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Íntegra do voto do ministro Eros Grau no julgamento sobre Lei de Inelegibilidade

Leia abaixo a íntegra do voto do ministro Eros Grau, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 144, sobre Lei de Inelegibilidade, julgada dia 6/8 pelo STF.

Da Redação

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Atualizado às 08:58


ADPF 144


Íntegra do voto do ministro Eros Grau no julgamento sobre Lei de Inelegibilidade

Leia abaixo a íntegra do voto do ministro Eros Grau, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 144, sobre Lei de Inelegibilidade, julgada dia 6/8 pelo STF.

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ADPF 144

01. Manifestei-me sobre esta mesma matéria1 em votos proferidos no TSE. É também contra a interpretação que o colegiado então consagrou por maioria que esta ADPF foi proposta, de modo que se justifica a alusão que passo a fazer aos argumentos desenvolvidos nesses votos, ora acrescidos de mais alguns subsídios.

Afastei naquela ocasião, com as vênias de estilo, o entendimento do Ministro Carlos Britto, segundo o qual os temas da elegibilidade e da inelegibilidade compõem-se em bloco ou subconjunto específico dos direitos e garantias individuais, o dos direitos políticos. Esse bloco seria distinto, em perfil político filosófico, do bloco dos direitos e deveres individuais e coletivos --- onde predomina o princípio da dignidade da pessoa humana --- e do bloco dos direitos sociais - -- onde prevalece o princípio dos valores sociais do trabalho.

No bloco dos direitos polí ticos predominariam os princípios da soberania popular e da democracia representativa.

Os dois primeiros subsistemas gravitariam em torno de princípios que existem para --- dicção do Min. Carlos Britto --- "se concretizar, imediatamente, no individualizado espaço de movimentação dos seus titulares". Os direitos de que aqui se trata beneficiam imediatamente os seus titulares. No bloco dos direitos políticos não; esses consubstanciam deveres comprometidos com a afirmação da soberania popular e a autenticidade do regime representativo.

Em síntese, essa é a construção doutrinária desenvolvida pelo Min. Carlos Britto, que justificaria peculiar interpretação de alguns textos da Constituição --- o inciso III do artigo 15 e o inciso LVII do artigo 5º, v.g., disporiam no sentido que dispuseram somente quando o candidato respondesse por um ou outro processo penal; quando respondesse reiteradamente a inúmeros deles as suas disposições não prevaleceriam.

02. Discordei, permaneço a discordar desse entendimento. A explicitação teórica de distintos blocos de preceitos não afeta a normatividade constitucional, seja para potencializá-la, seja para torná-la relativa.

A uma porque o discurso sobre o direito não determina o discurso do direito --- o discurso do direito é para prescrever direta e incisivamente, sem expansões. O discurso sobre o direito é um meta discurso, conformado pelo discurso do direito. Aquele não o coloniza.

A duas --- e tenho insistido quase excessivamente nisto --- porque não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços, mas sim na sua totalidade. Uma porção dela não prevalece sobre outra quando a interpretamos. A lógica da Constituição é incindível.

A três porque sua interpretação está sujeita a determinados limites, sem o que será transformada em prática de subjetivismo.

03. A suposição de que o Poder Judiciário possa, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade importaria a substituição da presunção de não culpabilidade consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição ("[n]inguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória") por uma presunção de culpabil idade contemplada em lugar nenhum da Constituição (qualquer pessoa poderá ser considerada culpada independentemente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória).

Essa suposição não me parece plausível.

04. Recordo, a esta altura, o voto, muito lúcido, do Ministro Ari Pargendler quando a matéria foiapreciada no TSE.

O rol das inelegibilidades é definido pela Constituição como uma das matérias reservadas à lei complementar. O artigo 1º, I da Lei Complementar n. 64/90 exige que a inelegibilidade resulte de sentença transitada em julgado; excepcionalmente, no caso da rejeição de contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas por irregularidade insanável, privilegia a decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário.

