primeiro grande constitucionalista a comentar a Constituição republicana de 1891, João Barbalho ensina: "o preâmbulo anuncia por quem, em virtude de que autoridade e para que fim se baseia, estabelecido na Constituição. Não é uma peça inútil ou de mero ornato na Constituição; as simples palavras que o constituem resumem e proclamam o pensamento primordial e os intuitos dos que a arquitetaram".

Quer dizer: a "proteção de Deus" é uma declaração programática de nossa Constituição, aqui e agora. Não cabe a ninguém, intérprete, povo e não-crentes, se opor a ela, a não ser que haja uma nova Constituinte que entenda de extirpá-la entre as disposições programáticas de uma nova Constituição.

A formação nacional do Brasil, desde o Descobrimento, foi forjada sob o signo da fé cristã e católica. A colonização foi obra da catequese, da incorporação do Novo Mundo ao Cristianismo. A luta pela unidade e a conquista do imenso território brasileiro só se explica pela fé cristã. J. F. Almeida Prado, reconhecidamente não-católico, por exemplo, "atribui à fé a resistência aos holandeses e sua expulsão do Brasil".2

Todo povoado que surgia era habitado em torno de uma igreja ou capela. Daí porque são inúmeras as cidades que têm nomes de santos católicos, um Estado ostenta o nome de Espírito Santo, o Estado do Pará tem por capital Belém e o Rio Grande do Norte celebra o Natal de Jesus Cristo em sua capital.

Foi nesse quadro que o Brasil nasceu, cresceu, conseguiu sua Independência e forjou sua nacionalidade, cultura, formação e sob a égide de Cristo foi sedimentada a Nação brasileira.

Trata-se de uma realidade histórica, social e cultural inconteste. Negá-la seria abraçar o absurdo da ignorância e opor-se à verdade.

De outra parte, o sistema político do Estado brasileiro, em nenhum momento, chegou perto de uma teocracia abominável existente em outros países.

A Constituição de 1891, por influência do Positivismo de Augusto Comte, tão em voga entre os militares daquela época, impôs a separação do Estado e Igreja e instituiu o chamado Estado laico, mas em momento algum negou a influência decisiva do Cristianismo na formação nacional do povo brasileiro, pois estaria se contrapondo ao óbvio. Bem por isso, o chamado Estado laico não pode significar a rejeição, pura e simples, dos valores cristãos presentes na Nação brasileira.

Todas as Constituições brasileiras, excetuadas a Constituição de 1891 e a Carta Política de 1937, invocam em seus preâmbulos, de forma expressa, que são promulgadas "sob a proteção de Deus". A Constituição Imperial de 1824, que deu início à História Constitucional do Brasil foi jurada em nome da Santíssima Trindade.

A invocação feita da "proteção de Deus", como está no preâmbulo da vigente Constituição, "significa que o Estado que se organiza e estrutura mediante sua lei maior reconhece um fundamento metafísico anterior e superior ao direito positivo." 3

Se o preâmbulo da Constituição invoca a "proteção de Deus", somente pode referir-se à proteção do Deus dos cristãos – Jesus Cristo – pois sob sua proteção e dentro dos ensinamentos evangélicos foi construída a Nação brasileira.

Todavia, a própria Constituição apressou-se em garantir a liberdade de todas as crenças, possibilitando que seus seguidores tenham a garantia de professá-las, livremente, uma vez que vivemos em um Estado Democrático de Direito. De igual forma, os ateus e agnósticos têm a garantia, os primeiros de negar a existência de Deus e os segundos de ignorar sua existência.

Portanto, não se justifica, sob a capa de defesa do Estado laico, sejam defendidas posições de ataque ao símbolo maior do Cristianismo: a Cruz de Cristo.

Conforme observa o eminente e brilhante Procurador de Justiça do Ministério Público paulista Dr. Walter Paulo Sabella, "pretender que da exposição do crucifixo" em prédios públicos "se possa inferir relação de dependência ou aliança com organizações religiosas", semelhante raciocínio levaria, "simetricamente, à mesma conclusão em face do fato de aceitar-se a estátua do Cristo Redentor em terras públicas, no Rio de Janeiro".4 Depois de recordar que "as religiões são fatos sociais", por isso mesmo, "a ostentação do crucifixo num prédio público não tornará, o Estado menos laico, nem a sua retirada lhe dará maior laicidade".

