Debate - "Houve abuso de autoridade na Operação Satiagraha ?"
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Da Redação
terça-feira, 22 de julho de 2008
Atualizado às 11:06
Debate
Debate - "Houve abuso de autoridade na Operação Satiagraha ?"
O jornal O Estado de S. Paulo publicou na última quinta-feira, 17/7, um debate com o título "Houve abuso de autoridade na Operação Satiagraha ?" com a apresentação de dois artigos - um do advogado criminalista Adriano Salles Vanni, defendendo a tese de que houve, sim, abuso, e outro do juiz De Sanctis, que justificou, segundo o jornal, com devaneios filosóficos a necessidade de abusos.
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Veja abaixo os artigos.
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___________________Protestos verbais
Não houve abuso de autoridade na Operação Satiagraha
Fausto Martin De Sanctis*
Que bom poder dizer a si e ao mundo que se vive em pleno exercício das liberdades de um Estado verdadeiramente de Direito, no qual valores supremos como segurança, bem-estar, igualdade e justiça inserem-se numa sociedade fraterna e pluralista.
A busca do ideal afigura-se uma cruzada perseguida por todos, cada qual no âmbito de sua atuação, e demanda atitudes que não podem se amesquinhar em meros protestos verbais passageiros.
Como dizia Abraham Lincoln, "pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes". Em outras palavras, faz-se necessário, mais que defender uma idéia ou um valor elevado, persistir no ideal, sendo certo que este tem que se voltar ao universo de relacionamentos e de atividades gerais de uma pessoa. Não basta, pois, ingressar na luta por um determinado entendimento de forma momentânea.
Por outro lado, não se trata de estar além do bem e do mal ou de luta contra este. Em outro diapasão, "essência", aquilo que representa a expressão de seu melhor como ser humano como postura global.
Ora, o ideal da vida em liberdade de todos não deveria sofrer limitação, mas esta se fundamenta no caso em que são colocados em xeque os valores já citados que propiciam uma vida tranqüila a pessoas de bem e verdadeiras.
Lamentavelmente, não se tem notícia de sociedade que tivesse chegado a tamanho grau de evolução, salvo raras intactas tribos indígenas que, de primitivo, pode-se tão-somente invocar alguns instrumentos e objetos inerentes, mas que em verdade representam grandeza do ser: pureza, honestidade e amor. Quanta sofisticação!
Esse mundo ideal, que por todos é perseguido, por vezes é subitamente interrompido com os acontecimentos "normais" da vida de uma sociedade contemporânea que se concebeu na busca incessante de um bem-estar abstrato, que, de fato, entristece mais do que engrandece.
A terra limpa e abençoada da liberdade é, pois, tomada por alguns que aspiram a uma felicidade fictícia e construída a partir da desgraça ou menosprezo alheio.
A adoção, sopesada, de determinadas formas de restrição do direito de ir e vir não significa repúdio aos valores supremos da sociedade, mas forma de resgate dos primeiros para a salvaguarda de um momento, quando não da própria existência do modelo social eleito. Viver em paz e livre requer muitas vezes dos que se esquecem dos preceitos sociais legítimos a resposta estatal. Não se pode rivalizar com as pessoas de bem.
As custódias cautelares (legalmente previstas) decorrem, apesar da excepcionalidade, do destemor e desrespeito às instituições regularmente constituídas no país, para que as atividades de persecução estatal tenham seu curso natural.
Por vezes, urge garantir de forma veloz o resultado da investigação criminal, pela necessidade da audiência imediata dos investigados, para que seja possível confrontar com a prova já produzida ou a produzir, evitando-se destruição ou manipulação dos indícios existentes, em prejuízo da busca da verdade.
Tais mecanismos devem ser encarados com naturalidade quando haja embasamento suficiente, até porque a lei, a expressão de um povo, assim desejou: a verdade uma vez detectada permite conhecer e aperfeiçoar a sociedade em que vivemos.
Naturais também são os mecanismos hoje existentes de combate à macrocriminalidade que instrumentalizam o processo penal como a interceptação telefônica, de dados, a quebra dos sigilos bancário e fiscal etc., institutos, aliás, utilizados por todos os países responsáveis e civilizados.
A sociedade contemporânea não pode dispensar, lamentavelmente, os mecanismos citados (verdadeiramente eficazes) para lidar com a criminalidade citada, a fim de continuar perseguindo ou tentando perseguir a mesma pureza, honestidade e amor dos nossos nativos (os índios).
A reflexão verdadeira de tais instrumentos processuais (investigações policiais, interceptações telefônicas etc) não pode ir ao encontro deste povo, feliz, é certo, mas muito injustiçado, merecendo urgentemente resgatar sua auto-estima.
Senhores legisladores, mantenham-se, por favor, fiéis a nós mesmos (brasileiros comuns, simples, espontâneos, criativos, musicais e transcendentes), "com a lei, pela lei e dentro da lei, porque fora da lei não há salvação" (Rui Barbosa de Oliveira), mas com a lei penal ou processual penal verdadeiramente legítima para um Estado de Direito.
