MIGALHAS QUENTES

  1. Home >
  2. Quentes >
  3. Nos EUA, Barroso fala do papel das Supremas Cortes no jogo do poder
Palestra

Nos EUA, Barroso fala do papel das Supremas Cortes no jogo do poder

Presidente do STF discursou em Yale, Princeton e Harvard sobre democracia, populismo e resistência institucional.

Da Redação

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Atualizado às 10:40

O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, participou de eventos acadêmicos em três das principais universidades dos Estados Unidos: Yale, Princeton e Harvard. Com o tema "Democracia, Populismo e Resistência Institucional: O papel das Supremas Cortes no Jogo do Poder", Barroso analisou a atuação de tribunais constitucionais em diferentes países.

Entre os exemplos citados por Barroso, estão países como Hungria, Venezuela e Rússia, onde as cortes foram enfraquecidas e perderam sua independência. Em contrapartida, mencionou Colômbia, Estados Unidos e Polônia como nações onde o Judiciário conseguiu conter avanços autoritários.

No caso brasileiro, o ministro afirmou que o STF desempenhou um papel fundamental na defesa da democracia, mas pagou um alto preço por suas decisões. Barroso também destacou o impacto das redes sociais na ascensão do populismo, apontando o uso da desinformação, do discurso de ódio e das campanhas contra a imprensa e instituições democráticas.

Migalhas obteve as anotações que serviram de base às apresentações, na tradução cuidadosa de Gabriel Rodrigues Teixeira.

Acesse a íntegra da palestra traduzida ou assista abaixo em inglês.

DEMOCRACIA, POPULISMO E RESISTÊNCIA INSTITUCIONAL:

AS SUPREMAS CORTES NO JOGO DO PODER

Luís Roberto Barroso1-2

Princeton, 28 de janeiro, 2025

Harvard Kennedy School, 30 de janeiro, 2025

Sumário

I. Introdução

Parte I

Revisitando os conceitos principais

I. Democracia

II. Populismo Autoritário

III. Supremas Cortes

Parte II

O que está acontecendo no mundo

I. Recessão democrática

II. O avanço do populismo autoritário

            1. Algumas causas

            2. O confronto entre o populismo autoritário e as Supremas Cortes

III. Algumas consequências do populismo autoritário

Parte III

Resistência democrática: fracassos e sucessos

I. Casos em que a Corte foi derrotada

            1. Hungria

            2. Venezuela

            3. Rússia

II. Três histórias de sucesso

            1. Colômbia

            2. Estados Unidos

            3. Polônia

III. O caso do Brasil

            1. Riscos democráticos enfrentados pelo Brasil

            2. O papel do Supremo Tribunal Federal

            3. O preço pago pelo Supremo Tribunal Federal

__________

I. Considerações iniciais

            1.         É um prazer e uma honra estar aqui e poder compartilhar com todos vocês algumas reflexões e algumas ideias sobre o tema "Democracia, Populismo Autoritário e Resistência Institucional: As Supremas Cortes no Jogo do Poder".

            2.         Eu gostaria de agradecer a todos os organizadores deste evento, muito especialmente a minha amiga e grande estudiosa do direito constitucional, Kim Lane Scheppelle, pelo convite e por toda sua gentileza.

            3.         Eu dividi esta exposição em três partes: I. Revisitando os conceitos principais; II. O que está acontecendo no mundo; e III. Resistência democrática: fracassos e sucessos.

Parte I

Revisitando os conceitos principais

            1.          Inicio esta apresentação revisitando, muito brevemente, as ideias centrais com as quais estaremos trabalhando: democracia, populismo e supremas cortes.   

I. Democracia

            1.         Ideologia vencedora. A democracia constitucional foi a ideologia vencedora do século XX, superando os projetos alternativos que surgiram ao longo das décadas: comunismo, fascismo, nazismo, regimes militares e fundamentalismo religioso.

                        ->        Alguns dirão que não foi propriamente a democracia, mas, na verdade, o capitalismo e a livre-iniciativa que prevaleceram.

            2.         Dois lados da mesma moeda. A democracia constitucional é um conceito que contém dois lados de uma mesma moeda. De um lado estão: soberania popular, eleições livres e limpas e governo da maioria; do outro, poder limitado, Estado de Direito e respeito aos direitos fundamentais.

            3.         Supremas Cortes. A maioria das democracias do mundo também inclui, em seu arranjo institucional, uma corte suprema ou constitucional que tem como uma de suas principais missões arbitrar os conflitos que às vezes surgem entre a democracia - ou seja, a vontade da maioria - e os valores constitucionais: respeito ao Estado de Direito e aos direitos fundamentais de todos.

