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Recusa em receber transfusão de sangue

O número de pessoas que chegam aos nosocômios portando o termo pelo qual informam e exigem que não sofram transfusão sangüínea é grande, na sua falta exime a responsabilidade do hospital e do médico por danos sofridos.

29/4/2003

 

Recusa em receber transfusão de sangue – responsabilidade médica e dos hospitais – termo de isenção de responsabilidade

Stanley Martins Frasão

João Pedro da Costa Barros*

1. Versa o presente sobre a relação dos hospitais com a recusa do paciente em receber transfusão de sangue, considerando o crescente número de pessoas que, necessitando de tratamento médico, chegam aos nosocômios portando termo pelo qual informam e exigem que não sofram transfusão sangüínea, eximindo a responsabilidade do hospital e do médico por danos sofridos em virtude de sua falta.

2. Primeiramente, será analisada a recusa do paciente em receber a transfusão de sangue perante o Direito Brasileiro, e o dever dos médicos frente a tal recusa, para após discorrermos sobre a validade de eventual termo de isenção de responsabilidade e, ao final, o procedimento que julgamos conveniente aos hospitais e médicos no atendimento ao grupo de pessoas que se recusam a receber a transfusão de sangue.

I- A conduta médica frente a recusa de receber transfusão sangüínea.

3. Como cediço, há muito suscita polêmica o debate acerca do posicionamento ideológico de pessoas que se recusam a receber transfusão sangüínea, mesmo diante de casos extremos que podem acarretar graves lesões ou morte. Os mais afetados por essa polêmica são, sem sombra de dúvidas, os médicos e as instituições que, em não raros momentos, encontram-se em delicada situação, tendo que optar por uma ou outra atitude, que lhes podem acarretar conseqüências danosas, tanto no aspecto judicial, quanto no aspecto profissional.

4. Sob a ótica do Direito Positivo Brasileiro, tem-se que o presente caso envolve o problema da aplicação de dois princípios constitucionais – direito à vida e direito ao livre pensamento religioso - que, no presente caso, aparentam ser incompatíveis, de forma que, realizada ou não a transfusão, um deles seria obedecido, em exclusão ao outro.

5. A doutrina e a jurisprudência pátrias firmaram posicionamento no sentido de dar primazia ao direito à vida frente aos demais direitos garantidos. Justifica-se afirmando que, sem a vida, os demais direitos garantidos não podem ser exercidos. Só existe personalidade jurídica, essencial para a aquisição de direitos e obrigações às pessoas, se existir vida. Ademais, são também uníssonas ao entender ser o direito à vida indisponível, de modo que a seu titular não é permitido dele abdicar, através de ação ou omissão qualquer.

6. Assim entendido, temos que, o exercício do direito da liberdade de concepção religiosa, inclusive, não pode extremar-se ao ponto de preterir a vida frente a um preceito religioso.

6.1. Tal afirmação não significa, porém, que ao paciente deve sempre ser negado o direito de recusar a transfusão de sangue. Sua concepção religiosa tem que ser ao máximo levada em consideração e respeitada. Tendo o profissional condições de realizar tratamento sem a necessidade de se recorrer à transfusão sangüínea, assim deverá proceder.

6.2. Contudo, ao deparar-se com a necessidade de transfusão de sangue para a preservação da vida do paciente, mesmo contra a vontade deste, deve sim praticá-la. Os médicos e as instituições que prestam serviços médicos têm o dever legal de sempre preservar e salvar vidas, conforme prescreve o Código de Ética Médica, em seus artigos 46, 56 e 57. O próprio Conselho Federal de Medicina já editou resolução a respeito – Resolução 1021/81 – que assim conclui:

"Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis."

