Migalhas de Peso

Um Garoto

Um garoto no meio fio próximo ao poste do sinal, não parece ter pressa nem se incomodar com a chuva e nem com os impedimentos que o seu desabar propicia ou causa.

8/5/2013

A procissão de automóveis estanca a sua marcha na manhã de nuvens cinza turvando as horas, o sinal vermelho se impondo como autoridade única.

 

Os vidros das janelas estão levantados, as palhetas dos para-brisas não param o movimento rítmico que desanuvia a visão, palhetas concomitantes quase arranhando os vidros, a chuva caindo forte, caindo forte, as palhetas dos para-brisas deslizando firmes, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá.

 

Não há policial no cruzamento, nem algum teimoso querendo passar adiante, em venda casada, o jornal governista.

 

Aquele gente boa da carrocinha do suco de laranja é bem possível, ainda está a caminho, ou nem está, e de qualquer forma, pelo sim, pelo não, ainda nem conseguiu chegar.

 

É chuva muita riscando o céu com relâmpagos.

 

Nesta procissão de automóveis, e eu nela, que estanca obediente ao sinal vermelho, cada um vai para o seu rumo, para depois, se separando adiante, seguir um destino distinto.

 

Eu preciso atravessar a ponte, margear o cais da beira mar, passar pela praia grande, pelo aterro, chegar ao bacanga, ao outro lado do rio bacanga.

 

Não sei se é algum defeito no sistema, irão ate dizer que foi sabotagem, mas o sinal vermelho se mantém aceso, intimidante nessa chuvarada, impondo a impressão de que tão cedo não abrirá para o verde.

 

Travados assim ficaremos, sem licença para engatarmos uma primeira marcha e seguirmos, ate quando?

 

Nessa demora, olhando para um lado, olhando para o outro, avisto um garoto no meio fio próximo ao poste do sinal. Ele não me parece ter pressa nem se incomodar com a chuva e nem com os impedimentos que o seu desabar propicia ou causa.

 

O garoto exibe uma quase soberba de quem se achando infenso à chuva também não está a fim de saber a parada final dessa procissão de automóveis. É ele só, sem guarda chuva, sem nada, no meio da chuva e pronto.

 

Busco entender-lhe perscrutando-lhe o olhar e o encontro manso e distante. De onde veio esse garoto? Examino-lhe os trajes.

 

Avaliando-lhe o que veste, não deve ter vindo de algum desvão suburbano. Parece ter vindo de um pouco longe, mas de não muito longe. Não está maltrapilho.

 

Chama-me ainda a atenção que este garoto não faz aquela abordagem tão comum dos que quase se engalfinhando nos faróis do transito esperam o sinal vermelho para estenderem a mão em concha pedindo algum trocado.

Nem carrega aquele equipamento, garrafa com água e sabão e rodo, com que muitos se atiram à frente dos carros querendo limpar-lhe, algumas vezes sujando ainda mais, os vidros para-brisas.

 

Impressionam-me as respostas que não vou encontrando na forma exata para as perguntas que eu mesmo vou inventando acerca do garoto. Está estudando? Onde? É escola publica? O que sonhas ser na vida?

 

Certa vez encontrei uma menina, já nem tão garota, que ao responder sobre o seu sonho me disse que quer ser é Presidente da República. Então estuda muito, te aferra a valores, a princípios, e segue em frente, falei.

 

O garoto desta chuva, paralisado ali no meio fio, perto do poste do sinal que continua travoso em sua cor vermelha, talvez nem saiba distinguir direito, em seus significados, a importância de cada cor.

 

Mas com certeza constata agora que o vermelho do sinal de transito é paralisante e que o verde que ainda não chegou é o que abre passagem para essa procissão de automóveis descambar.

 

Quando essa chuvarada acabar e o sinal vermelho se apagar, oh rapaz, necas de olhar pra trás. É ferro na boneca, e no gogo neném...

 

* Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA

 

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