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Da legitimidade passiva na ação de dissolução de sociedade limitada

O objetivo imediato da ação de dissolução de sociedade limitada, seja ela total, seja ela parcial, é a extinção da pessoa jurídica dissolvenda: relativamente a todos os sócios, no primeiro caso; ou em relação a um ou alguns de seus integrantes, no segundo.

24/1/2011

Da legitimidade passiva na ação de dissolução de sociedade limitada

Stanley Martins Frasão*

Ricardo Victor Gazzi Salum**

Stefano Naves Boglione***

O objetivo imediato da ação de dissolução de sociedade limitada, seja ela total, seja ela parcial, é a extinção da pessoa jurídica dissolvenda: relativamente a todos os sócios, no primeiro caso; ou em relação a um ou alguns de seus integrantes, no segundo.

Em ambos as hipóteses, a finalidade mediata do procedimento, isto é, o fim alcançado ulteriormente à prolação do provimento jurisdicional terminativo-definitivo, é a efetiva apuração e o consequente pagamento dos haveres dos sócios, na proporção de suas quotas.

O imbróglio quanto à ação de dissolução de sociedade limitada surge quando se põe em análise a legitimação passiva para esse tipo de procedimento.

O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em precedente de relatoria do Eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito1, firmou entendimento no sentido de que a legitimidade passiva, nas ações de dissolução de sociedade limitada, seria de todos os sócios remanescentes. Confira-se:

Dissolução de sociedade. Participação dos sócios remanescentes como litisconsortes passivos necessários. Ausência de litisconsórcio passivo necessário em relação à sociedade. Precedentes da Corte. 1. Dúvida não há na jurisprudência da Corte sobre a necessidade de citação de todos os sócios remanescentes como litisconsortes passivos necessários na ação de dissolução de sociedade. 2. Embora gerasse controvérsia entre as Turmas que compõem a Seção de Direito Privado desta Corte, a Terceira Turma tem assentado que não tem a sociedade por quotas de responsabilidade limitada qualidade de litisconsorte passivo necessário, podendo, todavia, integrar o feito se assim o desejar. 3. Recurso especial conhecido e provido.

O precedente do Egrégio STJ possui como argumento central a possibilidade de se modificar a estrutura jurídica da sociedade, o que deixaria clara a necessidade de se chamar todos os sócios ao feito.

Ainda segundo o entendimento da Colenda Corte Superior, a citação da própria pessoa jurídica dissolvenda seria mera faculdade do autor da ação, representando demasia formalística a sua compulsória qualificação no processo, em que, em tese, já figurariam todos os sócios no polo passivo.

Entretanto, com o devido respeito à memória do Eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, a permanecer o citado entendimento firmado pelo Egrégio STJ, é muito provável que ocorra grave inconsistência – e até mesmo nulidade - no deslinde da ação de dissolução de sociedade, se esta não contar com a pessoa jurídica dissolvenda, obrigatoriamente, em seu polo passivo.

De fato, para que haja legitimação, é necessário que exista uma relação de adequação entre o sujeito e a causa, como, aliás, alertam os artigos 3º2 e 6º3, do Código de Processo Civil (clique aqui).

A esse respeito, assevera Arruda Alvim4 que a legitimação se traduz na necessidade de verificar se o autor é o possível titular do direito pretendido por meio da ação; e, de outro lado, se o réu é aquele que juridicamente, procedente a ação, sujeitar-se-á aos efeitos da sentença.

Com efeito, sob esse ângulo, é evidente que a sociedade dissolvenda, e somente ela, é quem responderá pelo pagamento dos eventuais haveres apurados em favor do(s) sócio(s) retirante(s).

