Direito coletivo e sindical na Reforma do Judiciário
Wilson Ramos Filho*
1. Introdução
2. Pressupostos Metodológicos
A análise do real alcance e das dimensões que esta primeira fase da reforma do judiciário estabelece no universo juslaboral impõe tarefa complexa, uma vez que exige do intérprete vigilância permanente para se evitarem não apenas exageros, mas também manifestações de natural resistência à mudança de paradigmas que se apresenta como inovação.
Para uma melhor compreensão do tema, o primeiro pressuposto norteia-se pela conscientização de que se trata de uma “reforma constitucional”, razão pela qual a análise deverá recorrer às ferramentas interpretativas próprias desse ramo do direito. Embora óbvio tal pressuposto nem sempre é seriamente considerado.2
O intérprete da nova disciplina constitucional, portanto, deve buscar a hermenêutica que extraia do texto constitucional a maior efetividade possível (princípio da efetividade das normas constitucionais) resistindo à tentação de entender tais inovações como de eficácia contida, limitada ou como meramente “programáticas”. Para isso há que se ter respeito pela Constituição entendendo-a como hierarquicamente superior às demais normas preexistentes, condicionadora de seus conteúdos (princípio da supremacia da Constituição), já que todas as demais normas terão que ser re-interpretadas da maneira que melhor se compatibilizarem com o novo texto constitucional (princípio da interpretação conforme a Constituição). Por fim, considerando-se que se trata de Poder Constituinte Derivado, a interpretação de Emendas Constitucionais não deve valorizar em excesso eventuais incongruências entre as matérias que foram reformadas pelo constituinte derivado sem que, sistemicamente, outros dispositivos correlatos também tenham sido alterados. Sabe-se que não raro o legislador (ordinário ou constituinte, originário ou derivado-refomador) opera as reformas sem o suficiente rigor técnico. Assim, cabe ao intérprete apreender o conteúdo da Emenda e de toda a legislação infraconstitucional com a preocupação de preservar-se o equilíbrio entre todos os seus comandos (princípio da unidade da Constituição) para que se atinjam, com a máxima efetividade, os fins pretendidos pela reforma, de modo menos gravoso e mais adequado (princípio da proporcionalidade) aos destinatários da nova disciplina constitucional. Desnecessário, então, destacar que as norma infraconstitucionais anteriores deverão ser reinterpretadas conforme a nova ordem constitucional, e não o inverso: interpretar a nova disciplina constitucional conforme a CLT, ou conforme a jurisprudência construída ao tempo da disciplina constitucional anterior.
O segundo pressuposto evidencia a natural manifestação de resistência à novidade que se vê amplificada em se tratando de reformas constitucionais o que implica mudanças paradigmáticas que impõem ao intérprete uma vigilância reforçada, um alerta constante, contra o conservadorismo hermenêutico. Para além do conservadorismo típico de grande parte dos operadores jurídicos, justificável pela vocação em preservar o status quo que caracteriza o posicionamento desses operadores da ciência do direito, subsiste um conservadorismo interessado que se manifesta de forma diferenciada dependendo da posição daquele que interpreta a Constituição Reformada. Entre os advogados o fenômeno muitas vezes ocorre em razão de interesses de sua clientela preferencial (existente ou pretendida); entre os magistrados, pela natural resistência não apenas à adoção de interpretações que poderiam acarretar sobrecarga ainda maior de trabalho mas também à necessidade de importantes reciclagens, tanto para atualização teórica, quanto para se repensarem os paradigmas até então utilizados;3 entre os professores e doutrinadores do direito, pela necessidade de se reverem posicionamentos cristalizados em obras anteriores e em esquemas didáticos próprios.
O terceiro pressuposto é que exageros raramente contribuem para uma análise realista dos conteúdos das inovações constitucionais, e respectivos fundamentos, objetivos e conseqüências práticas.4 São de certo modo exagerados os entendimentos de que o deslocamento de competência em algumas matérias da Justiça Comum para a Justiça do Trabalho propiciará enfim “ao trabalhador e ao tomador de serviços um autêntico acesso à Justiça”, assim como soam exageradas as afirmações de que a ampliação da competência trabalhista representaria o atendimento aos “justos reclamos da comunidade jurídica nacional”. Não parece razoável considerar que a Emenda 45 teria ampliado a competência trabalhista “apenas para julgar funcionários públicos, mais nada”, nem considerar que enquanto a matéria não for regulamentada por nova legislação infraconstitucional imperará a “balbúrdia” com “juízes legisladores criando procedimentos ao sabor de sua cultura jurídica e de sua convicção pessoal”, cada juiz criando “para os casos concretos o rito procedimental que reputar mais conveniente”. Mais que exageradas essas últimas afirmações mostram-se imprecisas, errôneas e excessivamente conservadoras, pouco contribuindo para uma serena análise das inovações constitucionais na competência da Justiça do Trabalho. Do mesmo modo, soam exageradas as análises segundo as quais tudo o que, ainda que remotamente, se aproximem de “relações de trabalho” teriam a competência deslocada para a Justiça do Trabalho.5
O quarto e último pressuposto emana do entendimento segundo o qual a Reforma do Judiciário foi realizada, no particular, exatamente para ampliar e para redimensionar a competência da Justiça do Trabalho, como já demonstrado, em interpretação histórica, por Carlos Mascarenhas BRANDÃO.6 A finalidade da Reforma foi exatamente ampliar a competência da Justiça do Trabalho para diversas matérias que até então estavam submetidas a outras jurisdições, no campo do direito individual e, ao mesmo tempo, limitar o âmbito de competência da Justiça do Trabalho no campo das relações coletivas de trabalho.
Fixados os pressupostos metodológicos acima, inicia-se a análise de alguns pontos controversos a respeito das inovações que se instalam no campo do direito coletivo e sindical tendo-se como parâmetro norteador a primeira fase da Reforma do Judiciário.