Com certeza, e somente de tal forma (não há outra), um grande êxito advirá e as pessoas poderão se orgulhar e reconhecer novamente neste país uma terra limpa e abençoada.
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Falta de originalidade
Houve abuso de autoridade na Operação Satiagraha
Adriano Salles Vanni*
As operações da Polícia Federal - autorizadas por mandados judiciais - seguem roteiro invariável limitado a duas fases: interceptações telefônicas e apreensões de bens e prisões.
Das interceptações telefônicas, saem interpretações para incriminar todos: quem falou ao telefone, aquele de quem se falou ou de quem nada se falou, mas o intérprete, por feeling, concluiu que se falou. O arrastão não poupa ninguém: o dono da empresa, o sócio, a esposa, o filho, a secretária, o funcionário, o contador. Todos serão alvo de diversas imputações, dentre as quais uma é invariável: quadrilha. O rótulo tem inestimável utilidade, por seu caráter infamante e, ao mesmo tempo, impactante. Nenhum jornal vai se atrever a escrever algo favorável a quadrilhas.
Nem mesmo juízes escaparão desse rótulo se, no passado, decidiram algo em favor da futura "organização criminosa". Agora, também jornalistas podem integrar a "organização". Basta que dêem o furo antes da fase própria dos holofotes. A interpretação é de que o jornalista pretendeu alertar a quadrilha através do jornal. Nesse contexto, todos podem ter a prisão decretada e ficar em débito com a sociedade: devem provar sua inocência, em meio às divulgações, a conta-gotas, de conversas incriminadoras, convenientemente selecionadas e vazadas à imprensa.
Os trechos escolhidos conferem aura nebulosa aos diálogos. "É conversa própria de quadrilha", sugere a PF. Os policiais conseguem traduzir os diálogos cifrados de modo a ajustá-los ao crime imaginado. Entretanto, quem examina os autos e coteja as interpretações com a realidade vê que aquelas, não raras vezes, beiram o ridículo.
Recentemente, um processo decidido por respeitável ministro do Supremo Tribunal Federal foi citado em conversas de terceiros. Na interpretação da PF, tratava-se de suborno. Os intérpretes das conversas tropeçaram em "pequeno" detalhe jurídico: desconheciam que a matéria estava consolidada na Corte e que a decisão não poderia ser outra. O fato, quanto muito, seria venda de fumaça, prática tão velha quanto o sexagenário Código Penal.
Em outro episódio, a PF concluiu, com base em cópia de e-mail entre terceiros, ter um juiz restituído uma Kombi para atender a interesse de virtual quadrilha, como se decidir de uma forma ou de outra não fizesse parte da atividade de qualquer juiz. Esqueceram de checar o trivial: se existia alguma Kombi apreendida no processo e se foi efetivamente restituída. Muito poderia ser dito, mas para encurtar a história: não existia nem Kombi, nem outro veículo no processo.
Esses exemplos são de feeling policial utilizado contra juízes. É possível, por isso, imaginar o quanto de arbitrariedades se pratica contra cidadãos comuns. Para se ter uma ligeira noção, em recente operação-show, os policiais realizaram busca em consultório dentário à procura de suposto doleiro chamado Marco. O dentista disse chamar-se Fábio, mas os policiais insistiram: confesse que seu nome é Marco... pára de chorar, bichinha...
Em tempos como este, nem mesmo aos mortos é permitido descansar em paz. Em operação-show ocorrida em 2003, foi incluída como chefe de "quadrilha" pessoa falecida em 1964. Na mesma operação, Hugo Sterman ficou preso por 11 dias, confundido com outro Hugo.
No que diz respeito a bens, a lei admite apreensão somente quando caracterizados como produto de crime. Mas o arrastão colhe tudo. A exibição pública da apreensão de automóveis, barcos, dinheiro e toneladas de documentos é irretocável sob o ponto de vista de espetáculo. Sob o prisma legal, todavia, só guarda semelhança com as medidas previstas no Manual dos Inquisidores do século XV. O rótulo de herege, por si só, autorizava o Santo Ofício a confiscar-lhe todos os bens. Afinal - disse o inquisidor La Peña -, quando questionado sobre o direito real dos acusados: um herege desses seria indigno de tanta bondade.
A apreensão de veículos vem se revelando útil. Servem eles, sob depósito fiel, para uso da polícia em suas diligências. Estará ela livre, entre outros ônus, de multas por infrações de trânsito (em apenas um desses casos, mais de 40 multas e procedimento para perda da habilitação foram impingidos ao proprietário do veículo, enquanto este era utilizado pela polícia).
A prova por excelência da culpa, prevista no famigerado Manual dos Inquisidores, era a confissão. Esta deveria ser extraída mediante fraude, ardil e, em último caso, através da tortura. Há algo moderno que faz lembrar aquele método: a prisão cautelar como meio de obtenção de confissões e delações. Embora a lei atual especifique as hipóteses excepcionais de prisão cautelar (jamais como forma de coação para a confissão ou delação), a medida tornou-se regra nessas operações, cujo escamoteado objeto (abjeto) é o escambo da liberdade. Como disse Tocqueville (1805-1859), a história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias.