Nelson Eizirik
Cláusula compromissória estatutária – A arbitragem na companhia
A arbitragem constitui uma forma extrajudicial de resolução de conflitos que ocorre mediante a outorga de competência, pela vontade das partes, a um terceiro que resolverá definitivamente o litígio que lhe foi submetido, quando este envolver direito patrimonial disponível. Da mesma forma que a jurisdição exercida pelo Estado, a arbitragem goza, no Direito brasileiro, de características próprias da jurisdição: a substitutividade da vontade das partes, a inércia e a definitividade.
A competência conferida ao árbitro decorre da vontade das partes, manifestada na forma de convenção de arbitragem. A via arbitral difere da jurisdição estatal quanto às características da inafastabilidade, da inevitabilidade e da indelegabilidade.
Ainda que se possa discutir a natureza jurídica da arbitragem – se contrato, pois o poder de decidir do árbitro é corolário da autonomia da vontade das partes, ou se jurisdição, em virtude da resolução definitiva da controvérsia –, segundo a lei 9.307/96 (clique aqui), a arbitragem revela inegáveis contornos jurisdicionais, uma vez que: (i) o árbitro é equiparado ao juiz de fato e de direito e (ii) ao laudo arbitral é atribuída a força de sentença.
A arbitragem usualmente apresenta algumas vantagens em relação à jurisdição estatal, especialmente nos litígios de natureza comercial, os quais, em regra, envolvem direito patrimonial disponível – um dos pressupostos para regular a formação do juízo arbitral. Dentre tais vantagens, podem ser citadas a agilidade e a informalidade na resolução da controvérsia, a especialização do julgador e a confidencialidade do processo.
Especificamente quanto aos litígios societários, a arbitragem pode propiciar a permanência da harmonia nas relações entre os sócios, em virtude de ser um meio de solução de controvérsias reconhecidamente menos litigioso que a jurisdição estatal. Com efeito, a arbitragem guarda um elemento cooperativo, o que auxilia a conservação de outras relações jurídicas não controversas existentes entre as partes.
Visando a dar concreção e viabilidade à instauração do juízo arbitral, é recomendável que a câmara arbitral seja indicada na cláusula estatutária, mediante a chamada "cláusula compromissória cheia". Tal cláusula torna inquestionável a competência da câmara e evita discussões que podem inviabilizar, na prática, a solução do conflito pela via arbitral.
Ainda que os atributos da arbitragem sejam reconhecidos como boas práticas da chamada "governança corporativa" para resolver litígios interna corporis, nem todas as companhias, mesmo as abertas, têm adotado a arbitragem em seus estatutos sociais. No mesmo sentido, verifica-se no direito comparado uma utilização da via arbitral preponderantemente para a solução dos litígios em sociedades de caráter personalista, onde a figura do sócio é mais visível, prevalecendo sobre o caráter capitalista.
Essa preponderância da arbitragem em sociedades marcadas pelo caráter pessoal tem uma razão: a vinculação à cláusula compromissória estatutária é muito mais clara, prescindindo, na maior parte das vezes, de uma pesquisa sobre a real manifestação de vontade quanto à adesão ao pacto arbitral. Como o número de sócios é menor e a sua condição pessoal, em regra, foi considerada ao admiti-los na sociedade, a negociação para a inclusão da cláusula e a ciência de sua existência no estatuto pode ser mais facilmente provada. A propósito, vale observar que a reforma do direito societário italiano, ocorrida em 2003, mediante a qual se incluiu um título sobre a convenção de arbitragem em atos constitutivos de sociedades, expressamente excluiu aquelas que recorrem ao mercado de capitais.
A reforma da legislação italiana demonstra como a manifestação de vontade para a submissão à arbitragem inserida em estatuto social demanda cautela. Mesmo com a arbitragem só podendo ser adotada por sociedades fechadas, foram previstos quorum qualificado para a deliberação de sua inclusão e direito de recesso para quem dela dissente.
As 2 (duas) principais discussões sobre arbitragem em Direito Societário são: a arbitrabilidade objetiva, ou ratione materiae, que consiste em verificar que matérias podem ser objeto de arbitragem; e a arbitrabilidade subjetiva, ou ratione personae, que consiste na identificação das pessoas que estão sujeitas à cláusula compromissória estatutária.