7. A conduta acima prescrita, hodiernamente, é aceita por nossa doutrina e jurisprudência, de modo a afastar qualquer ilicitude nesse ato, que ensejaria eventual pleito indenizatório. Afasta-se, outrossim, o crime de Constrangimento Ilegal, tipificado no art. 146 do Código Penal, pois seu próprio § 3º, I, exclui a tipificação da conduta do médico que pratica intervenção necessária para a manutenção da vida do paciente, mesmo sem o consentimento deste. Nossa jurisprudência e doutrina nesse sentido posicionam-se:

"O Direito Penal Brasileiro volta-se para um quadro valorativo. Nesse contexto, oferece particular importância à vida (bem jurídico). Daí ser indisponível (o homem não pode dispor da vida).(...) Em decorrência não configura constrangimento ilegal (...) compelir médico a salvar a vida do paciente de perigo iminente e promover a transfusão de sangue, se cientificamente recomendada para esse fim. Aliás, cumpre fazê-lo, presente a necessidade." ( Voto do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, no Recurso de Habeas Corpus 7785/SP - STJ)"

"Prevê o §3º do art. 146 dois casos de exclusão da antijuricidade. Não há crime quando se trata de intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. O tratamento médico arbitrário é um caso de estado de necessidade em que se viola a liberdade individual para salvar-se a vida do paciente. É perfeitamente admissível a inclusão na hipótese de transfusão de sangue e cirurgia contra a vontade do paciente ou de seu representante legal, ainda que por motivos religiosos, quando há iminente perigo de vida." (Júlio Fabrini Mirabete. Manual de Direito Penal. Parte Especial. Arts. 121 a 234 do CP, pp. 183)

"É possível que um paciente, correndo risco de vida não queira submeter-se à intervenção cirúrgica, determinada por seu médico, seja por que tem medo, seja por que deseja morrer ou por qualquer outra razão. Entretanto, já que a vida é um bem indisponível, a lei fornece autorização para que o médico promova a operação ainda que a contragosto. Não se trata de constrangimento ilegal, tendo em vista a ausência de tipicidade. Como se disse, não houvesse tal dispositivo, ainda assim o médico poderia agir, embora nutrido pelo estado de necessidade, que iria excluir a antijuridicidade." (Guilherme de Souza Nucci. Código Penal Comentado, 2002. pp. 458)

8. No âmbito do Direito Civil, como asseverado, é arredada também qualquer responsabilidade profissional haja vista que, como prescreve o art. 188, I, do Código Civil, não são considerados ilícitos os atos praticados no exercício regular de um direito reconhecido. Com efeito, pois, conforme exposto, o médico que efetua a transfusão de sangue diante de iminente perigo de vida, mesmo contra a vontade do paciente, atua no estrito cumprimento de um dever legal, não lhe podendo ser, sob pena de violação legal, exigida conduta diversa.

8.1. Raul Canal, sobre o tema acima, afirma que:

"se do médico, do ponto de vista terapêutico, de acordo com os conhecimentos científicos atuais, segundo a melhor doutrina, a literatura predominante e a técnica consagrada, não lhe era exigível conduta diferente daquela praticada, não há se falar em responsabilidade por efeito danoso, não há se cogitar culpa e há de se afastar completamente qualquer discussão acerca do dever reparatório."

8.2. Nesse sentido, transcreve-se abaixo o voto do Desembargador Flávio Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão que decidiu por manter sentença que afastava a responsabilização por danos morais de um médico que realizou a transfusão de sangue contra a vontade do seu paciente, quando esta era necessária para manutenção de sua vida:

"Entretanto, em que pesem as convicções religiosas da apelante que, frise-se, lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que o que deve prevalecer, acima de qualquer credo, religião, é o bem maior tutelado pela Constituição, a vida.

(...)É evidente que ao profissional médico é vedado, pautando-se, inclusive, com o disposto no Código de Ética Profissional da categoria, efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento prévio do paciente ou de seu responsável legal. Entretanto essa regra admite exceção, quando o paciente se encontra em iminente risco de morte.

E, no caso dos autos, restou demonstrado pela prova que os médicos que acompanhavam o tratamento a que estava sendo submetida a apelante esgotaram todas as formas alternativas de tratamento contra o mal que a acometia.

E, diante do iminente risco de morte do paciente, outra alternativa não lhes restou senão providenciar transfusão sangüínea, dado a baixa do número de plaquetas do sangue da apelante.

