Anistia plena teorizada por Rui Barbosa encontra freios contemporâneos
Limitações contemporâneas, principalmente em respeito aos direitos humanos, mostram tensionamento entre o ideal de anistia e a necessidade de memória e responsabilização.
Da Redação
terça-feira, 25 de março de 2025
Atualizado às 07:54
"A anistia não é senão o olvido absoluto do passado. Nem a história, nem o direito, nem a política a admitem senão como preparatório a uma nova ordem de cousas." - Rui Barbosa
O conceito de anistia como esquecimento pleno e absoluto dos atos políticos passados encontra em Rui Barbosa um de seus mais consistentes formuladores no Brasil.
Como advogado, senador e teórico, Rui transformou a anistia em um instrumento jurídico e político voltado à restauração da ordem constitucional e à pacificação social, defendendo que sua aplicação fosse imediata, irrenunciável e irrevogável. O pensamento nasceu em meio às turbulências da jovem República, marcada por insurreições, autoritarismo e arbitrariedades estatais.
No entanto, a concepção irrestrita vem sendo cada vez mais tensionada no cenário contemporâneo, sobretudo diante de entendimentos como o da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que impõem limites à anistia quando se trata de graves violações aos direitos humanos.
Prisões "supositícias" e o HC 300
Durante o início turbulento da República, o governo de Floriano Peixoto enfrentava forte resistência, tanto de grupos civis quanto militares.
No Rio de Janeiro, oficiais da Marinha descontentes com o governo organizaram a Revolta da Armada (1893-1894), exigindo a convocação de novas eleições. No Sul, a Revolução Federalista (1893-1895) tinha raízes mais complexas, reunindo federalistas e até monarquistas contrários à centralização promovida pelos republicanos.
Em meio a esse ambiente de instabilidade, Floriano decretou estado de sítio, medida prevista na Constituição de 1891, que permitia a suspensão temporária de garantias individuais, como a liberdade de locomoção e de reunião.
Foi nesse cenário que Rui Barbosa atuou como advogado no famoso habeas corpus 300, impetrado no STF em 1892.
A ação foi proposta em defesa de 47 cidadãos presos após participarem de uma manifestação política que comemorava a recuperação do marechal Deodoro da Fonseca, que havia renunciado poucos meses antes.
Para Rui, o episódio não passava de um "fato policial" e o Estado de sítio decretado por Floriano era inconstitucional. Ele classificou como "prisões supositícias" aquelas efetuadas antes da publicação oficial do decreto, o que violaria garantias individuais.
Apesar do extenso esforço de argumentação - sua petição somava 76 páginas - o STF, por 10 votos a 1, rejeitou o pedido.
O tribunal entendeu que os atos do Executivo durante o Estado de sítio não poderiam ser revistos judicialmente antes da manifestação do Congresso, legitimando, inclusive, prisões que se prolongavam após o fim do decreto.
- Veja o acórdão.
A negativa não significou o fim da atuação de Rui Barbosa em defesa dos presos políticos detidos sob o governo de Floriano Peixoto. Diante da resistência do Judiciário em enfrentar os atos do Executivo durante o estado de sítio, Rui redirecionou sua estratégia para o campo político - e obteve êxito.
Rui passou a pressionar o governo e o Congresso Nacional pela concessão de anistia aos presos políticos, argumentando que a continuidade das detenções era incompatível com os princípios republicanos e com a legalidade constitucional. Ele via a anistia como uma saída política necessária para restaurar a normalidade institucional e corrigir as arbitrariedades cometidas durante o período de exceção.
O resultado da mobilização foi o decreto 72-B, de 5 de agosto de 1892, concedeu anistia aos cidadãos implicados nos acontecimentos políticos de 10 de abril de 1892, bem como nas revoltas das fortalezas da Lage e Santa Cruz, ocorridas em janeiro do mesmo ano.
Mesmo com a anistia concedida, algumas medidas repressivas permaneceram, o que levou Rui Barbosa a denunciar o caráter político do decreto.
Em artigo publicado no Jornal do Brasil em 10 de julho de 1893, intitulado "Como Deus com os Anjos", acusou o governo de ter concedido anistia apenas como um subterfúgio para legitimar suas próprias ações, afirmando que "simulou-se que se anistiavam os perseguidos, para se anistiar o perseguidor".
A "anistia inversa" de 1895
Os envolvidos na Revolta da Armada e na Revolução Federalista que ainda não tinham sido anistiados, obtiveram a benesse em 6 de setembro de 1895, quando o presidente Prudente de Morais editou o decreto 310.