O voto do Ministro Leitão de Abreu no RE 86.297 --- voto que o Min. Ari Pargendler rememorou --- é também exemplar: apenas o trânsito em julgado de uma sentença condenatória, seja pelo cometimento de crime, seja pela prática de improbidade administrativa, pode impedir o acesso a cargos eletivos.

Viver a democracia, isso não é gratuito. Há um preço a ser pago por ela; em síntese, o preço do devido processo legal.

05. O artigo 1º, I, n da Lei Complementar n. 5, de 29 de abril de 1970, tornava inelegíveis para qualquer cargo eletivo os que respondessem a processo judicial instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente.

Tempos duros e sofridos, a democracia ultrajada, quando bastava a denúncia do Ministério Público, recebida pelo juiz, para tornar inelegível o cidadão. A inconstitucionalidade do preceito veiculado nessa alínea n foi afirmada pelo TSE, no julgamento do Recurso n. 4.4662, quando o Ministro Xavier de Albuquerque proferiu voto antológico.

A Lei Complementar n. 42, de 1º de fevereiro de 1982, alterou o texto da alínea3. Passaram a ser inelegíveis os condenados, "enquanto penalmente não reabilitados". Ainda que o TSE e mesmo o STF tenha titubeado na aplicação do preceito, é oportuna a transcrição de observação do Ministro da Justiça, em reunião da Comissão Mista do Congresso Nacional, em 7 de outubro de 19814. Respondendo a afirmação de que a lei seria imperfeita por falar simplesmente em condenados, reclamando o acréscimo da expressão "por sentença transitada em julgado", o Ministro observou: "Não é preciso, pois não existe meio condenado, existe condenado". E mais adiante:

"'Condenado' é aquele 'condenado por sentença transitada em julgado'".

06. Isso é, para mim, de uma clareza sem par. O § 9º do artigo 14 da Constituição determina seja considerada a vida pregressa do candidato. Ao fazê-lo refere o que aconteceu antes do ato que a ele se imputa, refere o quanto possa contribuir para a apreciação do seu caráter, tudo quanto possa ser expressivo da sua índole moral, psíquica e social.

Ao dizer que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade a fim de proteger a moralidade para o exercício do mandato, "considerada a vida pregressa do candidato", o preceito constitucional impede que a moralidade para o exercício do mandato venha a ser ponderada a partir da consideração de algum ato episódico, isolado ou mesmo acidental envolvendo o candidato. Não autoriza a criação de caso de inelegibilidade ancorada na avaliação da vida pregressa do candidato, mas sim que a moralidade do candidato para o exercício do mandato seja ponderada, em cada caso, desde a consideração da sua vida pregressa, do todo que ela compõe. A proteção da moralidade do candidato para o exercício do mandato não prescinde da ponderação desse todo, isso é que afirma, em termos de dever ser, a Constituição. É bom que se diga, mais uma vez, que ninguém está autorizado a ler na Constituição o que lá não está escrito, prática muito gosto dos neo e/ou pós-positivistas, gente que reescreve a Constituição na toada de seus humores.

07. - Permito-me afirmar, ademais, que o Poder Judiciário não está autorizado a substituir a ética da legalidade por qualquer outra.

Não hão de ter faltado éticas e justiça à humanidade. Tantas éticas e tantas justiças quantas as religiões, os costumes, as culturas, em cada momento histórico, em cada recanto geográfico. Muitas éticas, muitas justiças. Nenhuma delas, porém, suficiente para resolver a contradição entre o universal e o particular, porque a idéia apenas muito dificilmente é conciliável com a realidade.