Do fato mesmo "de ser a religião um fato social, emerge, ipso facto, a ingente dificuldade de distinguir, em fronteiras nítidas, se as coisas tidas como da religião, como seus símbolos, pertencem apenas aos domínios do campo religioso ou se amalgamam e difundem pelos domínios da cultura, da tradição, do costume". E tanto "as coisas são assim que Arnold Toynbee, o grande historiador inglês, chegou a sustentar que as próprias civilizações se desenvolvem nas linhas conceptuais de uma religião fundamental e entram em agonia quando se esvai o poder vital dessas religiões".5

Anos atrás, aturdido e estupefato, tomei conhecimento de que o então Presidente Desembargador Luiz Zwitter, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mandou retirar das salas e dependências do prédio daquela Corte os crucifixos que ali se encontravam. Sua Excelência confessa-se judeu, maçon e espírita6. Com todo o respeito, uma estranha mistura de posições diante da vida... Em razão disso escrevi um artigo publicado pelo nosso Migalhas sob o título "O 11 de agosto e a Cruz de Cristo".

Tratava-se de uma infeliz deliberação unilateral e solitária do seu Presidente e tão contrária à formação nacional, social, cultural e religiosa do povo brasileiro sedimentada em cinco séculos. Não poderia acreditar que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não tivesse em seus quadros homens que professassem a fé cristã e conhecessem a História brasileira. Recordo-me que, alguns anos atrás, o pai daquele Desembargador, ministro Waldemar Zweitter, no Superior Tribunal de Justiça, propôs a retirada da Cruz de Cristo das salas e dependências daquele Tribunal. Houve a reação, como não poderia deixar de ser, de várias vozes e entre elas se encontrava a do meu querido e saudoso Amigo Ministro Domingos Franciulli Netto com o testemunho de sua coragem de verdadeiro cristão e defensor da fé que animou a formação nacional do povo brasileiro. Parecia ser de família (pai e filho), a revolta contra a Cruz – um dos símbolos mais antigos da civilização humana.7

A deliberação solitária e absurda do antigo Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro repetiu-se em uma decisão colegiada do Conselho Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul.

Os desembargadores que integram o Conselho Superior da Magistratura são brasileiros e homens que se dedicam ao estudo. Logo, não podem desconhecer a realidade da formação cristã da Nação em que nasceram.

Suas Excelências não podem desconhecer a fundamental importância de Jesus Cristo na História da Humanidade que se divide em dois períodos: antes e depois de seu Nascimento, muito embora haja nascido em uma pequena vila da Judéia e não tenha se afastado mais do que trezentos quilômetros do lugar onde nasceu.

O insuspeito Benedetto Croce teve a oportunidade de constatar: "O Cristianismo foi a maior revolução que a humanidade jamais realizou", enquanto Hegel, ao tratar da realidade histórica de Jesus Cristo afirma: "Até aqui chega a história e daqui recomeça".8

Com efeito, "todos encalham no momento de lançar a passarela entre o obscuro Jesus da História e o deslumbrante Cristo da fé".9

Queiram ou não os ateus e agnósticos, a Cruz será o eterno símbolo da Morte e Ressurreição em Jesus Cristo. Sob esse símbolo eterno nasceu, evoluiu e se formou a Nação brasileira.

