Eu pensava que as agressões à ciência jurídica existiam apenas no Antiprojeto de Código Comercial, mas percebo que essa praga propagou-se também pelo projeto de Código de Processo Civil.
O tratamento da ação de dissolução parcial de sociedade, neste último projeto, é um verdadeiro disparate, uma trombada na Ciência do Direito.
O Código de Processo Civil em vigor não regulou, como se sabe, a ação de dissolução de sociedade, mantendo em vigor a disciplina do Código de 1939 (art. 1.218, VII,do CPC de 1973).
Mas o projeto deCPC, em trâmite no Congresso, pretende regular a matéria de dissolução parcial,nos arts. 615 e seguintes.
Os arts. 615 e 616, inicialmente, assim dispõem:
Art. 615. A ação de dissolução parcial de sociedade pode ter por objeto:
I – a resolução da sociedade empresária contratual ou simples emrelação ao sócio falecido, excluído ou que exerceu o direito de retirada ourecesso; e
II – a apuração dos haveres do sócio falecido, excluído ou que exerceu o direito de retirada ou recesso; ou
III – somente a resolução ou a apuração de haveres.
§1º. A petição inicial será necessariamente instruída com o contrato social consolidado.
§ 2º. A ação de dissolução parcial de sociedade pode ter também por objeto a sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim.
Art. 616. A ação pode ser proposta:
I – pelo espólio do sócio falecido, quando a totalidade dos sucessores não ingressar na sociedade;
II – pelos sucessores, após concluída a partilha do sócio falecido;
III – pela sociedade, se os sócios sobreviventes não admitirem o ingresso do espólio ou dos sucessores do falecido na sociedade, quando esse direito decorrer do contrato social;
IV – pelo sócio que exerceu o direito de retirada ou recesso, se não tiver sido providenciada, pelos demais sócios, a alteração contratual consensual formalizando o desligamento, depois de transcorridos dez dias do exercício do direito;
V – pela sociedade, nos casos em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial; ou
VI – pelo sócio excluído.
Parágrafo único. O cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento,união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade. Os haveres assim apurados serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio.
Os leitores percebem o atentado contra o Direito Processual Civil?
O projeto confunde, inadmissivelmente, a ação de dissolução parcial de sociedade – de natureza constitutivo-negativa (ou desconstitutiva, se se preferir) – com a ação de apuração de haveres – de natureza condenatória.
O que a ciência jurídica demorou dezenas de anos para distinguir é misturado numa sopa só,inclusive quanto à legitimação para agir.
Vejam bem. Se o sócio faleceu, retirou-se ou foi excluído, o vínculo social já está parcialmente dissolvido. Portanto, falta-lhes, ou aos herdeiros do sócio falecido, interesse processual para a ação de dissolução, que é perfeitamente inútil. Não há necessidade, nem adequação. Resta-lhes a ação de apuração de haveres.
Isso é hoje,também, perfeitamente elementar. Mas o projeto de Código de Processo Civil (de Código de Processo Civil, ressalte-se!) ignora, olimpicamente, essa distinção,metendo de cambulhada tudo numa panela só e ainda afirmando, no inciso III, do art. 615, que a ação de dissolução pode ter por objeto somente a apuração de haveres – uma contradictio in terminis positivada!
No tocante à legitimação para agir, o inciso I, do art. 616, prevê que a ação poderá ser proposta pelo espólio, quando a totalidade dos sucessores não ingressar na sociedade.Evidentemente, a legitimidade, aqui, é única e exclusivamente para a apuração de haveres, e não para a dissolução parcial do vínculo em relação a quem nem sequer entrou a fazer parte da sociedade! O mesmo se diga do inciso II, pois os sucessores do sócio falecido só se tornariam sócios se nela tivessem ingressado.
O inciso III é uma verdadeira pérola: a sociedade é a legitimada para propor a ação de dissolução de sociedade, com o intuito de pagamento de haveres! Não é algo extraordinário?
Ainda que mal pergunte: não se trataria mais propriamente, no caso, de uma ação de consignação em pagamento?
Mais ainda. No plano do direito material, esse mesmo inciso parece negar eficácia à cláusula contratual que assegura o ingresso dos herdeiros do sócio falecido na sociedade (art. 616, III) – o que não faz o menor sentido1.
O inciso IV, de sua vez, a par de prever hipótese em que há claríssima falta de interesse processual, ainda é fomentador de demandas. Se o sócio se retirou, o vínculo já se extinguiu por força do exercício do direito potestativo de desvinculação(que se perfaz mediante declaração unilateral e receptícia de vontade) e, para liberar-se de responsabilidade perante terceiros, bastar-lhe-á averbar tal notificação no registro competente (CC, art. 1.032). O mesmo vale com respeito ao sócio excluído (inciso VI).
Mas os absurdos não param por aí.
O art. 617 diz o seguinte:
Art. 617 Os sócios e a sociedade serão citados para, no prazo de quinze dias, concordarem com o pedido ou apresentarem contestação.
Parágrafo único. A sociedade não será citada se todos os seus sócios o forem, mas ficará sujeita aos efeitos da decisão e à coisa julgada.
Não é uma maravilha?
Se os arts. 615 e 616 demonstram insciência do direito processual civil, o parágrafo único do art. 617 comprova, também, o desconhecimento do direito material e do próprio mundo dos negócios, com consequências funestas.
