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Sessão | STF

Maioria do STF valida lei que pune empresas por trabalho escravo

Apesar da maioria formada, ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos.

Da Redação

quarta-feira, 19 de março de 2025

Atualizado às 18:14

Nesta quarta-feira, 19, plenário do STF formou maioria para validar lei do Estado de São Paulo que prevê a cassação da inscrição no ICMS de empresas envolvidas em trabalho análogo à escravidão. A norma estabelece sanções administrativas para estabelecimentos que comercializem produtos cuja fabricação, em qualquer etapa, envolva essa forma de exploração.

Apesar da maioria favorável, o julgamento não foi concluído devido a pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

O relator, ministro Nunes Marques, que votou pela validade da lei foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luiz Fux e pela ministra Cármen Lúcia. Ministro Dias Toffoli divergiu.

Veja o placar:

O que diz a lei? 

A lei 14.946/13 prevê sanções para estabelecimentos comerciais que vendam produtos fabricados com uso de trabalho escravo, determinando a cassação da inscrição estadual no ICMS. Além disso, os sócios das empresas penalizadas ficam impedidos de atuar no mesmo ramo por um período de dez anos.

A CNC - Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, autora da ação, sustenta que a norma viola garantias constitucionais, como a intranscendência das penas e o devido processo legal, ao punir empresas e seus sócios sem exigir a comprovação de dolo ou culpa.

Também argumenta que a legislação invade competência privativa da União para legislar sobre direito do trabalho.

Dolo ou culpa

O relator, ministro Nunes Marques votou pela parcial procedência da ação, conferindo interpretação conforme à Constituição para que a aplicação da penalidade dependa da comprovação de dolo ou culpa, tanto das empresas quanto de seus sócios.

Ressaltou que a prática do trabalho em condições análogas à escravidão ainda persiste no Brasil, sobretudo no setor rural e na construção civil.

Citou o CP, que define o crime de reduzir alguém a essa condição, e destacou iniciativas como o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e a atuação da OIT - Organização Internacional do Trabalho.

Contudo, apontou falhas na redação da lei paulista, especialmente pela ausência de menção ao elemento subjetivo do tipo penal. 

Para evitar interpretações inconstitucionais, votou para que a penalidade prevista na lei só possa ser aplicada mediante comprovação, em processo administrativo com contraditório e ampla defesa, de que o comerciante tinha ciência ou deveria suspeitar da origem espúria das mercadorias adquiridas.

Da mesma forma, a punição aos sócios das empresas infratoras dependerá da demonstração de sua participação, ativa ou omissiva, na aquisição desses produtos.

Veja trecho do voto em que o ministro destaca a ausência do tipo subjetivo:

Por fim, afastou outros argumentos da CNC, rejeitando a tese de que a norma invadiu competência legislativa da União ou criou um tribunal de exceção. Para o relator, a lei estadual se insere nos esforços para combater o trabalho escravo, sem ferir preceitos constitucionais, desde que aplicada conforme os ajustes determinados pelo STF.

Ministros Luís Roberto Barroso, Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luiz Fux e ministra Cármen Lúcia acompanharam o voto.

Realidade alarmante

Ao votar, o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, que havia pedido destaque da ação do plenário virtual, ressaltou que o trabalho análogo à escravidão continua sendo uma realidade alarmante no país.

Segundo dados do Ministério do Trabalho e do Emprego, apenas em 2024, mais de 2 mil trabalhadores foram resgatados dessa condição, com São Paulo registrando 467 casos, ficando atrás apenas de Minas Gerais.

Para o ministro, a edição da lei paulista representou um marco fundamental no combate ao trabalho escravo contemporâneo e serviu de modelo para outros estados, como Mato Grosso, Paraíba, Bahia, Amazonas e Goiás. "Daí a minha preocupação em preservar esta lei, porque foi um modelo de sucesso replicado em outros estados da Federação", afirmou.

Barroso acompanhou o entendimento do relator, ministro Nunes Marques, no sentido de que a penalidade de cassação da inscrição estadual do ICMS se trata de medida administrativa legítima dentro do poder de polícia do Estado na fiscalização tributária.

Reforçou que a Constituição confere competência comum à União, Estados e Municípios para zelar pela ordem constitucional e combater as causas da pobreza e da marginalização.

