O Conselho de Segurança da ONU reflete o fim da 2ª Guerra Mundial. As potências vencedoras decidem juntas e cada uma exerce o poder do veto. São cinco: EUA, Rússia, China, França e Reino Unido. A Assembleia Geral pode ser convocada e tem maior representatividade mas o veto prevalece em quaisquer circunstâncias. O fato de os EUA, França e Reino Unido estarem, na maioria das vezes, juntos e deles China e Rússia divergirem leva a impasses e intervenções por meio de coalizões ilegais de nações fortes, às luzes do Direito Internacional público. A teoria da "responsabilidade de proteger" foi gestada nesse ambiente de dissenso. Foi usada no Kosovo para evitar o revide da Sérvia à declaração unilateral de independência desse pequenino Estado (berço histórico da própria Sérvia).
Cabe dizer com toda a ênfase que a regra básica do Direito Internacional é a proibição do uso da força pelos Estados, sem a autorização motivada do Conselho de Segurança da ONU, salvo em legítima defesa proporcional ou dano evidente à segurança coletiva.
No caso da Síria, antes do parecer conclusivo da ONU sobre o uso de armas químicas pelo governo de Assad e autorização do Conselho de Segurança, qualquer intervenção será ilegal. Por evidente, lamentamos os casos de Ruanda e Costa do Marfim e suas cruentas guerras civis, nas quais 900 mil pessoas perderam dedos, mãos, braços ou pernas a golpes de machado, sem que as potências ocidentais demonstrassem a sua indefectível "consciência ética" e o "direito de proteger" inocentes. Uma certa dose de hipocrisia e boa parte de interesses políticos e estratégicos estão presentes nas decisões de intervir ou não. Darfour será para sempre a prova de que o Ocidente age guiado por seus mesquinhos interesses, recobertos por uma fina camada de humanitarismo. Sempre haverá uma "justificativa" e a arguição de "altos princípios éticos". No fundo os interesses são outros.
Nas intervenções das grandes potências – o que não deixa de ser um avanço em relação aos tempos que antecederam a 2ª Guerra Mundial –, cresceu a comunicação mundial das consciências. Antes nem sequer explicações eram dadas. No Iraque, por exemplo, foi necessário mentir muito para garantir a intervenção bélica.
Faço minhas as palavras da professora Paula W. Almeida, da Fundação Getulio Vargas: "O discurso de Obama deixa clara a intenção do país em se autoerigir como um bastião da legalidade internacional, tendo a responsabilidade de fazer respeitar com o uso da força os tratados internacionais, especialmente a convenção internacional sobre a proibição do desenvolvimento, produção, estocagem, uso e destruição de armas químicas de 1993. A referida convenção foi ratificada por 189 Estados, entre eles EUA e França, mas não obriga a Síria. De qualquer forma, a proibição do uso de armas químicas remonta ao Protocolo de Genebra de 1925. O secretário-geral, Ban Ki-moon, pediu tempo para estabelecer os fatos. Não se devem atropelar as regras do jogo, buscando transformar exceções em regra. Existem normas claras na Carta da ONU: o uso da força é sempre o último recurso. Um Estado não pode se atribuir unilateralmente a responsabilidade de, com o uso da força, fazer respeitar o direito internacional". Os EUA não são o juiz, a polícia e o sistema carcerário da humanidade, acrescento. Quem lhes deu esse mandato? O presídio de Guantánamo é uma nódoa na história dos EUA.
Estamos a ver desta vez algo novo: a reação dos próprios americanos à intervenção. Finalmente deram-se conta de que as guerras matam e ferem física e mentalmente gerações inteiras. É um bom começo contra o endeusado belicismo da América do Norte, com o seu culto, em filmes e séries, à figura do herói "que dá a vida" em prol da "liberdade" e da "sociedade dos homens livres". Pois sim, foi-se o tempo das ingenuidades.
Obama no fundo não quer intervir mas desavisadamente traçou uma hipotética linha vermelha. Vê-se obrigado por ela. Acuado pelo "não" da sociedade civil, pediu o aval do Congresso, que reluta dar-lhe permissão, até porque uma atuação punitiva limitada será inócua. O que interessa é acabar com a matança. Disso valeu-se a Rússia brilhantemente. Sua diplomacia convenceu a Síria a assinar o Tratado de 1993 e a parar de fazer e usar armas químicas. O chanceler Lavrov sustou a intervenção e garantiu a permanência de Assad. Existem mais de 70 grupos na oposição, todos contra os EUA, que sabem disso tanto quanto a Rússia, sob ataque da Jihad no cáucaso. A essa altura os rebeldes liberais que se danem. É um mundo cruel. A solução seria uma intervenção da ONU com respaldo da Otan, como na Croácia e um ultimato ao ditador com remoção dos grupos sectários estrangeiros presentes na Síria. Ela virá algum dia? É o que o mundo dos bem-intencionados se pergunta. Querem uma nova ordem mundial. Esperemos!
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* Sacha Calmon é sócio do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados.