Associação Jurídico-Espírita de SP quer espiritualizar o Judiciário e defende o uso de cartas psicografadas nos tribunais
Em extensa matéria, o jornal Folha de S.Paulo fala da recém-criada Associação Jurídico-Espírita de SP que tem o objetivo de discutir temas polêmicos como o aborto, a eutanásia, o casamento gay, a pena de morte e as pesquisas de células-tronco. A Associação também defende o uso de cartas psicografadas nos tribunais.
Da Redação
segunda-feira, 19 de maio de 2008
Atualizado às 08:32
Espiritualizar o Judiciário
Em extensa matéria, o jornal Folha de S.Paulo fala da recém-criada Associação Jurídico-Espírita de SP que tem o objetivo de discutir temas polêmicos como o aborto, a eutanásia, o casamento gay, a pena de morte e as pesquisas de células-tronco. A Associação também defende o uso de cartas psicografadas nos tribunais.
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Confira abaixo a íntegra da matéria.
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Associação Jurídico-Espírita de SP quer espiritualizar o Judiciário
Além de juízes, entidade reúne promotores, delegados e advogados; "o Estado é laico, mas as pessoas não", diz o promotor Tiago Essado.
Eles defendem um Judiciário mais sensível às questões humanitárias, dizem que a maior lei é a de Deus, vêem na condenação penal e na própria função uma missão de vida, defendem o uso de cartas psicografadas nos tribunais e estimulam, nas audiências, a fraternidade entre vítimas e criminosos.
Discutir temas polêmicos, como o aborto, a eutanásia, o casamento gay, a pena de morte e as pesquisas de células-tronco, condenados pelas religiões cristãs, são alguns dos objetivos da recém-criada AJE - Associação Jurídico-Espírita de São Paulo, que teve anteontem a primeira reunião deliberativa, e já existe no RS e no ES.
"O Estado é laico, mas as pessoas não. Não tem como dissociar e dizer: vou usar a minha fé só dentro do centro espírita", afirma o promotor Tiago Essado, um dos fundadores da AJE.
Embalada na esteira do crescimento da Abrame - Associação Brasileira de Magistrados Espíritas, que hoje reúne 700 juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores, e que aceita apenas togados como membros, a AJE surge com uma proposta de abranger todos os operadores do direito e já conta com 200 associados ou interessados, entre promotores, delegados de polícia e advogados, além de juízes.
Embora juristas não vejam ilegalidade no fato de juízes se reunirem em associações religiosas, a questão levanta discussões como:
1) o laicismo, princípio que prega o distanciamento do Estado da religião;
2) a contaminação de decisões por valores ou crenças de caráter religioso ou pessoal;
3) e o caráter científico do direito positivo, que deve se basear em verdades comprovadas, e não, como a religião, em verdades reveladas.
Além dos tribunais superiores (entre outros, o vice-presidente do STJ, Francisco Cesar Asfor Rocha, é um dos integrantes da diretoria da Abrame), a convicção espírita permeou também o CNJ, o órgão de controle externo do Judiciário.
"Não enxergaria nenhuma diferença entre uma declaração feita por mim ou por você e uma declaração mediúnica, que foi psicografada por alguém", diz Alexandre Azevedo, juiz-auxiliar da presidência do CNJ, designado pelo conselho para falar a respeito das associações.
A Folha levantou quatro decisões em que cartas psicografadas, supostamente atribuídas às vítimas do crime, foram usadas como provas para inocentar réus acusados de homicídio.
Segundo Zalmino Zimmermann, juiz federal aposentado e presidente da Abrame, o propósito da associação "é questionar os poderes constituídos para que o direito e a Justiça sofram mais de perto a influência de espiritualizar".
"O objetivo geral é a espiritualização e a humanização do direito e da Justiça", diz.
Para o juiz de direito Jaime Martins Filho, a escolha de sua profissão não foi uma casualidade e, por isso, a exerce como uma missão de vida.