3. A competência alterada e redimensionada no campo das relações coletivas de trabalho.
Tendo por pressupostos (i) que a competência da Justiça do Trabalho restou alterada pela Emenda Constitucional n. 45 e que, em conseqüência disso, devem ser utilizados os princípios instrumentais de interpretação próprios do Direito Constitucional; (ii) que devem ser evitados mecanismos de resistência às mudanças; (iii) que devem ser evitados também exageros nas análises de tais mudanças; e, (iv) que o constituinte derivado efetivamente pretendeu, no campo das relações individuais de trabalho, ampliar e redimensionar a competência da Justiça do Trabalho e que, no campo das relações coletivas de trabalho, limitou e restringiu o exercício do Poder Normativo da Justiça Especializada, serão analisados tão-somente quatro aspectos mais controversos decorrentes da Emenda Constitucional n.° 45/2004, a saber: a) mudança paradigmática: necessidade de “comum acordo” para movimentação da jurisdição; b) limitações ao Poder Normativo restringido; c) competência da JT para julgar as ações relacionadas à greve; e d) competência da JT para julgar conflitos intersindicais.
Em cada um dos tópicos a seguir se procurará, com base nos pressupostos metodológicos acima estabelecidos extrair da nova ordem constitucional a máxima eficácia possível.
a) Mudança paradigmática: necessidade de “comum acordo” para movimentação da jurisdição.
A doutrina estruturou a classificação das “ações de dissídio coletivo” em duas espécies: os dissídios coletivos de natureza econômica (ou de interesse) e os dissídios coletivos de natureza jurídica (ou basicamente declaratórios), dentre estes últimos os tendentes a interpretar norma vigente, os chamados dissídios revisionais e também aqueles relativos a declarações de abusividade ou não de greves.
Na ordem constitucional anterior (CF, art. 114, §§ 1º e 2º) como principal pressuposto processual objetivo para o ajuizamento da instauração de instância de dissídio coletivo figurava a frustração da negociação coletiva.7 Isso foi mantido no texto reformado.
Embora não houvesse previsão expressa na Constituição de competência para a Justiça do Trabalho julgar ações de dissídio coletivo de natureza jurídica a doutrina majoritária inclinou-se pelo entendimento de que a legislação infraconstitucional reguladora desse tipo de ação havia sido recepcionada pela CF/88 ao tratar genericamente da competência para julgar dissídios coletivos, uma vez frustradas as negociações. Tanto foi assim que o TST editou OJ 06 da SDC exigindo negociação prévia (posteriormente cancelada, em 10 de junho de 2000, por razões que não interessa tratar aqui) como pressuposto objetivo para ajuizamento de dissídios coletivos de natureza jurídica.
Com a reforma constitucional n. 45 a matéria foi cientificamente melhor tratada, separada em dois momentos: o que trata da competência para julgar dissídios coletivos de natureza econômica, no § 2º do art. 114, e o que trata da possibilidade de julgamento de matérias relacionadas a greves em serviços essenciais, no § 3º do art. 114, conforme será mais detalhado adiante neste mesmo estudo.
Além do requisito objetivo que diz respeito à frustração das negociações foi criado pela Reforma do Judiciário outro requisito objetivo para o ajuizamento de dissídios de natureza econômica: que a movimentação da jurisdição seja feita de comum acordo entre as partes.
Ao contrário do ponto de vista sustentado por Manoel Antonio TEIXEIRA FILHO8 e por Gustavo Filipe Barbosa GARCIA9, salvo em casos de dissídio coletivo de natureza jurídica para defesa do interesse público em serviços essenciais, em todos os demais processos de dissídio coletivo, de natureza econômica ou de natureza jurídica, pouco importa, sempre se exigirá como pressuposto processual objetivo o comum acordo entre as partes envolvidas. Vale dizer, nas greves em atividades essenciais que não estejam arroladas como essenciais(art.8º, Lei 7.783/89) e nas quais não haja interesse público relevante não se aceitará ação de dissídio coletivo objetivando declaração de abusividade de greve caso o requerimento de instauração de instância não venha acompanhado de termo de anuência firmado pelas partes envolvidas (sindicato patronal ou empresa e sindicato obreiro, conjuntamente). Já se pode imaginar a resistência a respeito por parte não só das entidades patronais, mas também dos intelectuais orgânicos das classes dominantes, na academia, na advocacia e no judiciário.
Desaparece, portanto, na nova ordem constitucional a possibilidade do empregador ajuizar unilateralmente dissídio coletivo visando declaração de abusividade de greve. Na nova Ordem Constitucional a única possibilidade de ajuizamento unilateral de dissídio coletivo é aquela estampada no § 3o do art. 114, em que o Ministério Público do Trabalho (MPT) considerar que (i) a atividade for essencial, nos termos da lei; e, conjuntamente, (ii) houver possibilidade de lesão ao interesse público, hipótese em que, como ensina Ives Gandra MARTINS FILHO10, o MPT foi transformado em dominus litis exclusivo do dissídio coletivo de natureza jurídica que objetiva a declaração de abusividade da greve. Apenas nesta hipótese de estarem presentes, ao mesmo tempo, ambos os requisitos o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, sem a necessidade de “comum acordo” entre as partes que participaram da negociação frustrada. Esclarecendo: salvo nos casos em que o MPT detém com exclusividade a prerrogativa de ajuizar dissídios coletivos, não serão mais admitidos dissídios coletivos unilaterais (por parte tanto das empresas, quanto dos sindicatos obreiros) objetivando a mera declaração de abusividade ou não-abusividade de greve, o que deve contribuir como estímulo ao processo de negociação direta entre as partes.
Essa possibilidade de a empresa ajuizar dissídio coletivo (ainda que objetivando meramente obter declaração de abusividade de greve) já era de constitucionalidade questionável antes da Emenda n.45/2004, conquanto os nossos Tribunais fizessem vistas grossas a tal utilização. Explique-se: na redação originária do § 2º do art. 114 da CF/88 constava expressamente que “recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem” era “facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo”. Logo, somente os sindicatos (obreiros e patronais) estavam legitimados, constitucionalmente, para ajuizar dissídios coletivos. Contudo, incorrendo em grosseira inconstitucionalidade, os TRTs e o próprio TST inclinaram-se por admitir a empresas cujos trabalhadores estavam em greve legitimidade ativa para ajuizamento de dissídios coletivos.