                                   ->        Votos, direitos e razões. As democracias contemporâneas são feitas de votos, direitos e razões. Isso significa que elas não se limitam ao processo eleitoral, mas também exigem o respeito aos direitos de todos e um debate público permanente, que dá legitimidade às decisões políticas.

II. Populismo Autoritário

            1.         Onda populista. O mundo está assistindo a uma onda populista autoritária, antipluralista e anti-institucional que oferece sérios riscos à democracia. Na maioria dos casos, ela é impulsionada por líderes personalistas e carismáticos que manipulam os medos, as necessidades e os desejos da população, muitas vezes prometendo soluções simples - e equivocadas - para problemas complexos.

                        ->        De esquerda ou de direita. O populismo autoritário pode ser de esquerda (Perón, Evo Morales, Rafael Correa) ou de direita (Orbán, Erdogan, Putin). Atualmente, o extremismo de direita, frequentemente racista, xenófobo, homofóbico e antiambientalista, tem prevalecido.

            2.         Divisão da sociedade entre "nós" e "eles". A marca registrada do populismo é a divisão da sociedade entre "nós" - as pessoas puras, decentes e conservadoras - e "eles": as elites cosmopolitas, corruptas e liberais. O populismo autoritário flui pelos desvãos da democracia, pelas promessas não cumpridas de oportunidade e prosperidade para todos.

                                    ->        Há muitas para esse fenômeno e vamos discutir algumas delas um pouco mais adiante.

                        3.         Estratégias do populismo autoritário. O populismo extremista e autoritário usa estratégias semelhantes nos diferentes países em que busca se estabelecer, que incluem: a) comunicação direta com seus apoiadores, mais recentemente por meio das redes sociais; b) bypass ou cooptação das instituições intermediárias, que fazem a interface entre o povo e o governo, como o Legislativo, a imprensa e as organizações da sociedade civil; e c) ataques às supremas cortes e aos tribunais constitucionais, com a tentativa de capturá-los e preencher as cadeiras com juízes submissos.

                        ->        A desinformação como ferramenta. O populismo autoritário emprega, como suas principais ferramentas, campanhas de desinformação, discursos de ódio, calúnias, mentiras e teorias da conspiração. E, embora eu não goste muito desse nome, esses comportamentos são frequentemente agrupados sob o rótulo de "fake news". E as redes sociais e a desinformação desempenharam papéis decisivos em acontecimentos políticos que ocorreram em diferentes países, incluindo os EUA, o Reino Unido, a Índia e o Brasil.

III. Supremas Cortes

            1.         O papel do Judiciário. A maioria das democracias reserva uma parte do poder para ser exercida por funcionários públicos que não são eleitos. Esse é o caso do Judiciário. Sua função não é representar a vontade da maioria, mas interpretar a Constituição e as leis de forma técnica e imparcial.

2.         As missões da Suprema Corte. No topo do Judiciário, em países como os EUA, Canadá, Reino Unido e Brasil, está a Suprema Corte. A maioria dos países da Europa adota um formato ligeiramente diferente, com tribunais constitucionais. As supremas cortes ou tribunais constitucionais em países democráticos precisam cumprir três missões importantes:

            a) Governo da maioria. Garantir o governo da maioria (isto é, os tribunais devem acatar as decisões políticas tomadas pelos ramos eleitos do governo, exceto se estas forem inequivocamente contrárias à Constituição);

            b) Preservar a democracia. Preservar as regras da democracia (ou seja, impedir que as maiorias abusem do poder, alterando as regras do jogo em seu próprio benefício, a fim de perpetuar-se no poder); e

            c) Proteger os direitos fundamentais. Proteger os direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias.

3.         Tensões entre populistas e tribunais. Não é incomum que ocorram tensões entre governos populistas e cortes supremas ou tribunais constitucionais. O populismo superdimensiona o poder das maiorias, enquanto os tribunais têm exatamente a função de limitar esse poder com base na Constituição. Por esse motivo, costuma-se dizer que o poder que eles exercem é, em muitos casos, contramajoritário.