"Não acredito em acaso, mas numa ordem que rege o universo, acredito em leis universais."
E ele explica "a finalidade religiosa da associação".
"Dentro da liberdade de religião, são os juízes aplicando princípios religiosos no seu dia-a-dia. Temos um foco que é a magistratura, procurar trabalhar esses valores espirituais que estão relacionados com a própria religião dentro da magistratura", diz Martins Filho.
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Juristas vêem "deturpação" do Estado democrático de Direito
Juristas e teóricos do direito consultados pela Folha dizem ver uma "deturpação" do Estado democrático de Direito na medida em que decisões judiciais são fundamentadas ou contaminadas por valores ou critérios religiosos.
Para Dalmo de Abreu Dallari, professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, e autor dos livros "O Poder dos Juízes" e "O Futuro do Estado", "o uso de psicografia é claramente ilegal".
"Não há o reconhecimento disso no sistema jurídico brasileiro. Se isso for a prova o julgamento é nulo. Não pode", diz.
Um dos maiores teóricos do direito brasileiro, Marcelo Neves, professor de teoria do Estado da USP e de teoria do direito do doutorado da PUC, diz haver uma "descaracterização dos princípios do Estado constitucional moderno" na aplicação de valores espíritas no dia-a-dia do Poder Judiciário.
"Não podem se definir posições sobre casos jurídicos a partir de uma percepção religiosa do mundo. A partir do momento que esses magistrados não conseguem se desvincular é um problema gravíssimo para o Estado de Direito, que parte do princípio de ser um Estado laico e que posições religiosas diversas não podem ser determinantes no processo de decisão jurisdicional", afirma Marcelo Neves.
Cidadania
Para Dallari, a associação de juízes espíritas é "exercício de cidadania". "Os juízes têm plena liberdade religiosa como todos os demais cidadãos, como têm o direito de associação."
Mas, segundo o jurista, "se isso interferir no desempenho da função jurisdicional, aí sim se torna ilegal e ofende a laicidade". "Nunca tive notícia de juízes espíritas."
Segundo Neves, o uso de psicografia nos tribunais "é um perigo" e só tem significado nos campos religioso e pessoal.
"Isso não pode passar para o plano jurídico porque realmente é uma interferência destrutiva da consistência do Estado democrático de Direito."
"Não existe amparo legal na utilização do sobrenatural", completa Dallari.
"Escorar uma decisão com base numa prova psicografada não tem ressonância no mundo jurídico. É indevida uma decisão que se embasa na psicografia, que cientificamente não é comprovada", diz Walter Nunes da Silva Júnior, presidente da Ajufe.
Livros como "A Filosofia Penal dos Espíritas" e "A Psicografia ante os Tribuanais" já foram lançados no meio jurídico-espírita.
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"Não se podem definir posições sobre casos jurídicos a partir de uma percepção religiosa"
Marcelo Neves
Professor de direito da USP e da PUC
"Não há o reconhecimento [de psicografia] no sistema jurídico brasileiro"
Dalmo Dallari
Professor aposentado da USP
Congresso analisa projeto que veta psicografia em processos
Polêmica no meio jurídico, cartas psicografadas por médiuns espíritas, alguns consagrados, como Chico Xavier (morto em 2002), já foram usadas em diversos julgamentos em casos de homicídios para inocentar réus.
Atribuídas às vítimas, as supostas psicografias foram usadas no tribunal do júri, onde os jurados não fundamentam seus votos, o que dificulta uma avaliação sobre a influência dos textos na absolvição.
A Folha levantou ao menos quatro casos, o mais recente de maio de 2006, num caso ocorrido em Viamão (região metropolitana de Porto Alegre).