Na nova redação do mesmo § 2º essa controvertida exclusividade na legitimação ativa aos sindicatos desapareceu, de modo que “recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado às mesmas [logo, às partes que participam da negociação, empresas ou sindicatos] ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica”, desde que o façam conjuntamente, em “comum acordo”. Não será exigido o “comum acordo” apenas na hipótese do § 3º: neste caso por parte do único legitimado a tanto, o Ministério Público do Trabalho e desde que a greve ocorra em atividades essenciais e, ao mesmo tempo, que a greve implique em possibilidade de lesão ao interesse público. Nesse sentido encontra-se a lição de Marcos Neves FAVA, segundo o qual “o emperramento da negociação, no mais das vezes, provoca a reação da greve, mas o movimento de suspensão do trabalho, como visto linhas acima, não ensejará representação do Ministério Público do Trabalho para a instauração de instância, exceto em se tratando de atividade essencial e com possibilidade de prejuízo ao interesse público. Vislumbra-se plausível, pois, que em um dado processo de negociação, as partes não cheguem a acordo, ecloda greve e nenhuma delas, por não haver consenso quanto à utilidade da intervenção estatal, possa socorrer-se da via judicial”.11
b) Limitações ao Poder Normativo restringido.
O poder "constitucionalmente conferido aos Tribunais Trabalhistas de dirimirem conflitos coletivos de trabalho mediante o estabelecimento de novas e mais benéficas condições de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em lei"12 que singulariza entre as nações civilizadas o sistema brasileiro de solução de conflitos coletivos de trabalho, ainda como resquício do governo autoritário da década de 30, a despeito de não haver sido “anatematizado, banido (como muitos desejam) acabou sendo reduzido de modo expressivo” conforme observa Manoel Antonio TEIXEIRA FILHO, que conclui – lamentando – que em havendo greve em atividades não-essenciais “nem o Ministério Público do Trabalho, nem as categorias em conflito poderão promover ação coletiva” cuja conseqüência “poderá ser altamente perturbadora da paz social”.13
Embora o diagnóstico acima esteja correto – o Poder Normativo da Justiça do Trabalho realmente sofreu importante limitação – a conseqüência não será necessariamente catastrófica para a verdadeira “paz social”. Explique-se: pelo menos nos últimos dez anos, mercê de reiterada jurisprudência em nossos TRTs e no TST as empresas e os sindicatos patronais sempre ameaçavam as entidades obreiras com eventual ajuizamento de dissídios coletivos por se sentirem seguros de que os julgamentos seriam vantajosos aos interesses patronais. A chantagem patronal obtinha êxito em muitas ocasiões, pois: a) não raras vezes os dissídios coletivos ajuizados por entidades obreiras eram extintos sem julgamento de mérito por preliminares, criadas por Orientações Jurisprudenciais da SDC/TST e não por lei; b) caso fossem superadas as preliminares – o que não se mostrou muito freqüente – nos julgamentos era prática comum a retirada de direitos historicamente consolidados; c) nos julgamentos de dissídios coletivos raramente direitos novos eram criados em benefício dos trabalhadores, inclusive com respaldo em decisões do STF14 e, d) nos dissídios coletivos de natureza jurídica para declaração de abusividade de greves, quase sempre os empregadores obtinham sucesso em seu intento, o que era absolutamente gravoso aos trabalhadores já que, a teor da OJ 10 da SDC/TST a “Greve abusiva não gera efeitos. É incompatível com a declaração de abusividade de movimento grevista o estabelecimento de quaisquer vantagens ou garantias a seus partícipes, que assumiram os riscos inerentes à utilização do instrumento de pressão máximo”; ou seja, como muitas vezes o acordo era obtido por intermédio de chantagem patronal que ameaçava os trabalhadores com a possibilidade de julgamento de dissídio pelos Tribunais do Trabalho, a “paz social” era artificial pois obtida de modo forçado, uma vez que não era permitido aos sindicatos obreiros ingressarem com dissídio coletivo para a declaração de não-abusividade de greve, a teor da OJ 12 da SDC/TST: “Greve. Qualificação jurídica. Ilegitimidade ad causam do sindicato profissional que deflagra o movimento. Não se legitima o sindicato profissional a requerer judicialmente a qualificação legal do movimento paredista que ele próprio fomentou”. Mais transparente, impossível: o dissídio coletivo de greve só vinha servindo aos empregadores para obter declaração de abusividade (hipótese considerada incompatível com o deferimento de pretensões obreiras, conforme OJ 10), não podendo os sindicatos profissionais utilizarem de ação de dissídio coletivo para obter a declaração de não-abusividade, o que, teoricamente legitimaria o deferimento dos pleitos dos trabalhadores em sede de dissídio coletivo.
De toda sorte, como visto no tópico anterior, nada mais disso será possível (salvo nos casos de greves em serviços essenciais, se e quando houver possibilidade de lesão do interesse público, a juízo do MPT) uma vez que não poderão mais os Tribunais do Trabalho interferir nas relações empregadores/empregados julgando dissídios coletivos de natureza jurídica apenas para declarar abusividade de greve.
Mas as limitações ao Poder Normativo são ainda maiores. Os que defendiam a permanência do Poder Normativo da Justiça do Trabalho o faziam basicamente (i) como forma de proteger as categorias pouco organizadas e sem poder de pressão sobre os empregadores e (ii) porque significava importante fonte criadora de direitos para tais categorias. Essa possibilidade, a teor do § 2º do art. 114/CF já não mais existe.
Supondo-se que houvesse vontade política e comprometimento humanitário dos Tribunais do Trabalho com a melhoria das condições sociais dos trabalhadores (meta fixada pela Constituição Brasileira), que não existissem reiteradas jurisprudências do STF impedindo a criatividade judicial (salvo no caso de vazio legislativo e desde que não houvesse reserva legal) e que, na prática os Tribunais do Trabalho estivessem – por hipótese – realmente criando normas e condições mais benéficas aos trabalhadores em seus julgamentos, essa “criatividade” deixaria de existir com a entrada em vigor da Emenda Constitucional.
De fato, a redação anterior do § 2º do art. 114 estabelecia poderes à Justiça do Trabalho para “estabelecer normas e condições respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”. A JT tinha esse poder. Se não o exercia (ou se muitas vezes extirpava direitos vigentes há anos de determinadas categorias sob o argumento de que tais direitos teriam sua vigência condicionada ao prazo de vigência da norma anterior como um todo), não vem ao caso. A JT poderia, assim o desejando, estabelecer normas e condições, criando direitos novos, para além dos fixados na legislação (já que não poderiam ser inferiores a tais patamares pois tinha que respeitar “as disposições convencionais e legais mínimas”).