Com rara felicidade, o eminente Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho observa: "No caso da Magistratura, os valores cristãos se tornam ainda mais fortemente 'fonte de inspiração' para as decisões, uma vez que 'fazer justiça' é, de certo modo, exercer um atributo divino. A justiça humana será tão menos falha quanto mais se inspirar na justiça divina".10

Após o início de minha conversão – antes fui ateu e depois agnóstico – aprendi que "quando a fé em Deus começa a desaparecer, também o espírito de união fraterna perde sua base, abrindo-se o caminho para a luta de todos contra todos, luta que só conhece o direito do mais forte".11

Com efeito, "quando se perde a dimensão vertical da filiação divina, torna-se mais difícil vivenciar a dimensão horizontal da fraternidade humana" e "só podemos nos chamar realmente irmãos, porque temos um Pai Comum" e, por outro lado, "Cristo mostrou a dignidade imensa do mais humilde dos homens, fazendo-se trabalhador manual e, sendo mestre, lavando os pés dos seus discípulos".12

Estado laico não é sinônimo de Estado ateu ou agnóstico, mas sim de um Estado que adota a liberdade de todas as crenças religiosas e garante sua prática, como também respeita, como não poderia deixar de respeitar, os valores cristãos que deram base à formação da Nação brasileira.

O nome de Deus, para o cardeal Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, em homilia de 31.5.1931, "está cristalizado na alma do povo brasileiro. Ou o Estado, deixando de ser ateu e agnóstico reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado".

Não se há de olvidar, para possível espanto de alguns, que a religião cristã foi a base moral na qual as instituições do Estado brasileiro se estabeleceram.

Para o Papa Bento XVI, "a tendência que, por assim dizer, admite Deus como opinião privada, mas lhe recusa o domínio público, a realidade do mundo e a nossa vida, não é tolerância, mas hipocrisia".13

O consagrado escritor Graham Greene, em bela página de uma de suas obras, termina por dizer: "Se eu tivesse de partir esta noite e me perguntassem o que mais me comove neste mundo, responderia talvez que é a passagem de Deus pelo coração dos homens. Tudo se perde no amor, e embora seja verdade que seremos julgados segundo o amor, é igualmente fora de dúvida que seremos julgados pelo amor, que outro não é senão Deus".14

Com razão afirma o Papa PAULO VI, "uma concepção do mundo, segundo a qual esse mundo se explicaria por si mesmo, sem ser necessário recorrer a Deus; de tal sorte que Deus se torna supérfluo e embaraçante" está a representar um secularismo que "para reconhecer o poder do homem, acaba por privar-se de Deus e mesmo por O renegar".15

A Justiça é obra do homem como colaborador de Deus e RUI BARBOSA dizia "sem Deus não pode haver justiça".

Portanto a presença da Cruz de Cristo nas salas dos Juízes e Tribunais é confirmação da realidade da formação cristã da Nação brasileira e serve para relembrar, com Rui Barbosa, que "sem Deus não pode haver justiça". Dizer-se que "o julgamento em sala com expressivo símbolo de uma igreja e sua doutrina não parece a melhor forma de se mostrar o Estado-Juiz equidistante dos valores em conflito" nada mais representa do que uma afirmação vazia, como se o símbolo da Cruz tivesse a possibilidade de influir o Estado-Juiz em dirimir os "valores em conflito". Aceitar-se tão estapafúrdia afirmativa, como o símbolo da Cruz sempre esteve presente em todas as salas dos Juízes e dos Tribunais, especialmente, a partir da Constituição Imperial de 1824, o "Estado-Juiz"”, há mais de 189 anos, nunca esteve equidistante dos valores em conflito... A Cruz, para o notável Alceu Amoroso Lima, o nosso Tristão de Athayde, "é a encruzilhada dos horizontes do mundo".16

Em suma e finalmente, o preâmbulo de nossa Constituição ao invocar a "proteção de Deus" em sua promulgação há 25 anos, nada mais fez do que enaltecer "um fundamento metafísico anterior e superior ao direito positivo17 e dar validade à sua aplicação na exegese das normas constitucionais.

Para os ateus e agnósticos, grupos que os congregam e associações que desprezam os valores cristãos, em sua “cruzada” de se opor à proteção de Deus invocada no preâmbulo de nossa Constituição, gostaria de transcrever o conhecido diálogo entre André Gide e o consagrado poeta Claudel:

André Gide: "Eu não me preocupo com a existência de Deus."

Claudel: "Não tem importância, Deus se preocupa com a existência de Você."

_____________

1 - “O Direito e a Vida dos Direitos”, Ed. RT, S,Paulo, 7ª. ed., 2013, revista e atualizada por OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, N. 306, p, 299.