A única tentativa viável, embora precária, de mediação entre ambas é encontrada na legalidade e no procedimento legal, ou seja, no direito posto pelo Estado, este com o qual operamos no cotidiano forense, chamando-o "direito moderno", identificado à lei. A cisão enunciada na frase atribuída a Cristo --- "a César o que é de César, a Deus o que é de Deus" --- torna-se definitiva no surgimento do direito moderno, direito do modo de produção capital ista, direito posto pelo Estado, erigido sobre uma afirmação a atribuirse a CREONTE, ainda que não formulada exatamente nessas palavras: "Pref iro a ordem à justiça". No direito moderno se opera a separação absoluta entre posto e pressuposto, entre lex e ius.

08. - É certo que o temos, o direito moderno, permanentemente em crise, mas o que se passa agora é ainda mais grave porque --- ao mesmo tempo em que se pretende substituir as suas regras e princípios por outras, descoladas da eficiência ou de alguma distinta vantagem econômica --- a sociedade como que já não lhe dá mais crédito e inúmeras vezes se precipita na busca de uma razão de conteúdo, colocando-nos sob o risco de substituição da racionalidade formal do direito [com sacrifício da legalidade e do procedimento legal] por uma racionalidade construída a partir da ética (qual ética?!), à margem do direito.

A sociedade, insatisfeita com a legalidade e o procedimento legal, passa a nutrir anseios de justiça, ignara de que ela não existe em si e de que é incabível, como observara EPICURO5, discutirmos a "justiça" ou "injustiça" da norma produzida ou da decisão tomada pelo juiz, visto que nem uma, nem outra ["justiça" ou "injustiça"], existem em si; os sentidos, de uma e outra, são assumidos exclusivamente quando se as relacione à segurança [segurança social], tal como concebida, em determinado momento histórico vivido por determinada sociedade. Por isso mesmo é que, em rigor, a teoria do direito não é uma teoria da justiça, porém, na dicção de HABERMAS6, uma teoria da prestação jurisdicional e do discurso jurídico.

09. - É possível e desejável, sim, que o direito, em sua positividade, seja interpelado criticamente, à partir de conteúdos éticos e morais nascidos da luta social e política. Esta luta se dá alias, desde o advento da modernidade, com o propósito de realizar, para o maior número, as promessas de liberdade, da igualdade e fraternidade. Outra coisa é a pretensão de substituir-se o direito pela moralidade, o que, na prática, significa derrogar as instituições do Estado de direito em proveito da vontade e do capricho dos poderosos ou daqueles que os servem.

10. - Estranhas e sinuosas vias são trilhadas nessa quase inconsciente procura de ius onde não há senão lex.

Uma delas se expressa na produção multiplicada de textos sobre conflitos entre princípios e entre valores, o que em geral faz prova de ignorância a respeito da distinção entre o deontológico e o teleológico.

Outra, na banalização dos "princípios" [entre aspas] da proporcional idade e da razoabil idade, em especial do primeiro, concebido como um "princípio" superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de "corrigir" o legislador, invadindo a competência deste.

O fato, no entanto, é que proporcional idade e razoabilidade nem ao menos são princípios --- porque não reproduzem as suas características --- porém postulados normativos, regras de interpretação/aplicação do direito.

Aliás, algumas vezes me detenho, perplexo, indagando a mim mesmo como terá sido possível aos nossos juízes definir normas de decisão nos anos anteriores à década dos noventa, quando ainda a distinção entre princípios e regras não havia sido popularizada.

A racionalidade formal do direito moderno, direito positivo, direito posto pelo Estado, não pode --- por certo não é fácil dizê-lo; dizê-lo exige serenidade e seriedade --- não pode ser substituída por uma racionalidade de conteúdo que, fatal e irremediavelmente, será resolvida, no bojo da díade violência/direito, pelo primado do primeiro termo.

11. - Isso não significa, contudo, esteja eu a afirmar que o direito moderno seja aético, senão que a sua é a ética da legalidade.

A ética, do ponto de vista formal, é um conjunto de postulados vazios e indeterminados; vale dizer, é abstrata. Sua efetividade, sua concretude provém do mundo exterior, objetivando-se nos comportamentos que um determinado grupo social entenda devam ser adotados diante da realidade.