Contudo, o decreto trazia uma inovação que, para Rui Barbosa, subvertia completamente o sentido da anistia: os militares anistiados teriam sua reintegração condicionada a restrições de natureza funcional, como:
- Proibição do exercício de função ativa;
- Redução proporcional do soldo;
- Impedimento de promoção.
Rui considerou a medida uma "anistia três vezes penal" e ajuizou ação declaratória de inconstitucionalidade contra essas cláusulas.
Embora tenha vencido em 1ª instância, viu o STF reformar a decisão na apelação cível 216. Para a maioria da Corte, a anistia era ato político, cabendo ao Legislativo e ao Executivo estabelecer suas condições, sem interferência do Judiciário.
A controvérsia levou Rui a escrever a obra "Anistia Inversa: caso de teratologia jurídica", onde formulou sua teoria definitiva sobre o instituto.
Para ele, a anistia "não é perdão, é esquecimento". Mais que extinguir a pena, ela apagaria o próprio crime: "repõem-se as coisas no mesmo estado em que estariam se a infração nunca tivesse sido cometida".
A anistia, segundo Rui, é irrevogável, irrenunciável, perpétua e irreformável. Uma vez concedida pelo poder competente, entra na esfera dos direitos adquiridos e nenhum Poder pode revogá-la. Sua inspiração vinha da abolitio romana e da tradição grega com Sólon, que impunha o juramento de "não lembrar o passado".
Anistia de 1905 e a Revolta da Vacina
A anistia de 1905, proposta por Rui Barbosa no contexto da Revolta da Vacina, é mais um episódio em que o jurista reafirma sua teoria da anistia como um instrumento de esquecimento total do passado punitivo - não como perdão condicional, nem como meio de reconciliação política.
A Revolta da Vacina ocorreu em novembro de 1904, como uma reação popular violenta contra a política sanitária implementada pelo governo de Rodrigues Alves, especialmente a vacinação obrigatória contra a varíola.
A repressão foi dura: tropas foram acionadas, houve mortes, prisões em massa e o desterro de centenas de pessoas para o Acre, tudo sem julgamento formal. A medida era vista como uma forma de exílio forçado, executada por decreto, ignorando as garantias do devido processo legal.
Rui Barbosa, defensor das liberdades públicas e crítico da arbitrariedade estatal, retornou com força ao debate político e jurídico nesse momento, agora como senador.
Em agosto de 1905, Rui apresentou diretamente no Senado um projeto de anistia ampla para os envolvidos na revolta. O texto era objetivo e incisivo: concedia anistia a todos os implicados nos "sucessos da noite de 14 de novembro de 1904", data considerada o estopim do movimento popular.
O projeto foi aprovado em setembro de 1905 (decreto 1.373), confirmando a tese de Rui de que o Estado precisava restabelecer a normalidade institucional e desfazer os efeitos penais e administrativos da repressão, como forma de reconstituir o tecido democrático.
Apesar da aprovação formal da anistia, a prática não refletiu imediatamente o comando legislativo: militares permaneceram presos e processos judiciais e administrativos continuaram em andamento.
O governo alegava que a anistia não teria efeito automático sobre certas sanções disciplinares.
Rui reagiu com veemência. Em setembro de 1905, voltou à tribuna do Senado para denunciar o descumprimento da medida e reafirmar, com base em sua doutrina, que "a anistia deve alcançar a todos como se os acontecimentos nunca tivessem ocorrido".
Ou seja, sua visão era de que a anistia tem efeito pleno, imediato e absoluto, apagando não só a pena, mas o próprio fato gerador da punição, o que tornaria ilegítimo qualquer ato que presumisse a permanência do delito ou da infração.
A Revolta da Chibata e a anistia traída
A Revolta da Chibata, ocorrida em novembro de 1910, marcou mais um ponto na trajetória de Rui Barbosa como defensor da legalidade e dos direitos fundamentais - desta vez em confronto direto com a arbitrariedade do poder Executivo.
A revolta foi liderada pelo marinheiro João Cândido Felisberto, conhecido como o "Almirante Negro", e teve como estopim os castigos físicos impostos aos marinheiros, como a chibata, prática ainda comum na Marinha mesmo após a abolição da escravidão. As péssimas condições de trabalho, os baixos salários e o racismo estrutural agravavam o cenário de insatisfação.
Os marinheiros rebelaram-se, tomaram o controle de navios de guerra e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro, exigindo o fim dos castigos físicos e a anistia dos revoltosos.
Em meio à crise, Rui Barbosa apresentou no Senado um projeto de anistia aos marinheiros. O Congresso aprovou rapidamente a proposta (decreto 2.280/1910), sob a promessa de que, com a anistia, os revoltosos entregariam as armas e a ordem seria restabelecidal.
