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O justo e o legal

O silogismo de Kelsen de que justo é aquilo que deriva da lei não pode ser compreendido em interpretação puramente literal, mas deve ser submetido à hermenêutica apta a possibilitar o verdadeiro sentido da expressão.

27/7/2005

O justo e o legal


Antonio Pessoa Cardoso*

O silogismo de Kelsen de que justo é aquilo que deriva da lei não pode ser compreendido em interpretação puramente literal, mas deve ser submetido à hermenêutica apta a possibilitar o verdadeiro sentido da expressão. Prefiro procurar o real significado de outra assertiva: legal é o que deriva do justo. As constantes mudanças das leis prestam-se para adequá-las à imutabilidade do Direito e da Justiça.

Os mestres ensinam-nos que a lei é, de início, constitucional, porque originada de autênticos procuradores do povo; na lei está todo o Direito, mas o Direito não se resume à lei, pois esta é prioritária, mas não monopolizadora do bem e do mau. Já se disse que há leis monstruosas e leis tolas; há leis inadmitidas pela sociedade, denominadas, no linguajar popular, lei que não pegou; há leis constitucionais em parte ou leis inconstitucionais; há leis justas e leis injustas.

Compete ao julgador, em cada caso que lhe chega para decisão, apreciar a vulnerabilidade da lei e aplicá-las na medida de sua justeza. A sociedade reclama juizes vivos, que pensam, porque a lei foi pensada para determinado momento que pode ou não prolongar-se. Seria monstruoso e constituiria tolice exigir-se que os tribunais aplicassem a lei tal como foram editadas, pois o uso automático e mecânico da lei agrada aos tecnocratas, porque defensores do uso da máquina que não pensa, dos números que não sentem e da burocracia que não vê.

A jurisprudência também é fonte do direito, portanto responsável por não ser monolítico o sistema, emprestando assim significação singular às decisões do homem que pensa, que sente e que vê.

Em tempos remotos, era legal queimar os judeus em praça pública, mas o ato era justo? Em alguns países do Oriente, é legal decepar a mão de quem rouba, mas é justo o procedimento? No Brasil antigo, era legal a propriedade dos senhores feudais sobre os escravos a ponto de açoitá-los em praça pública, mas era justo este posicionamento?

Por critério objetivo e legal considera-se incapaz penalmente o menor de 18 anos. Neste caso, o legislador não acompanhou as mudanças dos tempos, a transformação da sociedade de rural para urbana. A lei foi aprovada em época na qual o menor de 18 anos era inocente, sem cultura e sem experiência de vida, diferentemente dos tempos modernos, quando o jovem, nessa idade, não é inocente, tem cultura e experiência para discernir o certo e o errado. Ademais, a lei privilegia o filho do abastado da grande cidade que é tratado igual ao filho do homem da roça, imaturo, analfabeto e residente na zona rural, sem o progresso que desfruta o primeiro. As pesquisas mostram a descrença do povo nos seus representantes: O IBOPE apontou 80% dos entrevistados afirmando que “no Brasil, as leis só existem para os pobres”.

Alípio Silveira, em “O Papel do Juiz na Aplicação da Lei”, cita Hans Reichel, da Universidade de Hamburgo:

“Por detrás da lei e do Estado, estão o Direito e a própria sociedade, que nem sempre encontram nos primeiros, adequada e completa expressão. O Juiz só deve, é certo, a seu Estado e à lei; porém também se deve à sociedade e ao Direito. A obediência à lei é um predicado da constituição social, da natureza do homem e da lei. Porém essa obediência há de ser racional, inteligente e não cega. A Lei e o Direito não se identificam, não são termos que se absorvam nem se excluam; há muito mais Direito do que aquele escrito na Lei; o monopólio da produção jurídica a favor exclusivamente do poder legislativo, está em crise; dentro da lei ou além da lei, há direito que nela não está especificado nem pode estar”.

A superioridade conferida ao Estado em detrimento do cidadão proporcionou vantagens e privilégios às autoridades maiores e ao poder público. Os governantes não se satisfazem com o poder dentro das limitações constitucionais e buscam aumento dos meios de dominação, processo aparentemente compensado pela democratização das instituições. O Estado tem hoje controle da vida do cidadão em todas as áreas, quer econômica ou mesmo íntima, mas a recíproca não é verdadeira, porque a autoridade pública esconde-se sob o manto do poder e torna-se turva e sem a transparência exigida. Os filósofos já diziam que “a sociedade se baseia na alienação da vontade individual”, para legislar.