Também na mesma linha, vale citar a lição de Sérgio Campinho5, que bem traça o histórico da discussão no próprio Egrégio Superior Tribunal de Justiça e sua pacificação no sentido de que é necessário que a sociedade figure no polo passivo da ação de dissolução:

Na ação de dissolução da sociedade, seja ela total ou parcial, urge fixar quem deverá ocupar o pólo passivo da demanda.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por sua 8ª Câmara Cível, na apreciação da apelação cível nº 2.037/88, entendeu, por unanimidade de votos, que 'no caso de dissolução de sociedade a legitimidade passiva é dos demais sócios e não da sociedade'.

Em sentido diverso decidiu a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento unânime do agravo de instrumento nº 91.289-2, pontuando o opinamento de que 'na dissolução de sociedade, total ou parcial, e na apuração de haveres de sócio, a legitimidade processual passiva é da sociedade e dos sócios remanescentes, em litisconsórcio necessário, em face do legítimo interesse de todos eles'.

A divergência de orientação chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que se manteve, ao menos num primeiro momento, instável quanto à adoção das teses jurídicas em questão.

Em votação unânime no Recurso Especial nº 39.197-0, a sua 3ª Turma espelhou convencimento de que 'a sociedade por quotas de responsabilidade limitada não é litisconsorte passiva necessária na ação de sua dissolução'.

Diversamente orientou-se a sua 4ª Turma, a qual, por unanimidade, no julgamento do Recurso Especial nº 77.122 – PR, assentou que 'a ação de dissolução parcial deve ser promovida pelo sócio retirante contra a sociedade e os sócios remanescentes, em litisconsórcio necessário'.

Posteriormente, a própria 3ª Turma, no julgamento do Recurso Especial nº 44.132-SP atestou que: 'Embora a pretensão de retirada de sócio, enquanto envolve modificação do contrato, só possa ser atendida pelos remanescentes, o certo é que o pagamento dos haveres far-se-á com patrimônio da sociedade. Justifica-se sua presença no processo'.

Temos que o melhor posicionamento é o de considerar na ação de dissolução total ou parcial da sociedade, bem como na ação de apuração de haveres, a pessoa jurídica e os sócios como litisconsortes necessários (CPC, artigo 47).

Formando-se a sociedade por contrato, restas claro que os sócios devem estar a figurar no pólo passivo da demanda, até porque não podem ficar alheios ao que possa vir a afetá-los.

Mas certo também é que a sociedade deve estar presente no feito, visto que as relações jurídicas se estabelecem não somente entre os sócios, mas também entre eles e a sociedade, que tem personalidade jurídica própria. A sociedade será diretamente afetada em sua estrutura, devendo assim manifestar-se na ação. No pedido de dissolução total será a pessoa jurídica quem será dissolvida e na dissolução parcial será ela também quem será parcialmente desfeita. Ademais, os haveres do sócio que se despediu ou foi excluído do corpo social constituem crédito deste em face da sociedade. Será ela quem, na fase de execução, deverá ser compelida a pagá-los.

Desse modo, não vemos como a sociedade, que tem existência distinta da de seus membros, possa ficar alijada de demanda em que, pela natureza da relação jurídica estabelecida entre ela e os sócios, sofrerá diretamente os efeitos jurídicos da decisão. (G.n.)

Como aludiu o ilustre doutrinador, há verdadeiro litisconsórcio necessário entre a sociedade e seus sócios, o que, nos termos do artigo 47, do CPC, torna nula a sentença proferida sem a participação de um deles.

Vale trazer precedente do Egrégio Supremo Tribunal Federal a respeito do tema:

"O litisconsórcio necessário tem lugar se a decisão da causa propende a acarretar obrigação direta para o terceiro, a prejudicá-lo ou a afetar seu direito subjetivo" (STF – RT 594/248)

Também nesse norte, vale trazer precedente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

"É indispensável a presença no polo passivo da ação do terceiro eventualmente atingido em sua esfera jurídica pelo provimento jurisdicional". (STJ – 4ª T., Resp 965.933. Min. João Otávio, j. 25.3.08, DJU 5.5.08)

Não se afigura plausível, nem tampouco legítimo, que o polo passivo de ação de dissolução de sociedade seja integrado exclusivamente pelos demais sócios da pessoa jurídica dissolvida.