Muitos grupos, muitas éticas --- isto é, díspares manifestações desta última no concreto. Um desses grupos é a sociedade civil, o mais amplo deles. Entre nós, no nosso tempo, a ética adotada para reger as relações reguladas pelo chamado direito moderno é a ética de legal idade.

Note-se bem --- e isso é o que estou a sustentar --- note-se bem que o agir humano por ela conformado não é, necessariamente, aquele que seria determinado por uma ética fundada na busca de justiça. Repita-se: o universal é irredutível ao concreto --- a idéia é quase nunca conciliável com a realidade.

12. - Por isso, talvez, há no ar uma vontade de superação da cisão entre o direito e moral.

A importação de valores éticos para dentro do horizonte do jurídico permitiria qualificar como tal, como jurídico, apenas um sistema normativo, ou uma norma singular, dotado de certo conteúdo de justiça.

O que permitiria caracterizar como válida a norma ou o sistema de normas seria esse conteúdo de justiça.

Mesmo em certas decisões judiciais de quando em quando surge, em discursos que desbordam da racionalidade, o apelo à moralidade como razão de decidir. Tal e qual texto normativo estariam a violar o ordenamento, ou seriam mesmo inconstitucionais, por comprometerem a moralidade ou princípio da moralidade.

13. - É certo, como anotei em outra oportunidade7, que a Constituição do Brasil define a moral idade como um dos princípios da Administração. Não a podemos, contudo, tomar de modo a colocar em risco a substância do sistema de direito. O fato de o princípio da moralidade ter sido consagrado no art. 37 da Constituição não significa abertura do sistema jurídico para introdução, nele, de preceitos morais.

Daí que o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no interior do próprio direito. A sua contemplação não pode conduzir à substituição da ética da legalidade por qualquer outra. O exercício da judicatura está fundado no direito positivo [= a eticidade de HEGEL]. Cada litígio há de ser solucionado de acordo com os critérios do direito positivo, que se não podem substituir por quaisquer outros. A solução de cada problema judicial estará necessariamente fundada na eticidade [= ética da legalidade], não na moralidade. Como a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade, a admissão de que o Poder Judiciário possa decidir com fundamento na moralidade entroniza o arbítrio, nega o direito positivo, sacrifica a legitimidade de que se devem nutrir os magistrados. Instalaria a desordem.

Eis então porque resulta plenamente confinado, o questionamento da moral idade da Administração --- e dos atos legislativos --- nos lindes do desvio de poder ou de f inalidade.

Qualquer questionamento para além desses limites apenas poderá ser postulado no quadro da legal idade pura e simples. Essa circunstância é que explica e justifica a menção, a um e a outro princípio, na Constituição e na legislação infraconstitucional. A moral idade da Administração --- e da atividade legislativa, se a tanto chegarmos --- apenas pode ser concebida por referência à legal idade, nada mais.

14. - Digo-o com ênfase porque o que caracteriza o surgimento do chamado direito moderno --- esse direito que chamo direito posto pelo Estado, opondo-o ao direito pressuposto --- é precisamente a substituição do subjetivismo da eqüidade pela objetividade da lei. A lei em lugar da vontade do rei.

Isso significa a substituição dos valores pelos princípios. Não significa que os valores não sejam considerados no âmbito do jurídico. Não significa o abandono da ética. Significa, sim, que a ética do direito moderno é a ética da legal idade.

A legalidade supõe a consideração dos valores no quadro do direito, sem que, no entanto, isso conduza a uma concepção substitutiva do direito pela moral. O sistema jurídico deve por força recusar a invasão de si mesmo por regras estranhas a sua eticidade própria, regras advindas das várias concepções morais ou religiosas presentes na sociedade civil. E -- - repito-o --- ainda que isto não signifique o sacrifício de valorações éticas. O fato é que o direito posto pelo Estado é por ele posto de modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume8 a sociedade civil, conferindo concomitantemente a esta a forma que a constitui.