Parte II

O que está acontecendo no mundo

I. Recessão democrática

1.         Algo parece ter dado errado. Embora a democracia constitucional tenha sido, como eu mencionei, a ideologia vencedora do século XX, algo parece ter dado errado com o constitucionalismo democrático nos últimos anos. Isso em numerosas partes do mundo, provocando um cenário que é descrito por diferentes autores como "recessão democrática", "retrocesso democrático", "constitucionalismo abusivo", "autoritarismo competitivo", "democracia iliberal" ou "legalismo autocrático", entre outros termos depreciativos.

            2.         Exemplos pelo mundo. As expressões têm sido usadas para identificar experiências como as que ocorreram em diferentes países, como Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Filipinas, Venezuela e Nicarágua, entre outros, inclusive no Brasil. Até mesmo democracias consolidadas passaram por momentos de turbulência e descrença nas instituições, como o Brexit no Reino Unido ou a invasão do Capitólio nos Estados Unidos.

            3.         Líderes eleitos, não golpes de Estado. Em todos esses casos, tal qual apontado por Levitsky e Ziblatt, a erosão da democracia não ocorreu por meio de um golpe de Estado, sob as armas de algum general e seus subordinados. Nos exemplos acima, o processo de subversão democrática ocorreu pelas mãos de presidentes e primeiros-ministros inicialmente eleitos pelo voto popular3.

                        ->        Até mesmo democracias consolidadas sofreram com os avanços do populismo e do extremismo, como o Reino Unido, a França e a Alemanha. Evidentemente, como convidado neste país, não cabe a mim comentar sobre os Estados Unidos.

II. O avanço do populismo autoritário

            II.1. Algumas causas

            1.         Falhas da democracia. As causas da ascensão do populismo autoritário são diversas, muitas delas ligadas a disfunções da própria democracia, que não conseguiu cumprir suas promessas de prosperidade e oportunidades iguais para todos, como mencionei anteriormente. 

            2.         Consequências da exclusão. A democracia deve ser um projeto coletivo de autogoverno que exige participação e benefícios para todos. As pessoas e os grupos que são excluídos não se sentem comprometidos com ela. 

            3.         Três categorias de causas. Tentei organizar as causas da erosão do apoio popular à democracia em três categorias diferentes: políticas, socioeconômicas e culturais-identitárias.

            1. Causas políticas

                        a) Déficit de representatividade nos sistemas eleitorais. Qualquer um que viaje pelo mundo descobre que os eleitores não estão completamente satisfeitos com o sistema que têm em praticamente nenhuma democracia;

                        b) Percepção negativa da política. A crença de que a política gira mais em torno dos próprios interesses dos políticos do que dos interesses da sociedade;

                        c) Apropriação do Estado por elites extrativistas. A expressão "elites extrativistas" é usada aqui no sentido sugerido por Daron Acemoglu e James Robinson em Por Que As Nações Fracassam. Essas são elites que colocam o Estado e as instituições a serviço de seus próprios interesses - isto quando não estão diretamente envolvidas em corrupção pura e simples.

                                    ->        Tudo isso leva à erosão da confiança popular nas instituições.

            2. Causas socioeconômicas

                        a) A persistência da pobreza dentro dos países e entre os países;

                        b) Aumento relativo da desigualdade; e

                        c) Estagnação social e dificuldade de mobilidade social.

                                    ->        A globalização e a consolidação da economia do conhecimento trouxeram impactos negativos a segmentos da sociedade. A rápida ascensão da Inteligência Artificial agrava estes riscos.

            3. Causas culturais-identitárias

                        a) Políticas públicas identitárias, que possibilitaram o avanço dos direitos das mulheres, dos negros, da comunidade LGBTQ+, das pessoas com deficiência (PCD) e das comunidades indígenas, afetando o predomínio de setores tradicionalmente hegemônicos; 

                        b) O surgimento de divisões acentuadas dentro das sociedades: entre regiões, entre populações urbanas e rurais, entre indivíduos religiosos e não religiosos, entre globalistas e nacionalistas; e 

                        c) A busca de bodes expiatórios para problemas sociais como crime, desemprego e transformações culturais. Esses bodes expiatórios podem incluir imigrantes, esquerdistas, indivíduos LGBTQ+, muçulmanos e outros grupos. 

                                    ->        Democratas ainda não conseguiram - ao menos com sucesso - convencer alguns setores da sociedade de que o reconhecimento dos direitos das mulheres, dos negros, das pessoas LGBTQ+, das pessoas com deficiência (PCD) e das comunidades indígenas não é uma causa meramente progressista. A dignidade e a igualdade de todas as pessoas são A causas da humanidade.