Por 5 votos a 2, o júri inocentou Iara Marques Barcelos da acusação de mandante de homicídio. No julgamento, o advogado Lúcio de Constantino leu as cartas psicografadas no tribunal como estratégia de defesa para absolver a cliente da acusação de encomendar a morte do tabelião Ercy da Silva Cardoso. Os documentos foram aceitos porque foram apresentados em tempo legal e o Ministério Público não pediu a impugnação deles.
Não constava das cartas, psicografadas por Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, o suposta autoria real do crime.
Em outro caso polêmico, ocorrido em março de 1980 no Mato Grosso do Sul, José Francisco Marcondes de Deus, condenado pela morte da mulher, Cleide Maria Dutra de Deus, ex-miss Campo Grande, teve a pena prescrita após a apresentação de um recurso fundamentado numa suposta psicografia feita por Chico Xavier.
O juiz aposentado Orimar Bastos, que já decidiu com base em suposta prova psicografada, diz que a psicografia "pode ser levada em consideração desde que esteja em harmonia com o conjunto de outra provas".
Tramita no Câmara um projeto de lei, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, que altera o Código de Processo Penal de forma a proibir expressamente o uso de psicografia como prova criminal.
"A psicografia tem provocado inquietude na comunidade jurídica em razão da validade ou não do material", questiona o deputado licenciado Robson Lemos Rodovalho (DEM-DF), da bancada evangélica no Congresso.
"É um documento como outro qualquer", diz Alexandre Azevedo, juiz-auxiliar da presidência do CNJ .
Permanência de crucifixo nos tribunais brasileiros já foi motivo de polêmica
Instalado na maioria dos tribunais, dos de primeira instância ao STF, o crucifixo, que simboliza os últimos momentos de Jesus na cruz, dividiu juízes em todo o país.
Os defensores da idéia de que o adorno deveria ser retirado dos tribunais argumentavam que o Estado brasileiro é laico e que a presença do crucifixo causaria constrangimento aos que não professam o catolicismo ou qualquer outra religião de fundamento cristão.
Já os que defendem a presença sustentavam que a ostentação do crucifixo está em consonância com a fé da grande maioria da população e que não há registro de usuário da Justiça que diga ter sido constrangido pela presença do símbolo religioso em uma sala de audiência.
Por fim, o Conselho Nacional de Justiça rejeitou o pedido de proibição de crucifixos nas dependências de tribunais. A maioria dos conselheiros disse que a tradição não fere a laicidade do Estado. O pedido de retirada havia sido feito em nome da ONG Brasil para Todos.
Juízes católicos
Além das associações de juízes espíritas, existe no Brasil outras associações de juristas católicos.
O objetivo da União Paulista de Juristas Católicos, segundo o grupo, é "estudar as questões jurídicas à luz de ensinamentos cristãos".
Fundada em 1994 por sugestão da "Union Internationale des Juristes Catholiques", de Roma, a União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro diz ter por finalidade "contribuir para a presença da ética católica na ciência jurídica e na atividade judiciária" brasileira.
Entre os diversos grupos de trabalho, estão os que condenam a pena de morte, a adoção por casais homossexuais, a eutanásia e defendem o ensino religioso.
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12/9/07 - CSMP decide sobre crucifixo em prédio público - clique aqui.
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30/5/07 - ONG quer tirar crucifixos das paredes dos tribunais. Para o CNJ, uso de símbolos religiosos não fere laicidade do Estado - clique aqui.
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13/4/07 - "Psicografia como meio de prova: para além do tecnicismo jurídico" - Thatiana Lessa - clique aqui.
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12/3/07 - "Psicografia e prova penal" - Renato Marcão - clique aqui.
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4/8/06 - Circus - "Entre Santos e Demônios" - por Adauto Suannes - clique aqui.
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19/9/05 - Juiz de Porto Alegre defende a retirada de crucifixos das salas de audiência - clique aqui.
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15/6/04 - "A Psicografia Ante os Tribunais" - livro escrito pelo advogado Miguel Timponi - clique aqui.
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