Primeiro, porque a sociedade deve exercer seu direito à ampla defesa e ao contraditório, para proteger os seus interesses; segundo, e neste caso o mais importante, porque a pessoa jurídica sofrerá, diretamente, os reflexos da decisão, inclusive com a redução do capital social.

Nessa linha, leciona também Samantha Lopes Alvares6 que "(...) o resultado da ação de dissolução atingirá em cheio a sociedade, que tem personalidade jurídica completamente distinta da de seus sócios, provocando-lhe a dissolução e consequente extinção, tolhendo-a do mundo fático e jurídico"7.

Mais especificamente no caso de dissolução parcial, Priscila Fonseca8 ensina que "o decisum, ao ordenar o pagamento dos haveres devidos ao retirante, produzirá reflexos diretos sobre o patrimônio da sociedade, pois é dele que se extrairá o montante necessário para aquela finalidade. Daí porque a sociedade, obrigatoriamente, deverá integrar a lide, em litisconsórcio necessário, com todos os demais sócios" (g.n.).

Os Tribunais pátrios já firmaram entendimento no sentido de que a figuração da sociedade dissolvenda no polo passivo da respectiva ação de dissolução é medida cogente, sob pena de nulidade do feito.

Confira-se o entendimento uníssono do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

LIMITADA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. LEGITIMIDADE PASSIVA. APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO ESPECIAL. - A ação de dissolução parcial deve ser promovida pelo sócio retirante contra a sociedade e os sócios remanescentes, em litisconsórcio necessário. Precedentes. - Na dissolução de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, a apuração de haveres do sócio retirante deve ter em conta o real valor de sua participação societária, como se de dissolução total se tratasse. Precedentes. Recursos não conhecidos. (REsp 105667/SC, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 26/09/2000, DJ 06/11/2000 p. 207)

SOCIEDADE COMERCIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL. I - A AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DEVE SER PROMOVIDA PELO SOCIO RETIRANTE CONTRA A SOCIEDADE E OS SOCIOS REMANESCENTES, EM LITISCONSORCIO NECESSARIO. II - DECIDINDO AS INSTANCIAS ORDINARIAS INEXISTIR PREVISÃO CONTRATUAL PARA A RETIRADA MOTIVADA, APLICA-SE A REGRA DO ARTIGO 668 DO CPC/39, EM VIGOR POR FORÇA DO DISPOSTO NO ARTIGO 1.218, VII DO CPC/73, A FIM DE SER EFETUADA A APURAÇÃO DOS HAVERES NA FORMA DETERMINADA NA SENTENÇA, ATRAVES DE BALANÇO ESPECIAL E PAGAMENTO EM UMA UNICA PARCELA. III - INCLUI-SE O FUNDO DE COMERCIO E O FUNDO DE RESERVA INSTITUIDO PELA VONTADE DOS SOCIOS, ENTRE OS HAVERES A SEREM CONSIDERADOS NO BALANÇO ESPECIAL. IV - ESTABELECIDO O LITIGIO ENTRE AS PARTES, EMBORA CONCORDEM OS REUS COM A RETIRADA DOS AUTORES, CABE A IMPOSIÇÃO DOS ONUS DA SUCUMBENCIA SOBRE OS REUS, QUE RECONHECERAM PARTE DO PEDIDO DOS AUTORES, E FICARAM VENCIDOS QUANTO AO RESTANTE. ARTS. 20 E 26 DO CPC. RECURSO CONHECIDO, EM PARTE, PELA DIVERGENCIA, MAS IMPROVIDO.(STJ, REsp 77122 / PR, Relator Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, DJ 08/04/1996 p. 10475 – g.n.)

Da mesma forma concluiu o Egrégio TJ/SP, na ocasião do julgado representado pelo aresto abaixo:

SOCIEDADE COMERCIAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO. Legitimidade passiva ad causam. Na ação de dissolução de sociedade, esta deve figurar no polo passivo da demanda. (TJSP; AC 57.851-4; São Paulo; Sexta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Ernani de Paiva; Julg. 15/10/1998 – g.n.)