Com relação à arbitrabilidade objetiva, a lei 9.307/96 estabeleceu que podem ser dirimidas pela via arbitral questões relativas a "direitos patrimoniais disponíveis". No mesmo sentido, dispõe o Código Civil (clique aqui) ser vedado o compromisso para solução de conflitos de Estado, de direito pessoal de família e de outros que não tenham caráter estritamente patrimonial.
Embora não exista uniformidade no Direito Comparado no tratamento da matéria, o sistema jurídico brasileiro adotou os critérios da patrimonialidade e da disponibilidade para a definição da arbitrabilidade objetiva. Ou seja, conflitos envolvendo direitos com conteúdo patrimonial e que podem ser objeto de disposição por parte de seu titular são passíveis de solução pela via arbitral.
A disponibilidade do Direito caracteriza-se pela suficiência da vontade do titular do patrimônio para dele dispor com exclusividade, pois nele não se mesclam outros interesses que não os dele próprio.
A incidência de norma de ordem pública sobre a matéria não impede a utilização da arbitragem, uma vez que o árbitro, da mesma forma que ocorre com o juiz, submete-se à ordem pública. Assim, por exemplo, se a lei das S.A. não permite que um órgão, criado pelo estatuto, se substitua nas atribuições conferidas aos órgãos nela previstos (artigo 139), o árbitro estará obrigado a dar cumprimento ao mandamento da norma imperativa, reconhecendo como nulas as cláusulas estatutárias que disponham em sentido contrário à lei das S.A.
Como o objetivo principal das companhias é a produção de lucros e a sua repartição entre os acionistas, em princípio todas as questões societárias referem-se a direitos patrimoniais. Nem todos eles, porém, são disponíveis no âmbito da companhia, uma vez que podem abranger direitos de terceiros, não vinculados à cláusula compromissória estatutária, como pode ocorrer, por exemplo, em conflito envolvendo operação de incorporação de uma companhia por outra.
Pode-se entender como arbitráveis todas as questões relacionadas às decisões de assembleias gerais, uma vez que tratam de direitos que não só caracterizam-se como patrimoniais, como, também, são disponíveis no âmbito interno da companhia. Assim, todas as matérias que podem ser validamente decididas pela companhia são arbitráveis, pois se referem à sua autonomia privada.
O direito de voto, embora tido como "político", apresenta uma natureza patrimonial, já que, além de consistir em atributo que acrescenta valor à ação, usualmente é exercido tendo em vista os interesses do acionista na eficiência da gestão empresarial, que redundará na maior geração de lucros. Ao exercer o seu direito de voto, não está o acionista, em princípio, cumprindo um dever de cidadania, mas visando à otimização do retorno de seu investimento. Daí decorre a arbitrabilidade de questões ligadas ao direito de voto, como são, por exemplo, aquelas relacionadas ao seu exercício em situações de conflitos de interesse ou de abuso do poder de controle.
Com a adoção do princípio de que são arbitráveis todas as questões que podem ser decididas por assembleia geral, e levando-se em conta que o árbitro pode aplicar normas de caráter imperativo, admite-se, por exemplo, a arbitrabilidade de: impugnação de decisão de assembleia geral; impugnação de decisão de outros órgãos societários, como o conselho de administração, a diretoria e o conselho fiscal; conflitos ligados ao exercício do direito de recesso; interpretação de cláusulas estatutárias; questões relacionadas ao pagamento de dividendos; operações de reestruturação societária, resguardados os direitos de terceiros. Também podem ser objeto de arbitragem litígios envolvendo o ressarcimento de perdas e danos sofridos por acionistas minoritários em decorrência do exercício abusivo do poder de controle e de atos ilegais da companhia.
Embora a lei das S.A. mencione apenas as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre acionistas controladores e os minoritários, nada impede que o estatuto social relacione outros conflitos como passíveis de solução mediante a via arbitral. Assim, eventuais divergências entre integrantes do mesmo bloco de controle ou entre 2 (dois) grupos de acionistas minoritários, ou entre administradores e acionistas, ou entre o conselho de administração e o conselho fiscal, ou mesmo entre membros de um mesmo órgão de administração, desde que exista previsão expressa no estatuto, poderão ser objeto de arbitragem. O dispositivo legal deve ser interpretado tendo em vista o princípio favor arbitratis: se os acionistas decidiram submeter determinados litígios à arbitragem, mediante cláusula compromissória estatutária, tal vontade deve ser respeitada.
A arbitrabilidade subjetiva no âmbito societário refere-se à identificação daqueles que estão vinculados à cláusula compromissória estatutária.