2 – “Apud” JOÃO SCATIMBURGO, “Tratado Geral do Brasil”, Companhia Editora Nacional, S. Paulo, 1ª. ed., 1973, pg. 31.

“Se a fazenda del-rei fornecia recursos à Igreja, não era menos certo que o sentido missionário obedecia à densa fidelidade de Portugal à religião católica” (idem).

3 - IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO, Jornal “O Globo” de 14.4.2009.

4 - Parecer no Pt. n. 48723/07, de 27.8.2007.

5 - Idem.

6 - Revista “Isto É”, edição de 12.8.2009, pg. 33.

7 - Recordei, naquele artigo, que o presidente Luiz Zweitter não poderia negar que, com os seus braços abertos a Imagem do Cristo Redentor está presente e, acredito, que o senhor Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro daquela época, em seu trajeto diário de Niterói para a Capital, não poderia olvidar a visão do Cristo Redentor abençoando a Guanabara. Diante de sua posição contrária à presença da Cruz nas dependências do Tribunal, para ele a Imagem do Cristo Redentor abençoando a Guanabara não estaria em seu lugar...

Observei, ainda, que existe, a propósito da observação de que só o Evangelho é a “chave” para resolver o enigma dos anúncios messiânicos da Bíblia hebraica, o testemunho de um judeu convertido ao Cristianismo, Ítalo Zolli, rabino-chefe da comunidade israelita de Roma que se tornou católico em 1945: “Todo o Antigo testamento me pareceu um telegrama divino enviado aos hebreus. Incompreensível para quem quisesse lê-lo sem chave. Ora, a chave é Cristo, a cuja luz adquire sentido o frêmito messiânico que perpassa todos os livros da Antiga Aliança” (“apud” VITTORIO MESSORI, “Hipóteses sobre Jesus”, Ed. Paulinas, 1980, pg. 85/86). A propósito é importante recordar o texto do profeta Isaías sobre o anúncio da paixão de Jesus e seu papel no destino dos homens, setecentos anos antes de acontecer: “Todos nós andávamos como ovelhas desgarradas, seguindo cada qual o seu caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a culpa de todos nós. Foi maltratado e resignou-se, não abriu a boca, como um cordeiro conduzido ao matadouro. Por iníqua sentença foi eliminado...”

8 - VITTORIO MESSORI, ob. cit., pgs 100 e 101.

9 - Idem, pg, 185.

10 - Artigo citado.

11 - Em comunhão com a experiência espiritual de Alceu Amoroso Lima, eu digo: “Cheguei a Deus por meio de Sua negação. Daí até hoje meu respeito pelos ateus. Não apenas porque verifiquei, ao longo da própria vida, que só o Homem é capaz de descrer da existência de Deus, pois todos os demais seres inanimados ou animados, acreditam em Deus por viverem em sua imanência. Mas ainda porque só se nega aquilo que existe, Negar a Deus é colaborar inconscientemente, na evidência e no conhecimento, por via negativa, de Sua existência”. (“Memorando dos 90”, Ed. Nova Fronteira, Rio, 1984, p. 323). Alias, o Dr. Alceu Amoroso Lima, em carta que me escreveu em março de 1984, dois meses antes de sua morte dizia: “Somente aqueles, como eu e você, que fizemos o caminho de ida e volta à água do Batismo, podemos avaliar o que seja o gesto da conversão”.

12 - IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO, artigo citado.

13- Homilia de Abertura do Sínodo dos Bispos em 21.10.2005.

14 -“Apud” CHARLES MOELLER, “Literatura do Século XX e Cristianismo”, Ed. Flamboyant, São Paulo, 1958, vol. I, pg. 420.

15 - Idem, n. 55, pg. 58.

16 - “Memorando dos 90”, Ed, Nova Fronteira, Rio, 1984, p. 27.

17 - IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO, Jornal “O Globo” de 14.4.2009.

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado do escritório Rocha Barros Sandoval & Ronaldo Marzagão Sociedade de Advogados

 

 

 

 

 

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