Com efeito, resta evidente que a dissolução de sociedade, seja total, seja parcial, alcança o próprio ato constitutivo da pessoa jurídica e enseja a obrigação de pagamento dos haveres ao sócio retirante, no último caso.

Dessa forma, é obrigatório que a sociedade dissolvenda integre o polo passivo da demanda, notadamente o da liquidação dos haveres.

A esse respeito, vale destacar o entendimento uníssono do Egrégio STJ:

APURAÇÃO DE SEUS HAVERES, COMO SE DE DISSOLUÇÃO SE TRATASSE, SEM PREJUÍZO DA PERMANÊNCIA DA SOCIEDADE. SOCIEDADE - LEGITIMIDADE PARA A CAUSA. EMBORA A PRETENSÃO DE RETIRADA DE SÓCIO, ENQUANTO ENVOLVE MODIFICAÇÃO DO CONTRATO, SÓ POSSA SER ATENDIDA PELOS REMANESCENTES, O CERTO E QUE O PAGAMENTO DOS HAVERES FAR-SE-A COM O PATRIMÔNIO DA SOCIEDADE. JUSTIFICA-SE SUA PRESENÇA NO PROCESSO. RECURSO ESPECIAL. DELE NÃO SE CONHECE QUANTO AO PONTO QUE NÃO FOI OBJETO DE EXAME PELO ACÓRDÃO. (REsp 44132/SP, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/12/1995, DJ 01/04/1996 p. 9908 – g.n.)

Na ocasião do julgamento retratado pelo precedente supracitado, o Eminente Ministro Eduardo Ribeiro consignou que "julgada procedente a ação, o patrimônio da sociedade, e não o pessoal dos sócios, é que arcará com o pagamento do que for devido aos que se retiram. Justifica-se, pois, sua presença no processo" (g.n.).

Celso Barbi Filho9 também assevera que, "Sofrendo a sociedade limitada, que tem personalidade e patrimônio próprios, as consequências jurídicas da sentença de dissolução parcial, deve ser citada na pessoa de seus representantes legais, a despeito de todos os sócios já estarem integrando a demanda. Se a sociedade não integra a demanda e é dela o patrimônio com o qual serão pagos os haveres do sócio retirante, pode-se inviabilizar a própria execução da sentença de dissolução parcial".

Do mesmo modo leciona Hernani Estrella10:

Averiguado que, em virtude da saída de sócio e ulterior apuração dos haveres, pode surgir um crédito em dinheiro, conviria indagar, agora, quem, em tal hipótese, seria o sujeito devedor. A pergunta parece não ser despicienda, porque a resposta, que se costuma dar em termos brevíssimos e peremptórios, exigiria, ao nosso ver, explicação mais ampla e fundamentada. É que umas tantas questões paralelas, mas intimamente correlacionadas com a principal, podem ensejar dúvidas sobre a exatidão da resposta, em não sendo cumpridamente esclarecidas. Assim, ter-se-á de estabelecer inicialmente se, concluída a apuração, resultou débito ou crédito, pois, como se sabe e já foi, aliás, evidenciado (...), é provável ocorrer tão completa equivalência entre ativo e passivo da sociedade, no momento considerando, que inexista devedor ou credor. Em tal situação, obviamente, a pergunta perderia todo o interesse. Mas, na generalidade dos casos, ao contrário, o processo de liquidação da quota do ex-sócio é positivo, isto é, traduz a existência de um crédito a seu favor. Nestas condições, atenta a estrutura binária da relação obrigacional, a face oposta desta é ocupada pelo sujeito devedor, que vem a ser a sociedade. Isto se explica de reembolso ao sócio egresso redunda, afinal, na restituição, por parte da sociedade, do contingente de capital como decorrência lógico do atributo da personalidade jurídica, em razão do qual é juridicamente possível essa contraposição de interesses entre a entidade coletiva e os seus membros.

