Foi com surpresa que lemos a notícia da declaração da Presidenta Dilma:
“Quero, nesse momento, propor um debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita. O Brasil está maduro para avançar. (…)" (Veja o pronunciamento da presidente)
Como é cediço, as normas constitucionais são dotadas de supremacia, a qual configura princípio constitucional implícito, o que significa que todas as normas do ordenamento jurídico devem com ela guardar relação de compatibilidade, sob pena da prática de ato nulo.
Mas a Constituição admite alterações, as quais somente poderão ocorrer por meio de emenda constitucional (art. 60 da CF), sujeita a diversos limites: expressos e implícitos.
Dentre os implícitos ressaltamos que não mais cabe revisão constitucional para alteração da Constituição, eis que só prevista uma vez no art. 3º do ato das ADCT, afigurando-se como limite implícito ao poder derivado reformador: “a proibição a que se façam novas revisões constitucionais, porquanto tal norma limitadora é obtida da interpretação a contrario sensu do art. 3º do ADCT, ao argumento de que, se fossem permitidas novas revisões, o constituinte originário as teria previsto expressamente”1. Em poucas palavras, atualmente qualquer revisão constitucional não é autorizada pela Lei Maior.
Mas se uma emenda constitucional alterasse o art. 3º do ADCT, permitindo uma reforma constitucional sujeita a plebiscito?
Trata-se da aplicação do que se convencionou chamar de teoria da “dupla reforma” ou da reforma em “dois tempos”, que é uma “teoria concebida para contornar as limitações constitucionais ao poder de reforma, mediante duas operações subsequentes de alteração formal da constituição".
Numa primeira operação, revogam-se ou excepcionam-se as limitações criadas pelo poder constituinte originário; numa segunda operação, altera-se a constituição, sem nenhum desrespeito ao texto já em vigor após a modificação anterior.
O argumento básico em defesa da dupla revisão está em que são relativos, e não absolutos, os eventuais limites impostos ao poder constituinte derivado. As normas que regulam os limites materiais ao poder de reforma constitucional não deixam de ter a mesma hierarquia que as demais normas constitucionais. Daí, se inexistem normas constitucionais a proibi-la, a dupla revisão constitucional é juridicamente possível.
Na doutrina estrangeira, a dupla revisão é defendida por autores a entender que as regras do processo de revisão constitucional são suscetíveis de modificação como quaisquer outras normas; e também as normas que contemplem limites expressos não são lógica nem juridicamente necessárias, de modo que se podem revisá-las do mesmo modo que quaisquer outras normas. Mas as normas que fixem tais limites devem ser cumpridas enquanto não forem alteradas.
No Brasil, a possibilidade da dupla revisão é minoritária. Os que a defendem afirmam inexistirem limites implícitos contra a alteração dos limites materiais explícitos, porque cláusulas implícitas “há por todos os gostos”2. Para outros, a dupla reforma é admissível, desde que não altere o caráter rígido da Constituição brasileira3.
No entanto, a tese da dupla revisão é rejeitada pela esmagadora maioria da doutrina nacional, que a considera verdadeira fraude à autoridade do constituinte originário”.4
No STF prevalece o entendimento ora defendido no sentido da impossibilidade da dupla revisão:
“Ao Poder Legislativo, federal ou estadual, não está aberta a via da introdução, no cenário jurídico, do instituto da revisão constitucional." 5
"Emenda ou revisão, como processos de mudança na Constituição, são manifestações do poder constituinte instituído e, por sua natureza, limitado. Está a ‘revisão’ prevista no art. 3º do ADCT de 1988 sujeita aos limites estabelecidos no § 4º e seus incisos do art. 60 da Constituição. O resultado do plebiscito de 21 de abril de 1933 não tornou sem objeto a revisão a que se refere o art. 3º do ADCT. Após 5 de outubro de 1993, cabia ao Congresso Nacional deliberar no sentido da oportunidade ou necessidade de proceder à aludida revisão constitucional, a ser feita ‘uma só vez’".6
Portanto, concluímos que a proposta de convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para a elaboração de uma revisão constitucional que viabilize a reforma política é manifestamente inconstitucional, afigurando-se como uma fraude à Constituição.
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1 cf. Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Direito Constitucional, Tomo I, Salvador: Juspodivm, 2012, p. 123
2 (FERREIRA FILHO, 1995, p. 14 e segs.)
3 (MACHADO HORTA)
4 (cf. Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Direito Constitucional, Tomo I, Salvador: Juspodivm, 2012, p. 125)
5 (ADI 1.722-MC, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10-12-1997, Plenário, DJ de 19-9-2003)
6 (ADI 981-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 17-3-1993, Plenário, DJ de 5-8-1994.)
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* Juliano Taveira Bernardes é Juiz Federal, mestre em “Direito e Estado” pela UnB e professor convidado dos cursos de pós-graduação em Direito Constitucional e Direito Tributário da UFG.
* Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, e procurador do Estado de São Paulo desde 1998.