            II.2. O confronto entre o populismo autoritário e as Supremas Cortes

            1.         Os governos populistas frequentemente são hostis aos valores constitucionais. Os tribunais atuam como uma barreira contra o abuso de poder por parte das maiorias. Os governos populistas, no entanto, costumam ser hostis aos valores constitucionais, pois defendem o poder ilimitado das maiorias políticas, atacam os mecanismos de freios e contrapesos, desprezam as minorias (políticas, raciais, religiosas, sexuais) e até mesmo subordinam os direitos fundamentais à vontade majoritária.

                                   ->        A estratégia populista é afirmar que os tribunais representam as elites, com interesses opostos aos da maioria.

            2.         Tensão exacerbada entre os governos populistas e os tribunais. Não é de se surpreender que, com frequência, haja uma tensão exacerbada entre os governos populistas e as supremas cortes, cuja função é justamente equilibrar o poder político e mantê-lo dentro dos limites da Constituição. Não é por acaso que elas são alvos frequentes do populismo autoritário.

            3.         Os líderes populistas tentam enfraquecer e capturar os tribunais. Como consequência, os líderes autoritários procuram capturar ou enfraquecer as supremas cortes, atacando-as verbalmente e, também, por meio de algumas ações concretas replicadas em todo o mundo, que incluem:

                         (i) Aumentar os juízes dos tribunais (court-packing). "Empacotar" os tribunais com juízes submissos, forçando a abertura de posições com mudanças nas regras de aposentadoria ou com o aumento do número de cadeiras;

                        (ii) Supressão de poderes. Aprovação de emendas constitucionais e legislação infraconstitucional que retirem poderes jurisdicionais e administrativos dos tribunais ou impeçam seu desempenho; e

                        (iii)  Ameaça de impeachment. Pedidos de impeachment contra juízes da Suprema Corte que se opõem aos interesses do governo, tal qual ocorreu na Venezuela e no Brasil.

            6.         Colocar os tribunais a serviço do governo. As lideranças antidemocráticas usam essas estratégias para colocar os tribunais a serviço dos propósitos governamentais, beneficiando-se da legitimidade que o Judiciário pode trazer para suas condutas. Em alguns países, essas estratégias funcionaram, transformando os tribunais em instituições auxiliares do poder político autoritário. A Hungria e a Venezuela são bons exemplos dessa possibilidade.

III.Algumas consequências do populismo autoritário

            1.  Perda de civilidade. Faz parte do manual do populismo autoritário desqualificar moralmente os opositores políticos, com linguagem agressiva e pouca compostura. 

            2. Articulação global do extremismo e captura do campo conservador. O pensamento conservador clássico se caracteriza pela preservação do status quo e pela crença de que mudanças, quando inevitáveis, devem ser graduais e paulatinas. No entanto, em muitas partes do mundo, os conservadores passaram a ser subjugados pelo extremismo - que tem um componente claro de ruptura com o status quo - apresentando-se como oposição ao establishment.

                        ->        Por essa visão, como as instituições foram supostamente dominadas pelos progressistas, elas devem ser vistas com desconfiança, quando não destruídas.  

            3. Manipulação política da religiosidade das pessoas. Em muitos países, o populismo autoritário se apropria de líderes religiosos para promover seus objetivos. A retórica inclui afirmações como "meu oponente não defende os valores cristãos e a família" ou "eles são agentes do demônio".  

                       ->        Um fenômeno intrigante aqui é a combinação de uma visão econômica ultraliberal (no sentido europeu, com ideais radicalmente pró-negócios e contra a regulamentação estatal) com uma postura ultraconservadora em questões sociais: oposição aos direitos das mulheres, direitos das pessoas LGBTQ+ e a ações afirmativas.  

            4. Perda da importância da verdade. Isso se dá com o uso das redes sociais para disseminar desinformação, discursos de ódio e teorias da conspiração. O uso de mentiras e tentativas de assassinato de reputações integram as táticas comuns do populismo autoritário. Essa estratégia de guerrilha amoral esconde-se atrás de um mal dissimulado biombo de liberdade de expressão.

            5. Desprezo pelas instituições de conhecimento e de informação. Essa animosidade é evidente nos ataques à imprensa, às universidades, aos think tanks e aos intelectuais em geral. 

Parte III

Resistência democrática: fracassos e sucessos

                        ->        Na maioria dos casos em que os tribunais independentes enfrentaram o populismo autoritário, eles acabaram sendo derrotados. Eles foram capturados junto com outras instituições, como o Legislativo, a imprensa e até mesmo as universidades. Há poucos exemplos de histórias de sucesso.