De fato, João Cândido e os marinheiros aceitaram o acordo e cessaram a revolta confiando na palavra oficial do Estado. O movimento foi desmobilizado pacificamente, e parecia que uma solução institucional havia sido alcançada.
Poucos dias após o fim da revolta, o presidente Hermes da Fonseca rompeu o pacto. Marinheiros foram presos em massa, exonerados sumariamente e muitos mortos sob tortura ou executados extrajudicialmente, como no episódio do massacre na Ilha das Cobras, em que João Cândido sobreviveu, mas a maioria de seus companheiros morreu em condições brutais.
A anistia, embora formalmente promulgada, foi desrespeitada na prática, com o uso do aparato militar e administrativo para retaliar os insurgentes.
Rui reagiu publicamente e com firmeza. Denunciou a traição do governo e reafirmou que "a anistia, uma vez decretada, não pode ser burlada nem desfigurada pelo arbítrio do Executivo".
Para Rui, o caso da Revolta da Chibata era emblemático de um Estado que prometia em nome da lei, mas agia à margem da legalidade, reforçando sua luta por um regime fundado em garantias sólidas e no respeito à palavra estatal.
Em reconhecimento póstumo, foi sancionada a lei 11.756, de 23 de julho de 2008, que concedeu anistia post mortem a João Cândido Felisberto, líder da revolta, e aos demais envolvidos, visando restaurar os direitos que lhes haviam sido assegurados pelo decreto de 1910.
A teoria da anistia
Da experiência histórica e das sucessivas violações institucionais, Rui formulou uma teoria clara e robusta da anistia:
- É irrevogável, irrenunciável e de eficácia imediata;
- Apaga o crime e seus efeitos, como se nunca tivesse ocorrido;
- Não admite imposição de penalidades disfarçadas sob cláusulas administrativas;
- É de competência exclusiva do Legislativo;
- Tem efeitos retroativos e deve suprimir qualquer processo, punição ou registro.
Rui admitia que a anistia pudesse ter condições - desde que fossem voltadas à extinção ou mitigação da pena, não à criação de novas sanções. Quando aplicada após condenação, deve suprimir até a sentença. E quando antes do processo, impede-o de existir.
A anistia na transição democrática
A doutrina de Rui Barbosa ressurgiu com força durante a transição do regime militar para a democracia, especialmente com a promulgação da lei de anistia de 1979.
Embora inspirada no princípio do esquecimento político, a lei foi criticada por também proteger agentes do Estado responsáveis por torturas e execuções, violando padrões internacionais de justiça de transição.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que crimes contra a humanidade são imprescritíveis e inamnistiáveis, o que gerou forte tensão entre a doutrina clássica de Rui e os parâmetros modernos de responsabilização.
No julgamento da ADPF 153, em 2010, o STF optou por manter a validade da anistia, reconhecendo seu caráter "bilateral" e legitimando os termos negociados no final da ditadura.
A anistia na ordem constitucional de 1988
A Constituição de 1988 acolheu o instituto da anistia como ato político-legislativo de ampla repercussão, mas impôs novos limites.
O art. 5º, XLIII, determina que crimes como tortura, terrorismo e crimes hediondos não são suscetíveis de anistia - refletindo uma inflexão histórica em relação à doutrina de Rui.
Hoje, a anistia segue como importante instrumento de pacificação, mas sob vigilância dos marcos constitucionais e internacionais, que impõem o respeito aos direitos humanos e à memória coletiva.
Tensão contemporânea
Mais do que um conceito jurídico, a anistia para Rui Barbosa era a expressão de um compromisso moral com a República: um instrumento para restaurar o pacto político, reparar injustiças e devolver dignidade aos perseguidos. A doutrina foi forjada em tempos de ruptura institucional, em que o esquecimento jurídico era visto como condição necessária para a reconstrução democrática.
Contudo, no século XXI, o ideal de "olvido absoluto do passado" já não se sustenta de forma incondicionada. O avanço do Direito Internacional dos direitos humanos, a atuação de cortes internacionais e a própria evolução constitucional brasileira impõem novos contornos à anistia, especialmente diante de crimes de lesa-humanidade.
O esquecimento, antes visto como caminho para a paz, agora divide espaço com a exigência de memória, verdade e responsabilização.
Ainda assim, o legado de Rui permanece vivo: não como uma receita pronta, mas como uma advertência constante sobre o valor das garantias, o perigo dos pactos quebrados e a centralidade da legalidade no exercício do poder.