Na atual redação do mesmo § 2º esse poder já não mais subsiste já que a JT não pode mais estabelecer normas e condições, mas tão-somente “decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.
Têm-se duas novidades, portanto: (i) a JT não pode mais criar, estabelecer normas e condições, mas apenas “decidir o conflito”, salvo se receber esse poder (que não mais decorre da Constituição), das próprias partes; e (ii) na decisão do conflito a JT não pode mais extirpar as disposições convencionadas anteriormente.
Na sistemática originária o constituinte atribuía aos Tribunais do Trabalho o poder de criar direitos (estabelecer normas e condições) para determinada categoria profissional ou parcela desta além dos estabelecidos pela legislação aos demais trabalhadores. O constituinte derivado-reformador retirou esse poder da Justiça do Trabalho reencaminhando-o aos interessados. Verdadeiramente apenas as próprias partes, doravante, serão detentoras do Poder Normativo (a JT só terá poder normativo na hipótese do § 3o do art. 114 que será comentado mais adiante), podendo delegar esse poder aos Tribunais Trabalhistas em compromisso arbitral. Esse poder de criar normas e condições foi devolvido às partes, sendo que estas mesmas partes, diante de um impasse nas negociações, poderão recorrer a um árbitro para decidir o conflito, delegando a esse árbitro, em comum acordo, o poder normativo que detêm. Caso optem pela arbitragem, como meio heterocompositivo de solução de controvérsias, as partes escolherão entre a arbitragem privada ou a arbitragem pública.
Caso as partes em conflito optem pela arbitragem privada, os poderes decisórios e limites a tais poderes nascerão da vontade das partes e constarão do compromisso arbitral (ajuste bilateral que, em vista de conflito presente, atribui poderes ao árbitro e estabelece as demais condições para a arbitragem).
Caso optem pela arbitragem pública, em comum acordo, poderão ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, nos termos do § 2º do art. 114 reformado pela Emenda 45/04, conforme observado por Marcos Neves FAVA para quem “a alteração em comento mostra-se substancial e revolucionária, na medida em que afasta – depois de seis décadas de aplicação do modelo acolhido pela Constituição Federal de 1988 – o Estado como meio obrigatório de solução dos conflitos coletivos, para que funcione como uma espécie de arbitragem pública, eleita por ambos os envolvidos no litígio”15. No mesmo sentido Ives Gandra MARTINS FILHO considera que a Reforma do Judiciário transformou "o dissídio coletivo em verdadeiro exercício de juízo arbitral, dada a necessidade de comum acordo para a submissão do conflito ao Judiciário Laboral".16
Constata-se todavia uma diferença fundamental entre os dois tipos de arbitragem: na arbitragem privada os poderes e limites aos poderes do árbitro (ou árbitros) são estabelecidos pelas próprias partes; já na arbitragem pública, escolhida de comum acordo entre as partes em conflito, realizada pela Justiça do Trabalho, os limites aos poderes dos árbitros (juízes integrantes do órgão especializado para julgar dissídios coletivos nos termos do Regimento Interno de cada Corte) são desde logo fixados na Constituição: os Tribunais Trabalhistas não podem regredir em face do que já tenha sido pactuado anteriormente. Tanto é assim que a Constituição reformada alude expressamente “às normas resultantes da negociação coletiva entre as partes litigantes. Indica as cláusulas de convenção não vigentes no momento do litígio, mas que as partes já aceitaram no passado, como válidas e aplicáveis”.17
Também aqui o constituinte-derivado-reformador promoveu importante alteração paradigmática: nos últimos dez anos, pelo menos, como eram freqüentes as ocorrências de em julgamentos de dissídios retirarem direitos antes previstos em normas coletivas preexistentes não raro os empregadores, em mesas de negociação, ameaçavam a bancada obreira com o ajuizamento de dissídio coletivo nos quais “os trabalhadores haveriam de perder direitos preexistentes”. Também não raras vezes os trabalhadores aceitavam percentuais de reajustes menores ou a instituição de bancos de hora em contratos coletivos temerosos diante da possibilidade de perderem, em eventual julgamento de dissídios coletivos, percentuais mais elevados de horas extras, de adicional noturno, de horas de sobre-aviso e assim por diante. A chantagem patronal quase sempre funcionou como demonstra o inexpressivo número de ajuizamentos de dissídios coletivos nos últimos anos, depois que se consolidou no TST (e conseqüentemente em muitos TRTs) a corrente hegemônica responsável pela maioria das OJs editadas pela SDC/TST.
Doravante essa chantagem patronal não mais funcionará já que se as partes optarem por encaminhar o conflito para ser decidido pelos Tribunais Trabalhistas assim agirão com plena consciência de que a Justiça do Trabalho, no exercício desse poder normativo mitigado, não mais poderá retirar dos trabalhadores direitos que já tenham figurado em algum contrato coletivo anterior (não necessariamente no imediatamente anterior).
Já se as partes optarem pela arbitragem privada, como os poderes do árbitro (e os limites a tais poderes) serão fixados pelas partes, em tese, as partes poderão atribuir ao árbitro (ou árbitros) privado poderes para decidir como bem entenda, podendo esse árbitro inclusive suprimir alguns direitos preexistentes, criando outros direitos ou não. Essa postura não será permitida na arbitragem pública em que os Tribunais do Trabalho forem chamados, em comum acordo entre as partes, para decidir conflitos, pois aqui haverá sempre a limitação constitucional ao poder normativo: os Tribunais Trabalhistas não mais poderão suprimir direitos, sob pena de nulidade das decisões por inconstitucionalidade.
Por outro lado, além desse limite (direitos preexistentes em normas coletivas anteriores) registre-se a existência de fundadas dúvidas quanto à possibilidade de a Justiça do Trabalho criar direitos novos para dada categoria profissional ou para parcela desta, já que não aparecem mais no texto constitucional poderes expressos para “estabelecer normas e condições” mas tão-somente para “decidir o conflito”.