I. Casos em que a Corte foi derrotada

            1. Hungria

                        Um dos exemplos mais emblemáticos é o do Tribunal Constitucional da Hungria, que desfrutou de poder, prestígio e independência após a redemocratização do país, com a dissolução da União Soviética. Entretanto, depois que Viktor Orbán e seu partido Fidez chegaram ao poder em 2010, a situação se deteriorou progressivamente.

O roteiro era previsível: "empacotamento", supressão de competências relevantes e captura. Nessa direção, as emendas constitucionais e as reformas legislativas aprovadas no Parlamento dominado pelo Fidez:

a) aumentaram o número de juízes do Tribunal de 11 para 15;

b) reduziram a idade de aposentadoria para abrir novas vagas4;

c) alteraram os critérios de nomeação de juízes para aumentar a interferência político-partidária; e

d) removeram competências de controle de constitucionalidade, especialmente quanto a emendas constitucionais.

Em 2013, o governo já havia obtido o controle total do Tribunal e de outras instituições, como o Parlamento, a mídia e as universidades. Um ícone do populismo autoritário de direita no mundo, Orbán é considerado por alguns acadêmicos "o ditador definitivo do século XXI"5.

            2. Venezuela

Outro caso dramático é o da Venezuela. Hugo Chávez assumiu o cargo em 1999 e, no mesmo ano, conduziu a aprovação de uma nova Constituição. Ele permaneceu no poder, por intermédio de sucessivas reeleições, até sua morte em 2013. Em 2002, sofreu uma tentativa de golpe de Estado, tendo conseguido retornar ao poder dois dias depois.

Em 2004, em retaliação ao Tribunal Supremo de Justiça, que havia absolvido os comandantes militares rebeldes, o Congresso dominado por Chávez:

                        a) aumentou o número de juízes do Tribunal de 20 para 32, em um primeiro empacotamento para controlar a Corte; e

                        b) facilitou a remoção de juízes pelo Congresso, o que foi feito imediatamente com a ejeção do vice-presidente do Tribunal.

Entre 2005 e 2014, não houve uma única decisão do Tribunal desfavorável ao governo central. Após a morte de Chávez em 2013 e a ascensão de Nicolás Maduro, a deterioração econômica possibilitou uma vitória significativa da oposição na eleição parlamentar de 2015.

Antes da posse da nova composição do Congresso, no entanto, a Legislatura que estava concluindo seu mandato nomeou, em 25 de dezembro de 2015, 13 novos juízes titulares e 21 substitutos para a Corte, sem observar o procedimento adequado previsto na Constituição e na legislação específica. A partir de então, o Tribunal Supremo de Justiça desempenhou o pior papel possível: tornou-se uma aliada do Presidente para neutralizar e paralisar a oposição do Congresso:

a) o Tribunal declarava todas as leis e atos do Congresso inconstitucionais;                       

b) em 2017, o Tribunal validou a convocação de uma Assembleia Constituinte, que não produziu nenhuma Constituição, porém concentrou em si os principais poderes da República; e

c) manteve a antecipação de uma eleição presidencial fraudada, da qual os principais partidos de oposição foram excluídos.

No início de 2025, Maduro foi empossado como presidente depois de perder as últimas eleições, de acordo com todos os observadores independentes. Novamente com o apoio do Tribunal Supremo.

Em suma: na Venezuela, o Tribunal Supremo de Justiça foi um ator proativo e relevante na desconstrução do Estado Democrático de Direito. Hoje, o país é um desastre humanitário.

            3. Rússia

            O caso da Rússia é um excelente exemplo. Em 1989, após a queda do Muro de Berlim, a Corte Constitucional se posicionou como um ator importante na transição democrática. Em 1993, no entanto, a Corte entrou em conflito com Boris Yeltsin por causa de decretos que suspendiam o Parlamento, sob o entendimento de que o presidente havia excedido seus poderes.

             ->        Yeltsin convocou um plebiscito popular e obteve apoio para dissolver o Parlamento e a própria Corte. No final de 1993, a Rússia passou a ter uma nova Constituição, mas não tinha mais uma Corte Constitucional. A Corte só foi reinstaurada em 1995, com um papel muito menor e já submissa ao novo presidente, Vladimir Putin6.

3. Quando há um partido hegemônico, que controla o Legislativo e tem amplo apoio nas instituições da sociedade civil e do público, conter os movimentos autoritários da maioria torna-se muito mais difícil. Por outro lado, quando há maior equilíbrio e competição política entre diferentes partidos e grupos, a capacidade institucional de frear processos antidemocráticos se torna mais viável.