Bem verdade, que a presença do Estado é reclamada para organizar toda a estrutura social da sociedade, inclusive para impedir as desigualdades sociais, mas a incapacidade do Estado-legislador, do Estado-administrador e do Estado-justiça faz aparecer para o cidadão comum a descrença e a certeza de que está desprotegido. O Estado-legislador legisla em causa própria ou atende a outras ponderações que não a do bem estar social, por motivações que não vale a pena aqui serem explicitadas; o Estado-administrador dilapida o patrimônio do povo, não cuida do seu bem-estar social e econômico e invade a competência dos outros poderes; o Estado-justiça, que recebeu isoladamente o dever-poder de aplicar as leis aos casos concretos, solucionando os desentendimentos entre os cidadãos, objetivando a paz social, não consegue atender a estes anseios da comunidade, por exemplo, quando o Estado-administrador descumpre as leis ou as decisões judiciais sob as mais variadas explicações: dificuldades econômicas, precatórias, medidas provisórias, etc.

O certo é que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário prestam-se como voz da sociedade, apesar de, em algum momento, fraudarem a vontade do povo; entretanto, o Estado-justiça, através do Juiz, obriga-se a ser inteligente, a ter a capacidade de pensar e impedir a continuidade da fraude, pois diferentemente dos outros poderes é formado e sabatinado pelos seus conhecimentos e não pela simpatia de suas promessas e seus gestos. Não se prega um Judiciário contra a legislação, mas a sociedade reclama justiça antes da lei.

A lei já não é feita pelo parlamento, onde teoricamente há representantes de todas as camadas sociais, mas trabalhada por tecnocratas, desvestidos de qualquer responsabilidade social, vinculados apenas a princípios econômicos; a lei, como se disse, não mais é fruto da vontade popular (parlamento), mas resultado da cessão de convicções na busca da unidade. Frequentemente deixa-se de legislar porque não se encontra o entendimento entre os legisladores. O Código Civil em vigor permaneceu nas gavetas e nos armários esperando a uniformidade que atrasou por chegar; a reforma do judiciário ficou por mais de uma década sem definição; quando se encontra a unidade de entendimento, - o Código Civil, a reforma do judiciário e tantas outras leis – são desfiguradas porque seguem recomendação dos tecno-burocratas; são leis que nascem viciadas.

O Estado-juiz, que nunca pode deixar de dizer o direito, na omissão do legislador ou na edição de lei mal concluída, é convocado para interpretar e decidir; afinal o julgamento faz parte da dignidade do homem, e o julgador é obrigado a buscar o processo, a sala de audiência para aproximar-se da realidade, mesmo com os obstáculos que outros profissionais não deparam. O juiz que deveria ser “a boca da lei”, na expressão de Montesquieu, serve-se da lei, na medida em que ela atende ao clamor popular de justiça e de direito; obriga-se a completá-la, quando produto mal acabado, “lei descartável não é lei respeitada”; a legislar, quando omissa sobre a matéria concreta. Neste encargo, o juiz não pode ser um militante hipnótico do Estado, aparentando falsa convicção nos seus julgamentos, mas deve ser um intérprete fiel dos sentimentos de justiça que lhe impõe a consciência.

Alexandre Hamilton dizia que a justiça “não tem influência sobre a espada nem sobre o bolso; não pode controlar a força nem a riqueza de uma sociedade, como também não pode assumir qualquer iniciativa”. Mesmo assim, as autoridades, que tem o controle das armas, da economia e da edição das leis, recebem o poder para administrar e para legislar, através do Estado-juiz, responsável maior pela constituição da autoridade no Estado.

O Estado-juiz decide desentendimentos entre cidadãos, mantém o patrimônio com um e tira do outro, dá razão a um e tira a razão do outro; procede-se através de requerimentos, de queixas, de petições, mas nas demandas envolvem interesses de pessoas, que sofrem, alegram-se, passam por fortes emoções, enfim, sentem. É motivo para emprestar sua convicção, sua consciência no sentido da lei, pois a dinâmica dos sentimentos humanos influem na tomada das decisões judiciais.

Eduardo J. Couture ensina que:

“O juiz é uma partícula de substância humana que vive e se move dentro do processo. E se essa partícula de substância humana tem dignidade e hierarquia espiritual, o direito terá dignidade e hierarquia espiritual. Mas se o juiz, como homem, cede ante suas debilidades, o direito cederá em sua última e definitiva revelação”.

“Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e, num momento histórico determinados, o que valham os juizes como homens”.

Tristão de Athayde, pensador católico, dizia que quando o juiz deixa de aplicar a literalidade da lei com todo o seu rigor, por circunstâncias fáticas, não ofende a lei, mas cumpre-a em seu espírito e em sua equidade.

Pontes de Miranda afirma que o juiz é subordinado ao Direito e não à lei, porque possível a lei contra o Direito e nesta busca de Justiça constitui poder-dever de o juiz repensar a jurisprudência.
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*Juiz em Salvador






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