(...)

Com palavras assaz claras e absoluta juridicidade, preleciona Waldemar Ferreira: 'Não se dissolvendo a sociedade, esta se transmuda em devedora dos haveres do sócio que se retirou ou faleceu; e é obrigada a pagar àquele ou aos herdeiros deste os haveres que se apuraram pela forma estipulada no contrato social'.

(...)

Diante de todo o exposto, parece-nos que a solução adotada pela jurisprudência e doutrina nacionais tem a seu prol bens e sólidos fundamentos. A ela aderimos francamente, pois que a reputamos perfeitamente condizente com o genuíno espírito de nossas leis. Para nós, é a sociedade, pessoa distinta da de seus membros, que se constitui devedora da quota a reembolsar ao ex-sócio ou a quem o suceda nos seus direitos.

Coadunando tal entendimento, merece destaque a recente lição de Alfredo de Assis Gonçalves Neto11, em sua obra "Direito de Empresa", de cuja obra a autora pede vênia para citar integralmente:

A jurisprudência de nossos tribunais mostram a tendência de exigir a presença da sociedade e dos demais sócios no polo passivo da relação processual, embora existam decisões conflitantes (...). Essa orientação prevalecente, a meu ver, decorre das disposições do Código de Processo Civil de 1939, nesse ponto ainda em vigor, que, sem a visão dos efeitos da personificação e dos diversos tipos societários, bem como da função que a sociedade visa preencher no ordenamento jurídico, prevê a oitiva dos interessados no prazo de 48 horas, quando se tratar de dissolução de pleno direito, ou de 5 dias, quando disser respeito à dissolução contenciosa (art. 656, §§ 1º e 2º). A solução, então, foi entender que, dentre os interessados, além dos sócios, está a sociedade, pois não faz sentido a citação daqueles sem que esta participe da relação processual que visa precisamente, a sua extinção.

Entendo, porém, que a ação deve ser dirigida exclusivamente contra a sociedade. Ela – e apenas ela – é que irá sofrer os efeitos da sentença dissolutória, sendo dela, portanto, o interesse em resistir à pretensão ajuizada. Os sócios podem ser interessados, como o indica a lei processual, mas não são partes, tanto que não podem estar sujeitos aos efeitos da sentença. Não se pode olvidar que, na sociedade limitada, a responsabilidade dos sócios vai até o valor do capital social e cessa totalmente com sua integralização. Consequentemente, não poderia ser eles obrigados ao pagamento de haveres, que são dívidas vinculadas ao patrimônio social. Figurando como réus na relação processual, ficariam sujeitos à execução, em solidariedade com a sociedade – o que contrariaria o regime jurídico do tipo societário em análise.

Aliás, como a sociedade tem a função de simplificar as relações jurídicas, materializando-se no instrumento que representa o conjunto dos sócios nas suas relações com cada qual deles e com terceiros, a citação deve ser feita na sua pessoa, exclusivamente, nos termos dessa representação. De fato, o negócio jurídico de constituição de uma sociedade (de associação ou de uma fundação) não pode ser visto apenas sob o liame que une os sócios para sua formação. Da vontade por eles manifestada nesse negócio, ao contrário do que ocorre com todos os outros, surge um novo ente, capaz de direitos e obrigações, com patrimônio próprio e distinto dos sócios que participaram de sua constituição. A partir daí, os bens e recursos que os sócios trouxeram para o empreendimento comum deixam de lhes pertencer e passam ao domínio da pessoa jurídica assim formada; por igual, todas as obrigações que assumiram transformam-se em direitos dessa pessoa jurídica. Uma vez criada a sociedade (pelo negócio de sua constituição), deixam de existir as relações jurídicas diretas dos sócios entre si e com terceiros; cada sócio passa a manter vínculos com a sociedade de que participa e, sempre por meio dela, com os demais sócios e com terceiros, estranhos ao quadro social.