15. - Os valores, teleológicos, alcançam o direito pelo caminho deontológico dos princípios. Porém isso assim se dá sem que seja esquecida a distinção hegeliana entre moral idade e eticidade. A moral idade respeita às virtudes do homem na sua subjetividade, ao passo que a eticidade repousa sobre as instituições e as leis --- o nomos. Homem virtuoso será, em ambos os casos, o que exerce de modo adequado o seu predicado essencial, o ser racional;virtuoso é o homem que usa a razão [logos] exercitando a prudência [phrónesis]. No plano da eticidade, o homem já não é visto isoladamente, porém inserido no social, logo sujeito às instituições e às leis. Virtuoso então, desde a perspectiva da tradição que vai de PLATÃO a HEGEL, no plano da eticidade, é o homem que respeita as instituições e cumpre as leis.

Daí porque cumpre nos precavermos em relação aos que afirmam o antipositivismo sem limites, desavisados de que a ética da legal idade não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Certo conteúdo de justiça por certo se impõe na afirmação do direito, mas conteúdo de justiça interno a ele, quer dizer, conteúdo de justiça positivado.

16. - A multiplicidade das morais e dos sistemas éticos nos deixaria sem rumos e sem padrões de comportamento se não pairasse sobre todas elas a legalidade. Não obstante, diante da multiplicidade de morais e de sistemas éticos aos quais nos podemos vincular há quem sustente, em última instância, que a moralidade é expressão de uma assim chamada ética pública. Mas essa moral idade pública não pode operar como critério de juízos praticáveis no âmbito do direito, pois compromete a segurança e certeza jurídicas na medida em que, como observa JOSÉ ARTHUR GIANOTTI9, compreende um aprender a conviver com os outros, um reconhecimento da unilateralidade do ponto vista de cada qual, que não impõe conduta alguma.

17. Fui ironicamente acusado de ser, no exercício da magistratura, um positivista à outrance. Mas é que sei, muito bem, que a legalidade é o derradeiro instrumento de defesa das classes subalternas diante das opressões, em todas as suas múltiplas e variadas manifestações. Por isso --- permitam-me repeti-lo --- o Poder Judiciário não está autorizado a substituir a ética da legalidade por qualquer outra.

Leio em PIETRO PERLINGIERI --- A legalidade constitucional, cuja tradução está em vias de publicação entre nós --- observações que me colocam à margem de qualquer ironia: "A positividade do direito está em ser ele interpretável (...) A interpretação deve levar em consideração referências externas ao texto, resultando estéril qualquer interpretação limitada a um 'significado próprio das palavras' (...) O momento do factual é absolutamente inseparável do momento cognoscitivo do direito". O direito positivo há de ser continuamente reenviado a elementos extra-positivos, sem que isso signifique senão superação do positivismo meramente lingüístico, dado que --- diz PERLINGIERI --- "ao intérprete não é consentido passar por cima ou ignorar o texto". Por isso mesmo permaneço no âmbito de uma positividade que ousaria chamar de positividade democrática, sem ceder aos populismos que tomam a opinião pública e o consenso das massas como fonte do direito.

18. É essa positividade democrática que, na morte de Sócrates, preserva o bem da cidade. Porque era sábio, Sócrates não foge, embora sua morte perpetrasse uma injustiça. Pois a essa injustiça para ele correspondia, em um mesmo momento, o bem --- isto é, a justiça --- da cidade. Ainda que a justiça para Sócrates coincidisse com a injustiça da cidade, Sócrates não deseja escapar às leis da cidade e não foge. Bebe o veneno que o mata, porém sabemos que Anito e Meleto, embora o pudessem matar, não poderiam causar-lhe dano10. O direito constitui a única resposta racional possível à violência de toda a sociedade. Tanto a soberania quanto a sua lei [escrita] justificam-se --- como anota ELIGIO RESTA11 ---em virtude da necessidade de coartar-se a violência natural de todos nós. É à positividade do direito que Sócrates presta acatamento ao não escapar da cidade.