Questão que poderia remanescer seria a que concerne à existência ou não de limites ao poder normativo no caso dos dissídios coletivos ajuizados pelo MPT com fundamento no § 3º do art. 114 reformado. Note-se que em tal hipótese (ocorrência de greve, em atividades elencadas em lei como “essenciais”, com possibilidade de lesão do interesse público) competirá à Justiça do Trabalho “decidir o conflito”, sem a limitação contida em seu § 2º. Inclina-se por concordar com a posição de Ives Gandra MARTINS FILHO para quem “os únicos dissídios coletivos genuínos serão aqueles propostos pelo Ministério Público do Trabalho, nos casos de greve em serviços essenciais, que comprometam o interesse público. A alteração parece salutar, na medida em que promove dentro do contexto de valorização da composição de conflitos coletivos, de preferência diretamente pelas partes envolvidas, que são as que melhor conhecem as condições de trabalho e a situação por que passa o setor produtivo em questão. Por outro lado, os impasses na solução desses conflitos, levando à manutenção de movimentos paredistas que comprometam a prestação de serviços essenciais, têm a válvula de escape da intervenção do Ministério Público, em defesa da sociedade prejudicada, ajuizando dissídio coletivo típico, tanto de natureza jurídica (pela declaração, ou não, da abusividade da greve) como de natureza econômica (compondo os interesses em conflito, mediante o estabelecimento de condições de trabalho que façam cessar os problemas decorrentes da prestação de serviços nas condições atuais)”.18
Tem coerência esse entendimento. De fato, por integrarem categorias profissionais tidas pela lei como “essenciais” tais trabalhadores sofrem limitações para o exercício do direito de greve mais amplas do que as dedicadas aos demais trabalhadores. Em virtude disso é razoável que a Constituição dedique àqueles trabalhadores tratamento também diferenciado. Nesse caso, em que há interesse público a ser preservado (requisito objetivo para que o MPT tenha legitimidade ativa para ajuizar o dissídio) os Tribunais Trabalhistas poderiam criar normas e condições para (i) pôr fim ao conflito acabando com a greve e (ii) estabelecer condições diferenciadas para tais trabalhadores como razão para o fim da greve e como prevenção contra movimentos paredistas futuros.
A socorrer tal entendimento apresenta-se o argumento de que a autorização constitucional para que os Tribunais do Trabalho, nesses casos de greves em serviços essenciais, “decidam” o conflito implica a possibilidade de serem atendidas, ao menos em parte, algumas das reivindicações que motivaram o movimento paredista, pois de nada adianta “decretar o fim da greve” sem atacar os reais motivos que levaram à sua eclosão, já que em tal caso, o conflito não seria realmente “decidido” (como quis o constituinte derivado-reformador), de agudo passaria a apenas latente, persistindo a situação que o originou e sem que fosse alcançada a pretendida “pacificação” fundamentadora da intervenção estatal em tais relações coletivas de trabalho.
c) Competência da JT para julgar as ações relacionadas com a greve;
Merece também destaque a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para as ações que envolvam o direito de greve.
Como é sabido, a mais eficiente medida patronal para impedir ou para dificultar o exercício do direito de greve por parte dos trabalhadores consistia no ajuizamento, perante o juízo cível, de interditos proibitórios. Desavisados e pouco familiarizados com as relações coletivas de trabalho alguns magistrados da Justiça Comum Estadual terminavam por (i) deferir liminarmente pedidos patronais e (ii) fixar pesadas multas diárias por descumprimento de ordens judiciais.
Em grande parte das vezes a Justiça Comum cometia uma teratologia: concedia tutela antecipada, sem que se ouvisse a parte contrária, assegurando a posse em via pública, ao proibir o sindicato de se manifestar a certa distância, nas ruas e nas calçadas situadas nas proximidades, da sede ou das agências de propriedade do empregador. Com tais medidas, intentadas para – na prática – inviabilizar o exercício constitucional do direito de greve, a Justiça Comum mostrava o seu despreparo e pouca afinidade com temas muito próximos do cotidiano dos operadores jurídicos com alguma experiência no foro trabalhista. Essa constatação fundamentou e motivou muitos dentre esses operadores, inclusive a ANAMATRA, a defenderem o deslocamento da competência de todas as ações relacionadas com o exercício do direito de greve para a Justiça do Trabalho, seguramente mais aparelhada e mais afeiçoada ao assunto.
Mesmo reconhecendo que doravante “a manifestação jurisprudencial passará a entender que a competência para apreciar as mencionadas ações será da Justiça do Trabalho”, Manoel Antonio TEIXEIRA FILHO19, de modo isolado na doutrina pesquisada, segue defendendo que “os interditos proibitórios nada têm a ver com o ‘exercício do direito de greve’ nem emanam da relação de trabalho” razão pela qual entende que a competência nessas ações teria permanecido na Justiça Cível comum.
Não foi esse o entendimento do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ em Mandado de Segurança impetrado pelo Sindicato dos Vigilantes de Curitiba e Região contra liminar deferida em interdito proibitório nos autos 103/2005 pela 22ª Vara Cível de Curitiba. Nesse Mandado de Segurança o Presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, Desembargador Tadeu Marino Loyola Costa cassou os efeitos da liminar de interdito proibitório assim fundamentando sua decisão: “A Emenda Constitucional nº 45 que modificou o art. 114, da Constituição de 1988, dispôs que compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que envolvem exercício do direito de greve. Com a alteração constitucional, compete à Justiça do Trabalho, quando provocada, delimitar o alcance e os limites do exercício do direito de greve. Daí que a situação de os trabalhadores, eventualmente, durante o movimento grevista, ameaçar ou turbar a posse de bens do empregador exige delimitação do exercício do direito de greve para assegurar que os grevistas exercitem o direito de que são titulares sem, contudo, impedir ou inviabilizar o exercício possessório do empregador sobre os bens próprios da empresa. Essa delimitação do direito de greve, caracterizada controvérsia judicial, somente poderá ser feita pela Justiça do Trabalho no exercício do poder jurisdicional de que está constitucionalmente investida”.
A competência, portanto, para conhecer e para julgar interditos proibitórios é inegavelmente da Justiça do Trabalho, conforme observado por João Orestes DALAZEN que está “convencido de que o art. 114, inc. II, passou a encartar na competência material da Justiça do Trabalho as ações possessórias entre empregado e/ou sindicato e empregador em face do exercício do direito de greve”.20
Outra dúvida residiria na possibilidade, ou não, do deferimento de interditos proibitórios por parte dos magistrados trabalhistas. Uma coisa é concluir-se que a competência é do juiz trabalhista, outra coisa é adentrar no mérito da possibilidade de concessão de interditos proibitórios.