É da sociedade – e não dos demais sócios – que o sócio deve reclamar seus dividendos (participação nos lucros verificados); pertence à sociedade – e não a cada sócio – o direito de cobrar do sócio remisso o pagamento das quotas não integralizadas e assim por diante.

Se fosse admitida a manutenção das relações jurídicas entre os sócios após a celebração do ajuste societário, não faria sentido o surgimento da pessoa jurídica para se interpor entre eles, e tal ajuste ficaria semelhante, em tudo e por tudo, aos demais contratos.

Não é isso que ocorre, porém. Os sócios podem tomar deliberações, mas essas deliberações não os obrigam uns para com os outros, posto que formam a vontade do ente por eles anteriormente criado.

O entendimento oposto, que tem prevalecido nas decisões de nossos tribunais, não explica, com o devido respeito, a permissão de deliberações, majoritárias e levaria a se considerar uma iniquidade a admissão de alteração do pacto social primitivo sem a presença ou a participação de todos os sócios.

Disso resulta que, se os sócios, depois de constituída a sociedade, só têm relações jurídicas com a sociedade e, através dela, com os demais sócios, a ação para dissolver tal sociedade deve ser dirigida contra ela, que representa os sócios em conjunto, e não contra cada qual deles individualmente considerados. É o que está previsto, aliás, para o caso de dissolução por causa falimentar, por exemplo, em que ré na respectiva ação é a sociedade. A lei anterior só facultava aos sócios das sociedades não revestidas da forma de sociedade por ações comparecer voluntariamente ao processo (sem exigência da respectiva citação), para manifestar sua oposição à quebra, quando fundada em requerimento de sócio (Dec.-lei 7.661/1945, art. 11, § 4º) -o que não é mais previsto na lei vigente.

A comunicação aos sócios a respeito da existência de demanda dissolutória contra a sociedade é assunto interno; deve ser feita pela própria sociedade, por meio de seu órgão gestor ou de deliberação colegiada, se houver. Assim, as disposições do art. 656, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil de 1939, ao determinarem a oitiva dos interessados, sem qualquer previsão de citação da pessoa jurídica da sociedade, no meu modo de entender, só podem ser interpretadas, à luz da realidade presente, como impositivas de citação, não dos sócios, mas da sociedade (única destinatária da demanda), como representante do conjunto daqueles sócios.

Em reforço do que aqui é sustentado há um argumento prático; a ser obrigatória a participação de todos os sócios na relação processual dissolutória, fica inviabilizada a dissolução de sociedades com muitos sócios (mesmo que sejam simples prestadores de capital e estejam e locais diversos, ignorados ou de difícil acesso, como se dá com os residentes no exterior) e, principalmente, a das sociedades anônimas, tanto abertas como fechadas, cujas regras processuais do Código de 1939 ainda lhes são aplicáveis (Lei 6.404/1976, art. 209 e parágrafo único). Trata-se de orientação absolutamente irreal e insatisfatória, a não ser que se passe a entender, contra todos os princípios de segurança processual, a possibilidade de, nessas hipóteses, ser determinada a citação por edital de todos os sócios ou acionistas, residentes em lugar certo e conhecido.

Observe-se, por outro lado, que, se é a maioria que delibera dissolver a sociedade, não faz sentido que vá a juízo para obter tal resultado. A decisão da maioria é bastante por si; é a manifestação da vontade da própria sociedade. Poder-se-ia questionar esse entendimento no caso de a lei exigir deliberação unânime, mas esta (...), não se impõe à sociedade limitada. De toda sorte, forçoso é concluir que a exigência de a sociedade figurar no polo passivo da relação processual não se aplica às demais sociedades com prazo determinado de duração, em que a deliberação de dissolução, diferentemente da limitada, exige o consentimento unânime de todos os sócios. Aí – mas só aí (se a maioria entender que se exauriu o fim social, por exemplo) -, haverá litisconsórcio necessário entre todos os sócios na demanda dissolutória. A unanimidade implica a manifestação da vontade de todos os sócios, ninguém agindo pela sociedade.

