Farpas contra a censura
Assinadas no início por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (6/1871-10/1872), depois, e até 1882, só pelo autor de "A Holanda", constituem hoje importante fonte histórica da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX. Com humor e ironia, esses primeiros folhetins, assinados por ambos, foram enfeixados em dois volumes intitulados sugestivamente de "Uma campanha alegre".
Da Redação
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
Atualizado às 07:01
Farpas contra a censura
Eça de Queirós - personagens e cenas jurídicas de um homem do Direito
"As Farpas" eram crônicas sobre a política e os costumes de Portugal.
Assinadas no início por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (6/1871-10/1872), depois, e até 1882, só pelo autor de "A Holanda", constituem hoje importante fonte histórica da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX. Com humor e ironia, esses primeiros folhetins, assinados por ambos, foram enfeixados em dois volumes intitulados sugestivamente de "Uma campanha alegre".
Mais até do que o retrato de uma época, as "Farpas" servem-nos como um candeeiro a lançar luz sobre um sombrio caso que se passa nestes dias : a censura do jornal O Estado de S. Paulo.
Em junho de 1871, contam-nos os escritores que o ministro do reino mandou um empregado da polícia entregar ao sr. Zagallo, diretor do Casino, um papel notificando-o que, por ordem superior, estavam fechadas as Conferências Democráticas que se realizavam em Portugal.
Para situar o leitor na quadra da história, tais conferências - que aconteciam no Casino lisboeta na primavera de 1871 - foram impulsionadas pelo poeta Antero de Quental. Na época, estavam todos entusiasmados com as ideias revolucionárias de Proudhon.
Mesmo as ideias literárias tendo tal atributo, Eça e Ramalho observavam que a decisão do ministro não tinha qualquer legalidade. Para eles, era um verdadeiro golpe de estado contra os escritores que faziam crítica de história e de literatura.
Como, no dizer dos autores d' "As Farpas", a missão do jornalista "é principalmente indagar e tocar com o dedo na corpulência da administração", lá foram eles cutucar o corpanzil estatal.
E aí se vê a outra vocação do escritor Eça de Queirós, advogado, formado em Direito por Coimbra. Ele foi, como convém ao jurista, consultar a Carta Constitucional.
E o que ela dizia ?
Dizia em seu art. 145, § 3º, que "todos podem comunicar o seu pensamento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito".
Conclui, assim, Eça de Queirós, que o poeta Antero de Quental, preletor da reunião do Casino, podia falar sobre, por exemplo, religião em toda liberdade de sua opinião, mas, se abusasse, responderia pelo abuso.
Na sua lógica lusitana, aponta que só se pode coibir a liberdade de pensamento quando houver abuso. E, no caso, era impossível haver abuso simplesmente porque a conferência censurada sequer havia sido feita. Sendo assim, o ato do ministro constituía-se uma verdadeira violação da Carta!
E o assunto preocupava, pois se a censura baixava sobre as reuniões do Casino, o que impediria que a arbitrariedade se desse em outras rodas?
"Com direito igual pode amanha o sr. Ministro mandar suprimir As Farpas, os romances do sr. Camilo Castelo Branco, os volumes de história do sr. Alexandre Herculano, os jornais, a conversação, esta simples pergunta - 'Como está? Passou bem?' Pode suprimir ainda um sorriso ou um olhar expressivo. Pode fulminar o espirro!".
Ah ! Quem diria que mais de um século depois iríamos assistir à mesma situação. Tão deplorável como aquela, é essa censura imposta ao jornal O Estado de S. Paulo, que prima há mais de um século por um jornalismo sério.
Com efeito, lá, como cá, é ilegítima qualquer decisão (eté a judicial), que, antes mesmo de saber o que vai ser publicado, resolve proibir a veiculação de certas informações. A imprensa publica o que quer, e arca com as consequências de sua eventual ilicitude, a posteriori.
Aí, dirá o leitor, o estrago já está feito. Sim, de fato isso pode se dar. E, nesse caso, quanto maior o estrago, maior é a punição.
Nesse jogo de erros e acertos, a imprensa quer sempre acertar, pois é aí que mora a credibilidade. A cada ação judicial que se perde, perde-se também, além do patrimônio pecuniário, um pouquinho da credibilidade, que é o maior bem de um veículo de imprensa.
Afora isso tudo, as regras deste jogo são ditadas pela democracia, e não pela mont blanc de um magistrado.
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