"De modo que há um fundamento constitucional para a atuação do Estado, além do poder de polícia em matéria tributária já previsto na Constituição e no próprio Código Tributário", pontuou.

Veja trecho do voto:

O ministro fez questão de distinguir a lei paulista de outra norma estadual já declarada inconstitucional pelo STF na ADIn 4.419, que impunha uma obrigação a um órgão Federal.

Segundo Barroso, a legislação de São Paulo não impõe qualquer dever à União, mas apenas prevê a punição administrativa de empresas identificadas previamente pelos órgãos Federais de fiscalização do trabalho.

"Se o órgão federal na sua inspeção identificar que houve trabalho escravo, aí subsequentemente é que o Estado instaurará o seu procedimento", explicou.

Barroso também aderiu à interpretação conforme à Constituição para exigir que a aplicação das penalidades seja precedida de processo administrativo com contraditório e ampla defesa, garantindo a comprovação do dolo ou culpa da empresa.

Além disso, sugeriu que essa lógica seja estendida ao art. 2º da lei estadual, que disciplina o procedimento administrativo para a aplicação da penalidade.

Em relação às consequências para os sócios das empresas infratoras, previstas no art. 4º da lei, Barroso acompanhou o entendimento do relator de que a norma não invade a competência da União sobre o Direito Comercial, pois trata do combate à pobreza e marginalização, temas de competência comum entre União e Estados.

No entanto, fez um acréscimo: "Não basta que o sócio tenha participado do ato aquisitivo, é preciso exigir a comprovação de que ele sabia ou tinha condições de saber da origem ilícita das mercadorias", destacou.

Ao final, o ministro propôs a seguinte tese de julgamento:

"1. A previsão em lei estadual de penalidade de cassação de cadastro de inscrição de ICMS de empresas que comercializem mercadorias de fabricantes que utilizem trabalho escravo ou análogo não viola a competência da União para a inspeção do trabalho.

2. A penalidade de proibição de atuação no mesmo ramo de atividades não viola a competência privativa da União para legislar sobre o direito comercial.

3. A aplicação das sanções deve ser precedida de processo administrativo com contraditório e ampla defesa, garantindo a comprovação de dolo ou culpa."

Alteração de voto

No ambiente virtual, ministro Alexandre de Moraes havia divergido e votara pela inconstitucionalidade da lei, entendendo que o Estado de São Paulo invadiu competência da União ao estabelecer normas de fiscalização e punição para empresas envolvidas com trabalho escravo. No entanto, nesta quarta-feira, o ministro reconsiderou o voto e alterou o posicionamento, acompanhando o relator.

Termo equivocado

A ministra Cármen Lúcia destacou, ao votar, que a escravidão ainda é uma realidade no Brasil, apesar dos compromissos assumidos pelo país desde o século XIX. Lembrou que "o Brasil, em 1815, começou a assinar documentos internacionais, se comprometendo [...] para dizer que não aceitaria que viessem escravos mais para o Brasil traficados". No entanto, enfatizou que, ainda hoje, persistem casos de exploração de trabalhadores em condições degradantes.

A ministra também criticou o uso da expressão "trabalho escravo", classificando-a como contraditória. "Trabalho é valor, escravidão é crime. Então, trabalho escravo é algo que não pode existir, porque é realmente contraditória a expressão", afirmou. Segundo Cármen, a continuidade dessa prática em alguns estados, como Minas Gerais, expõe uma realidade "que nos envergonha, nos constrange".

Ainda, ressaltou que as providências adotadas pela lei paulista para combater a escravidão seguem os princípios constitucionais. "Todos os Estados, municípios, como a União, têm a obrigação de zelar pelos princípios constitucionais e pelos valores constitucionais maiores, um dos quais é exatamente o valor social do trabalho", afirmou.

Por fim, a ministra afastou qualquer alegação de que as medidas adotadas poderiam interferir na autonomia federativa. "Neste caso, não me parece que haja nenhuma interferência que possa contaminar, de alguma forma, a egidez federativa, as competências estão preservadas", concluiu, acompanhando a posição do relator e votando pela procedência parcial da ação, com a interpretação conforme os ajustes indicados.

Veja o voto:

Divergência

Ministro Dias Toffoli inaugurou divergência e votou pela inconstitucionalidade da lei, entendendo que o Estado de São Paulo invadiu competência da União ao estabelecer normas de fiscalização e punição para empresas envolvidas com trabalho escravo.