Em primeiro lugar,a pessoa jurídica não se confunde com os seus membros, como é de primária sabença2. E, evidentemente, para ficar sujeita à coisa julgada, imperiosamente deveria ser citada, quando menos como mínima homenagem ao princípio do contraditório, constitucionalmente assegurado (CF, art. 5º, inciso LV).
Reparem, agora,nas consequências práticas dessa grosseira e rudimentar confusão.
Imagine-se que alguém esteja comprando um imóvel de uma sociedade. O que se faz normalmente?Solicita-se certidão dos distribuidores forenses. Em nome de quem? Da sociedade, naturalmente, e não de seus sócios.
Com a disposição do parágrafo único do art. 617 do projeto, entretanto, arrisca-se comprar um imóvel de uma sociedade que está sendo dissolvida!
É a plena segurança do mundo dos negócios!
Mas, se a citação de todos os sócios ainda se justifica na ação de dissolução de sociedade, pois todos terão a sua esfera jurídica afetada, na ação de apuração de haveres a citação daqueles é totalmente descabida. Quem deve haveres é a sociedade e não os seus sócios!
Essa solução,ademais, como lembrado por Marcelo Vieira von Adamek, na palestra citada de início, “acaba por transformar a participação societária em sementeira de ações– o sócio, só porque sócio é, acabará sofrendo todas as restrições e dificuldades daí resultantes...! E isso ainda quando porventura tenha ficado vencido, por exemplo, em alguma deliberação de exclusão de outro sócio – não importa, mesmo neste caso terá que figurar no polo passivo ou ativo da ação só para integrar a relação processual, independentemente do fato de que contra ele não se tenha deduzido nenhuma pretensão...”
Continuemos.
O art. 619 e seu parágrafo primeiro assim determinam:
“Art. 619 Havendo manifestação expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação.
§ 1º. Na hipótese prevista no caput, não haverá condenação em honorários advocatícios de quaisquer das partes e as custas serão rateadas segundo a participação das partes no capital social.”
Como se percebe, o projeto, definitivamente, não se dá bem com o conceito de personalidade jurídica.Não nasceram um para o outro.
As custas devem ser pagas pela sociedade, que conserva a personalidade jurídica até o encerramento da liquidação e a averbação da ata da assembleia no registro próprio (arts. 51 e 1.109 do Código Civil e 207 da LSA). E não pelos seus sócios!
Até porque, a qualquer momento, estes podem deliberar cessar o estado de liquidação e retomara atividade social (art. 1.071, inciso VI, do Código Civil e 136, inciso VII,da LSA).
É um completo despropósito, portanto, entender que, após dissolvida, a sociedade está extinta,passando suas obrigações diretamente às pessoas dos sócios. É a consequência da grotesca indistinção entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem.
Mas,evidentemente, o projeto não se contenta com todos esses disparates. Era necessário mais uma cereja no bolo. Uma cerejona!
Vejam o que dispõem os arts. 620 a 623:
Art. 620 Para apuração dos haveres, o juiz:
I – fixará a data da resolução da sociedade;
II – definirá o critério de apuração dos haveres à vista do disposto no contrato social; e
III – nomeará o perito.
(...)
Art. 621 A data da resolução da sociedade será:
I – no caso de falecimento do sócio, a do óbito;
II – na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante;
III – no recesso, o dia do recebimento, pela sociedade da notificação do sócio dissidente; e
IV – na retirada por justa causa de sociedade por prazo determinado ena exclusão judicial de sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade;
V – na exclusão extrajudicial, a data da assembleia ou da reunião desócio que a tiver deliberado.
Art. 622. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.
Parágrafo único. Em todos os casos em que seja necessária a realização de perícia, a nomeação do perito recairá preferencialmente sobre especialista em avaliação de sociedades.
Art. 623. A data da resolução e o critério de apuração de haveres podem ser revistos pelo juiz, a pedido da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia.” 3
Não é formidável? A data da resolução parcial do vínculo e o critério de apuração de haveres não transitam em julgado!
É a plena segurança jurídica!
Como se vê, o projeto de Código de Processo Civil, na matéria de dissolução parcial de sociedade é, tal como o inteiro Antiprojeto de Código Comercial, um insulto ao Direito!
Rogo a alguma alma piedosa que faça chegar ao Congresso Nacional os absurdos que os parlamentares estão por aprovar.
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* O presente artigo foi elaborado a partir de considerações apresentadas por Marcelo Vieira von Adamek no painel sobre "Processo Empresarial", ao qual o autor esteve presente, no 3º Congresso Brasileiro de Direito Comercial.
** O autor se escusa antecipadamente pelo tom contundente do artigo, mas o intuito é mesmo o de chamar a atenção para as sandices que querem nos impingir – e estão na iminência de aprovação pelo Congresso Nacional!
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1 Ou será que o direito, previsto no obscuro dispositivo, seria o da sociedade, de obstar o ingresso dos herdeiros?
2 O atual Código Civil, lamentavelmente, não repetiu a regra do art. 20 do Código Civil de 1916 – "As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros" – mas o princípio se deduz, a "ontrario sensu – do art. 50, que prevê a desconsideração da pessoa jurídica, para atingir o patrimônio de seus sócios ou administradores, quando utilizada abusivamente.
3 Grifo nosso.
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