Explique-se: conforme visto acima, o constituinte derivado-reformador atribuiu domínio litis ao Ministério Público do Trabalho para ajuizar dissídios coletivos de natureza jurídica para declaração de abusividade de greves em atividades essenciais se houver possibilidade de prejuízo ao interesse público. Fora dessas hipóteses não cabem mais – na nova Ordem Constitucional – dissídios coletivos para declaração de abusividade de greves. E está definitivamente afastada a possibilidade de ajuizamento de dissídios coletivos de natureza jurídica, de iniciativa exclusivamente patronal, para a declaração de abusividade de greve, em homenagem e estímulo à autocomposição. Sendo assim, se não podem os Tribunais “porem fim” às greves (julgando dissídios coletivos de natureza jurídica) também não podem os Juízes das Varas do Trabalho pretenderem “pôr fim” a movimentos grevistas deferindo interditos proibitórios, impondo multas ou bloqueando contas correntes de sindicatos. Não haveria coerência sistêmica se isso fosse permitido. Em conclusão: dos juízes do trabalho de Primeira Instância é a competência material para conhecer e julgar interditos proibitórios mas no exercício da jurisdição o Juiz do Trabalho de primeira instância não pode interferir no conflito nem para impedir, nem para dificultar o exercício do direito de greve, limitando-se sua competência a preservar o controle que os empregadores tenham e que devem se circunscrever nos limites estritos de seus direitos de posse ou de propriedade (ou seja, no interior das empresas), nunca nas vias públicas de acesso e menos ainda na preservação do direito de ir e vir de quem quer que seja, pois não cabe mais, na nova Ordem Constitucional, interferência do judiciário trabalhista nas relações coletivas de trabalho, salvo nas hipóteses de (i) comum acordo entre as partes em dissídios coletivos de natureza econômica, conforme § 2º do art. 114, ou (ii) em dissídios coletivos de iniciativa privativa do Ministério Público do Trabalho, nos estritos limites do § 3º do mesmo art. 114 da CF/88.
Sendo assim, a referência ao deslocamento da competência para a Justiça do Trabalho para julgar “as ações que envolvam exercício do direito de greve” (inciso II, art. 114/CF) diz respeito precipuamente a “ações individuais entre empregados e empregador, nesta condição, em virtude do exercício do direito de greve, porquanto das ações coletivas a que a greve também possa dar causa já tratam os §§ 2º e 3º do art. 114” como já observado.21
A teor da norma constitucional em comento, da Justiça do Trabalho, inequivocamente, é a competência para julgar ações que visem coibir atos anti-sindicais e reparar danos – patrimoniais ou extrapatrimoniais – causados por empregador a sindicatos e a trabalhadores ou por sindicatos a empregador, por sindicatos patronais a sindicatos obreiros ou por sindicatos obreiros a sindicatos patronais e a empresas, dentre outras questões similares, em decorrência de movimentos grevistas.
d) Competência da JT para julgar conflitos intersindicais;
Além das ampliações e dos redimensionamentos de competência em matéria de relações coletivas de trabalho antes mencionadas, também são de competência da Justiça do Trabalho “as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores.
Evidentemente a Justiça do Trabalho está mais aparelhada tecnicamente para prestar a jurisdição em tais casos, até então submetidos à competência da Justiça Comum Estadual, estando correto Edésio PASSOS, ao afirmar que essas matérias envolvem “relativa complexidade diante de grande número de litígios onde trabalhadores e empregadores disputam o espaço sindical sendo, de imediato, as ações em andamento remetidas à Justiça do Trabalho”.22
Resta superada, portando, a OJ 04 da SDC/TST que excluía tais dissídios da competência da Justiça do Trabalho, o que segundo José Affonso DALLEGRAVE NETO é acertado uma vez que "as normas relativas a enquadramento sindical e legitimidade encontram-se previstas apenas na CF (art. 8º.) e na CLT (arts. 570 a 577) estando, pois, o juiz do trabalho mais credenciado a examinar os conflitos daí resultante, se comparado com o juiz cível".23
Em um grau maior de detalhamento João Orestes DALAZEN, entende que o inciso III do art. 114 “atribuiu uma competência material genérica à Justiça do Trabalho para quaisquer dissídios intra-sindicais, intersindicais, ou entre sindicato e empregador, que envolvam a aplicação do direito sindical, de que é mero exemplo a disputa intersindical de representatividade” e classifica as situações em que a entidade sindical atua em defesa de direito próprio em três categorias: (i) intersindicais não coletivos, que opõem sindicatos atuando na tutela de direito próprio da entidade como, por exemplo, os dissídios que envolvem disputas de representatividade, os declaratórios de vínculo jurídico-sindical entre sindicato e federação e os cautelares, como o que objetivam sustar os efeitos de convenção coletiva de trabalho; (ii) intra-sindicais ou internos, nos quais se digladiam o sindicato com associados ou membros da categoria ou estes e a direção da entidade sindical, citando como exemplos dessa situação as disputas intestinas por direitos de dirigentes sindicais licenciados, por anulação de eleições sindicais ou de assembléia geral ou por cobrança de contribuições sindicais; e (iii) sindicais por contribuições, por intermédio das quais duas ou mais entidades sindicais, do mesmo ou de distintos graus de representação, contendem sobre a titularidade para recebê-las.24
Também são da competência da Justiça do Trabalho todos os demais conflitos que tenham por fundamento dispositivos insertos nos artigos 8 e 11 da Constituição Federal, bem como os que se fundamentarem em dispositivos celetistas. Do mesmo modo serão de competência da Justiça Especializada litígios fundados em futura lei que vier a disciplinar a organização sindical, a negociação coletiva e os mecanismos de solução de conflitos trabalhistas.
Por se tratarem de processos de natureza individual a competência funcional será obviamente das Varas do Trabalho e o rito processual será o previsto na CLT, nos termos da Instrução Normativa n.° 27 do TST.