Na mesma linha, confira-se o ensinamento de Idevan César Rauen Lopes12:

Excluído o sócio, poderá este exercer um de seus direitos inerentes à condição de sócio, o qual é exclusivamente patrimonial, que é a apuração de seus haveres. Pretende o sócio excluído receber parte do patrimônio da empresa, na proporção com que ele participou para constituir seu capital social. Sua participação no capital lhe dá um direito a crédito com a empresa, seja na sua saída da sociedade, seja na liquidação desta.

(...)

"Apurado o valor total do patrimônio, deverá o sócio excluído receber a sua parte do patrimônio da empresa, levando em consideração para a divisão do patrimônio o capital efetivamente realizado". (ob. Cit. p. 146)

Com efeito, se os haveres do sócio retirante forem pagos pelos demais sócios da sociedade dissolvenda, não haverá sequer a "dissolução parcial" da sociedade, extrapolando o comando sentencial terminativo-definitivo.

Isso porque, não haverá a correspondente redução do capital social, com o pagamento da quota parte do sócio retirante com o patrimônio da própria empresa (artigo 1.031, parágrafo primeiro, do Código Civil - clique aqui). Nesta hipótese, haveria a aquisição compulsória das quotas do sócio retirante pelos demais sócios da pessoa jurídica, o que não se pode exigir.

A esse respeito, vale citar, uma vez mais, a pertinente lição de Celso Barbi Filho13:

A responsabilidade pelo pagamento desses haveres monetários do retirante é, em princípio, da própria sociedade, pois a pessoa jurídica é que está sendo parcialmente dissolvida, do que decorre, logicamente, uma diminuição do seu patrimônio. Entretanto, sendo ou não os sócios réus na ação, nada impede que estes, voluntariamente, promovam com seus próprios recursos tal pagamento, de modo a não se sacrificar o patrimônio social, nem se diminuir o capital da pessoa jurídica.

Mas note-se que o pagamento dos haveres do retirante pelos sócios remanescentes jamais será coercitivo, pois o patrimônio destes não se confunde com o da sociedade, a teor do art. 20, do Código Civil. Desse modo, se os haveres apurados forem negativos, tal fato corre a débito do dissidente, em nada modificando a responsabilidade dos demais sócios quanto ao seu pagamento.

Assim, na esteira da mais recente e renomada doutrina e jurisprudência, reputa-se imprescindível a participação da sociedade dissolvenda no polo passivo da ação de dissolução de sociedade, seja para defender seus interesses, seja para legitimá-la na fase de liquidação e pagamento dos haveres.

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1 STJ, REsp 735207/BA, Relator Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, DJ 07/08/2006 p. 221.

2 Art. 3º. Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade.

3 Art. 6º. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.

4 ALVIM, Arruda. Curso de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, v. I, p.387.

5 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil, 3.ed., Rio de Janeiro : Renovar, 2003, p. 221 – 223.

6 ALVARES, Samantha Lopes. Ação de Dissolução de Sociedades – São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.113.

7 Observa-se que, no caso em comento, por se tratar de dissolução parcial, haverá tão-somente a redução do capital social, na forma do artigo 1.031 do Código Civil.

8 FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, n. 3.3.2.1, p. 115.

9 BARBI FILHO, Celso. Dissolução parcial de sociedades limitadas. Belo Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 354.

10 ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. Rio de Janeiro – Forense, 2010, p. 200-204.

11 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa : comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 425 – 427.

12 LOPES, Idevan César Rauen. Empresa & exclusão de sócio: de acordo com o Código Civil de 2002. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2009, p. 145.

13 ob. Cit., p. 513.

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*Sócio do escritório Homero Costa Advogados

**Sócio do escritório Homero Costa Advogados

***Advogado associado do escritório Homero Costa Advogados

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