Um dos maiores problemas para a utilização da arbitragem em matéria societária diz respeito ao consentimento, à exposição da vontade em subtrair da apreciação judicial os litígios que venham a surgir com outros acionistas ou com a sociedade.
A própria lei de arbitragem requer dos contratantes a observância de um requisito formal para a cláusula compromissória: a necessidade de ela ser por escrito. O elemento volitivo, como fundamento da competência dos árbitros, deve estar presente para legitimar o processo arbitral, uma vez que compreende uma renúncia à jurisdição estatal. Diversamente da regra geral dos contratos, que podem ser celebrados sem a forma escrita, a arbitragem necessita de clareza para ser convencionada.
Quando a cláusula compromissória estiver incluída no estatuto social na constituição da companhia, inequivocamente vincula todos os acionistas fundadores.
Os acionistas que posteriormente subscrevem ou adquirem ações da companhia também se vinculam à cláusula compromissória, que integra o elenco de direitos e deveres dos acionistas, na medida em que aderem a um contrato organizativo, em todas as suas cláusulas.
Ainda que não tenham consentido expressamente com a cláusula compromissória, ao subscrever, comprar ou receber as ações, sob qualquer modalidade, estão tais acionistas praticando ato de ratificação do estatuto social e concordando tacitamente com os seus termos.
Tal ocorre, por exemplo, tanto quando a condição de acionista é adquirida em consequência da subscrição de ações em aumento de capital como no caso em que se dá mediante a compra das ações no mercado. Nessa última hipótese, a novação subjetiva na pessoa do acionista provoca uma sub-rogação, produzindo a vinculação do novo acionista à cláusula compromissória.
A questão torna-se mais complexa quando se delibera alterar o estatuto social para incluir a cláusula compromissória. Estariam vinculados automaticamente todos os acionistas, inclusive os que expressamente discordarem da deliberação?
Vale observar que não se pode imputar à cláusula de arbitragem tratamento jurídico idêntico ao dispensado às outras cláusulas constantes do estatuto social, as quais impõem-se obrigatoriamente a todos os acionistas, mesmo os discordantes, gozando de caráter mandatório. Tendo em vista que a legitimidade da arbitragem repousa no princípio fundamental da autonomia da vontade, não se pode obrigar os acionistas que expressamente votaram contra a inclusão de cláusula compromissória no estatuto. Com efeito, se o acionista manifesta-se no sentido de que não quer ter a solução de conflitos futuros submetidos à arbitragem, evidentemente não cabe a imposição do juízo arbitral, cujo principal fundamento de validade repousa na manifestação de vontade das partes.
Estarão vinculados à cláusula compromissória estatutária todos os demais acionistas: os que votaram favoravelmente, os que se abstiveram e os que não compareceram à assembleia. Os acionistas titulares de ações preferenciais que não se manifestaram na assembleia geral contrariamente à cláusula compromissória, ou a ela não compareceram, estarão vinculados ao compromisso arbitral. Recomenda-se, portanto, fazer constar essa orientação do edital de convocação da assembleia geral.
Com efeito, não cabe exigir, sob pena de se negar ao estatuto social o caráter de contrato organizativo, a aprovação expressa de todos os acionistas para a cláusula compromissória.
A prática vem demonstrando que a arbitragem apresenta inúmeras vantagens sobre o contencioso judicial, particularmente no Direito Societário, que demanda soluções rápidas e tecnicamente consistentes. A solução aqui preconizada concilia a necessidade de ser preservada a vontade das partes com a possibilidade de utilização crescente e segura da arbitragem na solução dos conflitos societários.
Há manifestações, majoritárias na doutrina, propugnando que a regra geral da prevalência da deliberação majoritária não deve ser excepcionada no caso de decisão de inclusão de cláusula compromissória estatutária, sob o argumento de que a arbitragem estatutária não representa uma situação especial que comporte tratamento jurídico diferenciado das outras relações jurídicas privadas onde a cláusula possa ser encontrada.
A solução do direito italiano deveria inspirar nosso legislador, permitindo a inclusão de cláusula compromissória no estatuto, porém conferindo aos dissidentes o direito de recesso. Em tal sistema, a cláusula vincula a todos, menos aos que manifestarem o seu desejo de retirada, mediante o recebimento do valor de suas ações. Presume-se que os acionistas remanescentes não se opõem à alteração do estatuto, vinculando-se, portanto, à cláusula compromissória.
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*Nelson Eizirik é sócio do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados
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