4. Conclusões
Destas considerações preliminares, tecidas menos de dois meses após a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 45/2004, algumas considerações finais podem ser assim resumidas, à guisa de conclusão:
a. A interpretação do verdadeiro alcance da Emenda Constitucional deve levar em conta os princípios instrumentais de interpretação próprios do Direito Constitucional;
b. A um tempo devem ser evitados nesse processo hermenêutico, tanto as naturais resistências a mudanças paradigmáticas e os exageros na extração de conseqüências delas decorrentes;
c. A Emenda Constitucional n. 45/2004 efetivamente alterou e redimencionou a competência da Justiça do Trabalho em diversos aspectos do direito sindical e coletivo do trabalho, o que implicará em revisão da doutrina e da jurisprudência construída na vigência da Ordem Constitucional anterior à reforma do judiciário;
d. Não é mais possível o ajuizamento unilateral de dissídios coletivos, pelas próprias partes.
e. Só havendo comum acordo entre as partes é que a heterocomposição pode ser proferida pelos Tribunais do Trabalho;e.1. Mesmo havendo greve não podem as partes ajuizar dissídio coletivo unilateral, seja para declaração de abusividade da greve, seja de natureza econômica;
e.2. Exceto nos casos de greves em atividades essenciais em que houver possibilidade de prejuízo a interesse público (§ 3o, art. 114/CF), na nova Ordem Constitucional, verdadeiramente, só as partes em conflito detêm o Poder Normativo;
e.3. Esse Poder Normativo das partes pode ser delegado por essas mesmas partes, em “comum acordo” a árbitros, privados ou públicos;
e.4. Optando as partes pela arbitragem privada, no compromisso arbitral serão fixados os limites para o exercício do Poder Normativo delegado pelas próprias partes;
e.5. Optando as partes pela arbitragem pública, em “comum acordo” pela delegação de seu Poder Normativo aos Tribunais Trabalhistas, os limites ao exercício desse Poder Normativo delegado encontram-se na própria Constituição;
e.6. No exercício do Poder Normativo delegado os Tribunais Trabalhistas não podem criar normas e condições a menos que recebam delegação expressa das partes nesse sentido;
e.7. No exercício do Poder Normativo delegado os Tribunais não podem extirpar ou restringir direitos que tenham figurado em normas coletivas anteriores;f. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho genuíno só se mantém nos casos em que, por provocação do MPT (que detém o dominus litis exclusivo para tanto) coexistirem (i) greve em serviços essenciais e (ii) possibilidade de prejuízo ao interesse público (§ 3o, art. 114);
f.1. Na hipótese do § 3o do art. 114, em ação de dissídio coletivo promovida pelo MPT, os Tribunais do Trabalho poderão excepcionalmente estabelecer normas e condições que reconduza as partes à “pacificação social” respeitados os direitos e as garantias que já tenham figurado em normas coletivas anteriores;
g. É da competência da JT o julgamento de interditos proibitórios;
g.1. A competência funcional para julgamentos de interditos proibitórios é das Varas do Trabalho, primeira instância;
g.2. Embora seja de competência da JT o julgamento de interditos proibitórios as decisões não podem impedir nem dificultar o exercício do direito de greve;
g.3. Nos interditos proibitórios a competência dos Juízes das Varas do Trabalho restringe-se aos limites da posse do empregador, nunca das vias públicas de acesso;h. A Justiça do Trabalho passa a ser competente para julgar todas as demais ações fundadas no direito de greve, inclusive as que tenham por objetivo coibir atos anti-sindicais e a reparar danos;
i. Incluem-se entre as ações de competência dos Juízes de primeiro grau da Justiça do Trabalho litígios típicos do direito sindical;i.1. Houve o deslocamento da competência, da Justiça Comum Estadual para a Justiça Especializada de primeira instância;
i.2. É das Varas do Trabalho a competência para conhecer julgar os litígios intersindicais não coletivos, que opõem sindicatos atuando na tutela de direito próprio da entidade como, por exemplo, os litígios que envolvam disputas de representatividade, os declaratórios de vínculo jurídico-sindical entre sindicato e federação e os cautelares, como o que objetivam sustar os efeitos de convenção coletiva de trabalho;
i.3. É da competência das Varas do Trabalho o julgamento dos conflitos intra-sindicais ou internos, nos quais se digladiam o sindicato com associados ou membros da categoria ou estes e a direção da entidade sindical, citando-se como exemplos dessa situação as disputas intestinas por direitos de dirigentes sindicais licenciados, por anulação de eleições sindicais ou de assembléia geral ou por cobrança de contribuições sindicais;
i.4. Também são de competência das Varas do Trabalho as disputas sindicais por contribuições, por intermédio das quais duas ou mais entidades sindicais, do mesmo ou de distintos graus de representação, contendem sobre a titularidade para recebê-lasj. Também são da competência da Justiça do Trabalho todos os demais conflitos que tenham por fundamento dispositivos insertos nos artigos 8o e 11 da Constituição Federal, bem como os que se fundamentarem em dispositivos celetistas ou de futura lei que vier a disciplinar a organização sindical, a negociação coletiva e os mecanismos de solução de conflitos trabalhistas.
Bibliografia
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TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio, “A Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional n.45/2000, in Revista LTr, vol. 69, nº 1, janeiro de 2005.
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1Uma primeira versão desse artigo foi concebida para subsidiar a participação do autor no VI CICLO DE CONFERÊNCIAS DE DIREITO DO TRABALHO sobre “A Reforma do Judiciário e a Nova Lei de Falência”, realizado em Curitiba, nos dias 22, 23 e 24 de fevereiro de 2005, sob os auspícios da APEJ – Academia Paranaense de Estudos Jurídicos, coordenado pelo Professor Doutor José Affonso Dallegrave Neto, tendo como também conferencista o Professor Doutor Luis Eduardo Gunther.
2De fato, muitas análises que circularam pela Internet nos primeiros dias do corrente ano de 2005, formuladas por juízes e advogados, que teimavam em interpretar o novo texto constitucional segundo pré-compreensões tipicamente “trabalhistas”, reproduzindo o que venho jocosamente denominando de “interpretação constitucional conforme a CLT”, quando obviamente o que se deve fazer é re-interpretar a CLT e todo o restante conjunto normativo conforme a nova disciplina constitucional. Como o objetivo aqui não é criticar aqueles que tiveram a ousadia de socializarem suas impressões no calor da novidade, deixa-se de individualizá-los embora tais textos sejam facilmente encontráveis nas páginas de várias associações de classe.
3Exemplos de conservadorismo hermenêutico não faltam na análise da ampliação da competência da Justiça do Trabalho em decorrência da Emenda Constitucional número 45 no artigo 114 da Constituição. Vejam-se, a propósito:
4Como o objetivo desse texto não é criticar ninguém, ainda uma vez, não se fará referências a autores específicos, apenas serão listados alguns posicionamentos considerados de algum modo como “exagerados”.