19. - A exigência de comprovação de idoneidade moral do cidadão enquanto requisito de elegibilidade sob a égide da presunção de culpabil idade contemplada em lugar nenhum da Constituição (qualquer pessoa poderá ser considerada culpada independentemente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória) instala a incerteza e a insegurança jurídicas.

Consubstancia uma violência. Substitui a objetividade da lei [rectius da Constituição] pelo arbítrio dos que o possam exercer por fundamentos de força, ainda que no desempenho de alguma competência formal bem justificada.

Prevalecerá então a delação, como ocorreu por longo tempo na velha Roma. As túnicas brancas que os Ministros Carlos Britto e Lewandowski mencionaram há pouco, túnicas tão brancas nos filmes da Metro, não foram suficientes para ocultar a perfídia. A delação prevalecia. Tristes tempos, qual os descreve PAUL VEYNE12, que o abandono da phrónesis reeditará entre nós. Os primeiros atos dos regimes de terror que a História registra em páginas torpes sempre avançaram sobre a intimidade dos cidadãos, de modo que, de governados, eles vieram sendo transformados em meros instrumentos do governo.

Depois, a ansiedade por justiça a qualquer preço, que domina as massas. Observei sucessivamente, em texto escrito com o Professor LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO13, que a violência faz parte do cotidiano da sociedade brasileira, e de modo tal que isso nega a tese do homem cordial que habitaria a individualidade dos brasileiros. (...) Aqui as virtudes republicanas encontram seus limites no privado, o que nos coloca diante da absoluta imprecisão dos limites da legalidade. As garantias da legalidade e do procedimento legal, conquistas da modernidade das quais não se pode abrir mão, são afastadas, inconsciente, a sociedade, de que assim tece a corda que a enforcará. (...) Na democracia brasileira, as massas não exercem participação permanente no Estado; são apenas eleitoras. Em determinados momentos, contudo, elas despontam, na busca, atônita, de uma ética --- qualquer ética --- o que irremediavelmente nos conduz ao "olho por olho, dente por dente". (...) Sob a aparência da democracia plebiscitária e da justiça popular, perecem os direitos individuais, fundamentos da cidadania moderna, tais como foram construídos ao longo da ascensão burguesa e consolidados pelas duas revoluções do século XVIII, a política e a econômica. É tragicamente curioso que os valores mais caros à modernidade iluminista, a liberdade de expressão e de opinião, tenham se transformado em instrumentos destinados a conter e cercear o objetivo maior da revolução das luzes: o avanço da autonomia do indivíduo. Não bastasse isso, os ímpetos plebiscitários, autorizados pelas leis da imprensa [a imprensa, segundo PAUL VIRILIO, goza da prerrogativa de editar as suas próprias leis!], os ímpetos plebiscitários autorizados pelas leis da imprensa colocam em risco o sistema de garantias destinado a proteger o cidadão das arbitrariedades do poder, seja ele público ou privado.

20. Quase concluindo, ocorre-me ainda, em homenagem a um dos cânones primordiais da ética judicial, o da neutral idade --- o juiz há de se manter estranho, não se engajando nos conflitos que estão incumbidos de solucionar ---, paragonar pequeno trecho de artigo do Professor BELLUZZO14, publicado esta semana: os juízes que de qualquer forma se engajaram no movimento que a mídia chama de "defesa das listas sujas" deverão ter o cuidado de argüir a própria suspeição caso estejam envolvidos em processos que examinem acusações contra os "listados".

21. Jornal desta manhã afirma que a sessão de hoje, neste tribunal, pode ser um divisor de águas na luta pela moralização da vida pública. Não é verdade. Esta sessão será, sim, um divisor de águas, mas no sentido de reafirmar peremptória, incisiva, vigorosamente as garantias democráticas.

É necessário que esta Corte cumpra o dever, que lhe incumbe, de defesa da Constituição, por cuja suspensão, algumas vezes, a sociedade tem clamado.

