Esse capítulo reproduz em boa parte a estrutura de um capítulo homônimo da lei anterior. A bem da verdade, a maior parte dos artigos processuais da lei antiga foram repetidos, ipsis litteris, pela nova lei. A atual legislação também (i) estabelece que a decisão do plenário aplicando multa é título executivo extrajudicial; (ii) fixa critérios de competência; (iii) firma a possibilidade de imposição de medidas de apoio (multa diária, por exemplo) e a prevalência da tutela específica (obrigações de fazer ou não fazer) sobre a indenizatória; (iv) determina que o ajuizamento de embargos à execução ou ação que procure desconstituir a decisão do Cade não terá efeito suspensivo, a menos que seja prestada caução; e (v) impõe a prioridade de tramitação das execuções de decisões do Cade sobre as demais ações, com exceção de habeas corpus e mandado de segurança. Até aqui, nenhuma novidade. Salvo pequenas alterações de redação, todos esses dispositivos foram replicados da legislação revogada. E mais: a rigor, a maior parte deles nem precisaria constar da lei específica, pois já decorrem do Código de Processo Civil.
O que chama mesmo a atenção na nova lei é a parte final do § 4º do art. 98, assim redigido: "Na ação que tenha por objeto decisão do Cade, o autor deverá deduzir todas as questões de fato e de direito, sob pena de preclusão consumativa, reputando-se deduzidas todas as alegações que poderia deduzir em favor do acolhimento do pedido, não podendo o mesmo pedido ser deduzido sob diferentes causas de pedir em ações distintas, salvo em relação a fatos supervenientes". O que a parte final desse dispositivo pretende instituir é a proibição de que, uma vez rejeitado o pedido de desconstituição da decisão do Cade, seja o mesmo pedido deduzido sob diferentes causas de pedir em ações distintas, salvo em relação a fatos supervenientes. Contudo, ao menos numa análise inicial, esse dispositivo é flagrantemente inconstitucional.
Uma ação é composta por três elementos: partes, pedido e causa de pedir. É a partir desses três elementos que se individualiza uma ação. Isso é essencial para que se resolvam questões relativas a coisa julgada, litispendência, cumulação e alteração de demandas. É com base na identificação de ações que, por exemplo, o Código de Processo Civil determina a extinção de uma ação idêntica a uma já proposta (litispendência) ou de uma idêntica a uma já julgada definitivamente (coisa julgada). Se o Judiciário já se pronunciou sobre aquela ação ou se ainda vai se pronunciar sobre ela, não há motivo em se permitir duplicidade de julgamentos. Essa é a lógica que determina a extinção do processo em razão de litispendência ou coisa julgada: impedir julgamentos sobre ações idênticas. Firmado isso, logo se conclui que, se uma ação é composta por 3 elementos e alteramos qualquer um deles (pedido ou causa de pedir, por exemplo), estaremos diante de uma nova ação e, portanto, não há litispendência ou coisa julgada. Não há, logo, nenhum óbice à apreciação dessa segunda e diversa ação.
Com base nisso é que afirmamos que a parte final do § 4º do art. 98 da nova lei do Cade é evidentemente inconstitucional. A lei não pode restringir a propositura de ação anulatória que contenha o mesmo pedido mas causa de pedir diversa de ação que está em curso ou que já foi julgada. O pedido principal de uma ação anulatória será sempre o mesmo: anulação de um ato jurídico. O que pode variar são os fundamentos da ação, isto é, a causa de pedir. Mas, como visto, quando se modifica o fundamento, se altera a própria ação. Por exemplo, ninguém há de negar que uma ação que peça a anulação da decisão do Cade por conta de corrupção é radicalmente diversa de uma ação que pede a mesma anulação só que em decorrência de inexistência de infração à ordem econômica. Como, portanto, poderia a lei restringir a apreciação da segunda ação, se esta é completamente diversa da primeira? A resposta é: não pode.
Não existem direitos absolutos e essa regra vale também para o direito de ação, que assegura ao cidadão o acesso ao Poder Judiciário. Esse direito pode ser limitado pela lei, desde que por fundamentos legítimos. A parte final do § 4º do art. 98 da nova lei do Cade não invoca fundamento legítimo e, portanto, viola o art. 5º, XXXV da Constituição Federal ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"). Por isso, caso não haja o reconhecimento de inconstitucionalidade em sede de controle concentrado (ação direta), nossos magistrados deverão declará-la incidentalmente.
__________
* Guilherme Setoguti J. Pereira é advogado do escritório Yarshell, Mateucci e Camargo Advogados
__________