5Nesse sentido: “a ação de indenização proposta pela sociedade contra o seu administador será de competência da Justiça do Trabalho”, segundo MEIRELES, Edilton em “A Nova Justiça do Trabalho – competência e procedimento”, in COUTINHO, Grijalbo Fernandes & FAVA, Marcos Neves, organizadores da obra NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO, São Paulo, LTr/ANAMATRA, 2005, p. 67.
6BRANDÃO, Cláudio Mascarenhas, “Relação de Emprego: enfim, o paradoxo superado”, in COUTINHO & FAVA (orgs.), pp. 55/56.
7MARTINS FILHO, Ives Gandra, “Processo Coletivo do Trabalho, 2ª Edição, São Paulo, LTr, 1996, p.98.
8TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio, “A Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional n.° 45/2000, in Revista LTr, vol. 69, nº 1, janeiro de 2005, p.21, para quem “não se submetem à exigência de comunhão de vontades os dissídios de natureza, exclusivamente, jurídica, ou seja, destinados à interpretação de normas legais ou de disposições constitucionais”.
9GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa, in “Reforma do Poder Judiciário: o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho após a emenda constitucional n. 45/2004”, Revista LTr, vol. 69, nº 1, janeiro de 2005, segundo quem “não há exigência de comum acordo para o ajuizamento desta modalidade de dissídio coletivo, permanecendo em vigor, neste aspecto, a disposição específica do art. 8º da Lei n.° 7.783/89, ao prever a possibilidade de instauração de dissídio coletivo, em caso de greve, por iniciativa das partes ou do Ministério Público do Trabalho, devidamente adaptado ao novo § 3º dp art; 114 da CF/88”, p. 69.
10MARTINS FILHO, Ives Gandra, “A Reforma do Poder Judiciário e seus desdobramentos na Justiça do Trabalho”, in Revista LTr, vol. 69, nº 1, janeiro de 2005, p.31
11FAVA, Marcos Neves, “O Esmorecimento do Poder Normativo – análise de um aspecto restritivo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho”, in COUTINHO & FAVA, ob. cit., p.285.
12PINTO, José Augusto Rodrigues, “Direitos Sindical e Coletivo do Trabalho”, São Paulo, LTr, 2ª. Edição, 2002, p. 370.
13TEIXEIRA FILHO, ob. cit., p.21. A citação acima termina com a pernóstica frase: “quem viver, verá”.
14O STF já decidiu inúmeras vezes que o Poder Normativo da Justiça do Trabalho só poderia operar no vazio legislativo; a matéria já sendo tratada na lei (como adicional de horas extras, por exemplo) não poderia ser objeto de ampliação por sentença normativa. Veja-se, por exemplo, a decisão exarada no RE 197.911-9, 1ª. Turma, Rel. Ministro Octávio Galotti, decisão proferida em 24.9.1996
15Fava, Marcos Neves, ob. cit., p. 285
16MARTINS FILHO, Ives Gandra. “A reforma ...”, ob. cit., p.31. Grifo no original. No mesmo artigo, mais adiante, o autor alude a que “apenas de comum acordo o dissídio coletivo poderá ser ajuizado, o que faz das Cortes Trabalhistas verdadeiras Cortes de Arbitragem, pois a característica própria da arbitragem é a livre eleição das partes, mas, uma vez eleito o árbitro, o procedimento para a composição do litígio é o judicial e legalmente já estabelecido, devendo sua decisão ser respeitadas pelas partes” (p.36). Grifos no original.
17FAVA, Marcos Neves, ob. cit., p. 288. O parágrafo assim continua: “Desta perspectiva, ao contrário do entendimento sufragado pelo Supremo, o tema ‘adicional de horas extraordinárias’ poderia ser tratado em dissídio coletivo econômico, desde que, em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho anterior, as partes já tivessem fixado adicionais diferentes do constitucional. A medida valoriza o ‘livre jogo da negociação’ outorgando maior responsabilidade aos pactos coletivos, que poderão, em tempo futuro, servir de base para a decisão judicial”. Grifos no original.
18MARTINS FILHO, Ives Gandra. “A Reforma ...”, ob. cit., p. 36, grifos no original. Registre-se, com respeito, opinião diversa, manifestada por JORGE NORMANDO RODRIGUES, assessor jurídico da Federação Única dos Petroleiros (FUP/CUT) ao ter acesso ao original antes deste publicação, que entende haver um contra-senso nesse raciocínio, fundamentalmente porque não se poderia deduzir a capacidade para fixar condições de trabalho quando o texto constitucional não a afirma textualmente. Para ele, portanto, o Poder Normativo da Justiça do Trabalho estaria totalmente sepultado. Embora esse entendimento também seja razoável, mantém-se por ora o entendimento de que nessa hipótese excepcional do § 3o do art. 114/CF, tendo em vista as restrições que a legislação impõe ao exercício do direito de greve, em atenção ao interesse público, remanesceria o poder normativo dos Tribunais para ampliar e criar novos direitos, nunca para restringir ou expurgar direitos que já tenham constado de normas coletivas anteriores.
19TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio, ob. cit., pp 15 e 16.
20DALAZEN, João Oreste, “A Reforma do Judiciário e os Novos Marcos da Competência Material da Justiça do Trabalho no Brasil”, in COUTINHO & FAVA, ob. cit., p. 174.
21DALAZEN, João Orestes, ob. cit., p. 174
22PASSOS, Edésio, “A reforma do judiciário e a Justiça do Trabalho”, in https://www.parana-online.com.br/noticias/index.php?op=ver&id=117342&caderno=5, acesso em 12.01.2005.
23DALLEGRAVE NETO, José Affonso, “Primeiras Linhas sobre a Nova Competência da Justiça do Trabalho fixada pela Reforma do Judiciário”, in COUTINHO & FAVA, p.208.
24DALAZEN, João Orestes, ob.cit., pp.166 e segs.
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*Mestre e doutor em direito, é professor titular de Direito Sindical na UNIBRASIL e professor adjunto de Direito Sindical e de Direito do Trabalho na UFPR. Integra o Coletivo Jurídico da CUT nacional e o escritório de advocacia Defesa da Classe Trabalhadora