Presenciei as consequências de muitas tragédias, como advogado. Muitas vezes, visitei locais de acidente. Infelizmente, em detrimento ao encanto com a vida, na memória, guardei cenas de crime e de mortos em estado incompatível com a beleza que compõe a integridade física do ser humano.
Não acho que envelheci tanto, nem me parece a desculpa da paternidade suficiente para justificar minha insônia e esse sofrimento que não me abandona. Esse amargo no céu da boca, de quem se sente inconformado. Também, não perdi a fé, a esperança no porvir em outra dimensão.
Na realidade, algumas percepções ordinárias me torturam e me obrigam a desabafar, sem qualquer outra intenção a não ser de falar com outros apaixonados por este país.
Sabemos todos que, em diversas atividades corriqueiras, há negligência. Assistimos desatenção de profissionais, quebra de deveres de cuidado, omissão na conservação de equipamentos, incapacidade técnica de operadores de máquinas, desrespeito a regras administrativas, desconsideração a experiências negativas que tornam reincidentes ocorrências mais do que previsíveis.
Também, sabemos que são, as prefeituras, uma fonte inesgotável de corrupção. Há cancros em diversos setores da administração pública das cidades, sendo evidente que a fiscalização de posturas municipais apresenta-se maneira de arrecadação indevida, sob a desculpa de que seria necessária para fins de campanha e de ideais de partido - pouco importa qual, ou a ideologia.
Aqui e ali, pessoas acabam por admitir que não conseguem se livrar das exigências desses funcionários públicos e sucumbem ao ilícito, até mesmo porque o Judiciário não lhes dá proteção para continuar os negócios e enfrentar o poder da localidade num campo de batalha justo, com prazo e custo razoáveis.
Portanto, o ocorrer dessa tragédia não advém de uma causalidade nova, ou mesmo desconhecida. Mostram-se concausas que conhecemos – conhecemos, porque presenciamos outras similares no nosso bairro, no nosso condomínio, em estabelecimentos nos quais adentramos, os mais variados, ontem e hoje.
Confessemos: o brasileiro - desde o café da manhã na padaria da esquina ao jantar no novíssimo restaurante, inaugurado em região imprópria para tal fim, sem alvará de funcionamento, sem respeito à legislação sanitária – convive, com complacência, com a ilicitude e se autodesculpa, pois a considera pequena perante outras vicissitudes do país.
Fingimos compreender a iniciativa privada e as mazelas do município, num caldo de que assim as coisas são, por origem, por história, por herança jurídica até. Voltamos a Cabral, ou mais generosos, blasfemamos sobre 1808 com a chegada de D. Joao VI et caterva.
Nessa linha do corriqueiro, esperamos o óbvio das notícias desses próximos dias. Mais manifestações emocionadas de autoridades do Executivo. Vereadores, deputados e senadores céleres na apresentação de projetos de lei em pretensa resposta ao que aconteceu. Judiciário eficaz no esquartejamento midiático dos novos bodes expiatórios - e, nesse ponto, não estou a defender quem quer que seja responsável pelo crime.
O tempo vai passar. O assunto há de caminhar ao esquecimento. Isso pode ser logo, inclusive. Vivemos na era digital, da internet e do e-mail, temos de ser rápidos. Mensagens curtas. Essa juventude dos que morreram consome os fatos, o fast food os tornou devoradores do fast thought. Eu sei.
Desculpe, não consigo dormir. Esse Brasil não faz parte do sonho. Não consigo dormir, sem me sentir culpado por não ser mais intransigente com o descuido dos particulares, bem como com a desídia do poder público. Não consigo dormir, pois me sinto culpado pelo país que permitiu o incêndio em Santa Maria.
Eu e você, de certo modo, matamos esses jovens por omissão. Não consigo mais dormir.
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* Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo é advogado do escritório Moraes Pitombo Advogados, é mestre e doutor na USP
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