(...) A conduta dos profissionais foi legal e pautou-se dentro, inclusive, do que prescreve o Código de Ética Médica, que, em seus artigos 46, 56 e 57, estabelecem que a obrigação primordial do médico consiste em preservar e salvar vidas, lançando mão de todos os meios necessários, com respeito à vontade do paciente, desde que não se vislumbre iminente perigo de vida." ( TJSP, Apelação Cível 123.430-4/4.00. Rel. Flávio Pinheiro. Julgado em 07/05/2002)

9. Resta claro que o profissional que realiza a transfusão contra a vontade do paciente, desde que seja para preservar ou salvar vida deste, e a instituição na qual ocorre o ato agem no estrito cumprimento de um dever profissional, no exercício regular de um direito, preservando o bem de maior valor para a Constituição da República, de modo que não viola quaisquer normas jurídicas, sejam elas de natureza cível ou penal, não podendo, pois, sofrerem sanções de quaisquer natureza.

II. Da validade do termo de isenção de responsabilidade.

10. Conforme assinalado, o médico, diante da recusa do paciente em receber a transfusão de sangue, deve respeitar esse posicionamento, salvo quando estiver em perigo a vida daquele, quando então tem o dever profissional de utilizar todos os métodos a seu alcance para preservar a vida do mesmo, mesmo que para tal se valha da transfusão sangüínea, sob pena de incorrer em ilícitos administrativos, civis e penais.

11. Dito isso, perante o Direito, um Termo de Isenção de Responsabilidade não desobriga o médico de realizar a transfusão de sangue, nem exime sua responsabilidade caso assim proceda, nos casos de risco de vida, porque, conforme explanado, o médico não só pode realizá-la, como tem o dever profissional de fazê-la, visto ser o direito à vida um bem jurídico indisponível, ao qual não se sobrepõe a vontade individual.

III. Da postura dos Hospitais no atendimento aos clientes que recusam receber a transfusão de sangue.

12. Entendido o dever legal dos médicos e das Instituições Hospitalares frente a recusa do recebimento de transfusão de sangue, é mister que estas últimas adotem postura e conduta única no atendimento a esse grupo de clientes, evitando-se o radicalismo de recusar o atendimento das mesmas, o que pode ensejar sanções administrativas, cíveis e penais por omissão de socorro, homicídio, discriminação, dentre outros, além de causar prejuízo à imagem da instituição.

13. Os hospitais, primeiramente, devem sempre ter como regra a Resolução 1021/81, do Conselho Federal de Medicina, que ordena que a transfusão de sangue seja realizada toda vez que esteja em risco a vida do paciente, ressalvando que expedientes alternativos à transfusão sejam utilizados quando possível, em respeito à vontade do paciente.

13.1. Assim sendo, convém aos hospitais definirem a sua capacidade de oferecer expedientes alternativos à transfusão de sangue, para que, em contato com o paciente, possa sempre informá-lo da possibilidade ou não de serem utilizados, em preferência à transfusão.

14. Os pacientes, todavia, devem ser expressamente comunicados de que a transfusão de sangue será realizada, se for esse o expediente necessário para a preservação e proteção de sua vida, informado também que assim proceder-se-á em respeito as normas constitucionais e profissionais pertinentes, a fim de se evitar futuras sanções.

14.1. Caso o paciente não concorde com o posicionamento, entendemos caber ao mesmo buscar na justiça o direito de não receber a transfusão, sendo que, somente através dessa, o médico não realizará a transfusão.

IV. Conclusão.

15. Diante do exposto, para que os pacientes sejam atendidos de conformidade com as disposições legais e a ética profissional, recomendamos que:

  1. no Contrato de Prestação de Serviços seja incluída cláusula informando que a transfusão de sangue, se necessário for, sempre será realizada para preservar e proteger a vida do paciente, mesmo contra a vontade deste;
  2. que a Cláusula acima seja sempre informada ao paciente, quando da entrada deste no hospital, e sempre quando a recusa for discutida entre médico e o paciente ou de seu representante;
  3. que, não concordando o paciente com esta cláusula, que busque na justiça o direito de não receber a transfusão, sendo informado que só através de decisão judicial nesse sentido o Hospital deixará de realizar a transfusão, quando necessária para a proteção da vida do paciente.

16. É o nosso posicionamento, s.m.j.

__________________

*escritório Homero Costa Advogados.

 

 

 

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