Então somos originais --- observei em outra ocasião15 --- somos tão originais que dispensamos quaisquer déspotas para nos tornarmos presa do pior dos autoritarismos, o que decorre da falta de leis e de Constituição. O estado de sítio instala-se entre nós no instante em que recusamos aos que não sejam irmãos, amigos ou parentes o direito de defesa, combatendo-os --- aqui uso palavras de PAULO ARANTES16 --- como se fossem "parcelas-fora-da- Constituição". Ao abrir mão das garantias mínimas do Estado de direito, o que poderíamos chamar de a nossa sociedade civil submete-se a um estado de exceção permanente, prescindindo de qualquer déspota que a oprima. Logo declinará até mesmo do direito de defesa que se prestaria a beneficiar seus irmãos, amigos e parentes próximos. Já não merecerá nenhum respeito quem renega sua própria história --- qual anotou HELLER17 --- e perde o respeito pelas instituições.

Voto para afirmar a desabrida improcedência da ação.

1 Art igo 14, § 9º da CB: "§ 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibi l idade e os prazos de sua cessação, a f im de proteger a probidade administrat iva, a moral idade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normal idade e legi t imidade das eleições contra a inf luência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta" (redação dada pela Emenda Const i tucional de Revisão nº 4, de 1994) .

2 Acórdão n. 5.864, de 23.09.76, relator designado Ministro Lei tão de Abreu, in Bolet im Elei toral , n. 302, p. 720.

3 Sobrevieram as Leis Complementares ns. 64, de maio de 1990, e 81, de 13 de abri l de 1994.

4 Diário do Congresso Nacional (Seção I I ) , 16.01.1982, p. 295.

5 - In PAUL NIZAN - Démocr i te Épicure Lucrèce - les matérial istes de l 'ant iqui té ( textes choisis) , Ar léa, Paris, 1.991, p. 151.

6 - HABERMAS, JÜRGEN - Fakt izi tät und Gel tung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1.992, p. 241.

7 O direi to posto e o direi to pressuposto, 7ª edição, Malheiros Edi tores,São Paulo, 2.008, pp. 289 e ss.

8 Suprassumir como "desaparecer conservante", para traduzir Aufheben, no sentido apontado por Paulo Meneses, tradutor de Hegel na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (Edições Loyola, São Paulo, 1.995, nota do tradutor, p. 10). Vide Michael Inwood, Dicionário HEGEL, trad. de Álvaro Cabral, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1.997, pp. 303-304), em especial o seguinte trecho:
"Aufheben é semelhante à NEGAÇÃO determinada que tem um resultado positivo. O que resulta da suprassunção de algo, por exemplo, o todo em que ele e seu oposto sobrevivem como momentos, é invariavelmente superior ao item, ou à VERDADE do item suprassumido"

9 Moral idade públ ica e moral idade privada, in "Ét ica", Adauto Moraes[org. ] , Companhia das Letras, São Paulo, 2.007, p. 336.

10 Vide El igio Resta, La certezza e la speranza, Laterza, Bar i , 1992, p. 31

11 Idem, pp. 27-28.

12 L'Empire greco-romain, Édi t ions du Seui l , Par is, 2005, pp. 41-44.

13 "Direi to e mídia, no Brasi l ", in Debate sobre a Const i tuição de 1988, Demian Fiocca e Eros Roberto Grau [org. ] , Paz e Terra, São Paulo, 2001, pp. 105 e ss.

14 Lista suja, Just iça lenta, in Carta Capi tal , número 507, 6 de agosto de 2008, pág. 27.

15 Déspota de si mesmo, in Carta Capi tal , n. 448, 13 de junho de 2.007, pág. 23.

16 Ext inção, Boi tempo, São Paulo, 2007, pág. 45.

17 V. Hermann HELLER, "Rechtsstaat oder Diktatur?" in Gesammel te Schr i f ten, 2ª ed, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck) , 1992, vol . 2, pág. 460.

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