            ->        Histórias parecidas aconteceram em muitos outros países, incluindo Turquia, Nicarágua, Equador, Peru e Bolívia.

III. Três histórias de sucesso

            1. Colômbia

Alguns anos antes da ascensão do populismo autoritário, a Corte Constitucional da Colômbia proferiu uma decisão extremamente importante em 2010. A Corte declarou inconstitucional uma emenda à Constituição que permitia a reeleição do Presidente da República para um terceiro mandato, mudança que teria beneficiado o então presidente Álvaro Uribe. Um terceiro mandato, em muitos países latino-americanos, é o caminho para a ditadura, como a história demonstra, em exemplos como Venezuela, Nicarágua e outros.

A Corte colombiana entendeu que a emenda derrubada denotava uma ruptura com a identidade do texto constitucional original, violando seus princípios estruturantes e caracterizando uma verdadeira substituição da Constituição.

            2. Estados Unidos

Até certo ponto, os Estados Unidos podem ser considerados como uma história de sucesso. Como se sabe, nas eleições de 2020, o presidente Donald Trump, candidato à reeleição, alegou, sem qualquer evidência, a existência de fraude eleitoral, mesmo antes do início da votação. Ele foi derrotado por Joe Biden no Colégio Eleitoral por 306 votos a 232 e na contagem nacional por mais de 7 milhões de votos. Mesmo assim, Trump nunca reconheceu sua derrota. Pelo contrário: seus partidários entraram com mais de 60 ações judiciais buscando anular as eleições em diferentes estados, tendo fracassado em todas elas. A própria Suprema Corte rejeitou dois processos endossados pelo presidente.

            ->        O ponto que quero enfatizar aqui é que o Poder Judiciário, incluindo a Suprema Corte, não cedeu aos apelos do líder populista que estava descontente com sua derrota, preservando o resultado eleitoral e a democracia.

O retorno recente do ex-presidente ao poder, por meio do voto popular, faz parte do processo democrático.

3. Polônia.

A Polônia é um caso raro de um país que conseguiu superar o populismo autoritário por meios eleitorais. A partir de 2015, o Tribunal Constitucional da Polônia passou por vicissitudes semelhantes às de outras cortes, até ser totalmente controlado pelo Partido Lei e Justiça (PiS). As tensões entre o Tribunal e o governo começaram quando houve uma recusa em chamar para o cargo cinco juízes que haviam sido nomeados pelo Sejm (câmara baixa do Parlamento), que estava no fim de sua Legislatura7. Em sequência, foram elaboradas leis que:

a) anteciparam a aposentadoria de juízes8;

b) limitaram as competências dos juízes;

c) requeriam um quórum de supermaioria para a invalidação de leis (dois terços do colegiado); e

d) ainda mais sério, concediam ao Executivo poder discricionário para publicar ou não as decisões do Tribunal.

                        ->        É verdade que, nas eleições de 2023, o Partido Lei e Justiça foi derrotado. No entanto, conforme Kim Scheppele aponta em um artigo publicado no The New York Times, reconstruir instituições e superar traumas não é fácil, especialmente porque o Tribunal Constitucional, capturado pelo regime anterior, dificulta as mudanças.

III. O caso do Brasil

            III.1. Riscos democráticos enfrentados pelo Brasil

            1.         Em 2016, depois de 14 anos no poder, o Partido dos Trabalhadores (PT) deixou o governo, após o controverso impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Em 2018, um novo presidente foi eleito, se apresentando como um outsider ultraconservador, apesar de ter cumprido múltiplos mandatos no Congresso Nacional.

            2.         O presidente, durante seu mandato, adotou posições negacionistas em relação à pandemia e às questões ambientais, bem como promoveu práticas que foram entendidas por vários especialistas como ameaças ao Estado de Direito.

            3.         De acordo com muitos destes analistas, uma série de eventos demonstra os riscos democráticos que o país começou a enfrentar, incluindo:

                        (i)        Politização das Forças Armadas, com a nomeação de militares da ativa para cargos governamentais e de milhares de militares aposentados para uma ampla variedade de cargos públicos;

                        (ii)       Glorificação repetitiva do período da Ditadura Militar e homenagens para indivíduos identificados como torturadores durante aquele período;

                        (iii)      Ataques diretos ao Supremo Tribunal Federal e insultos pessoais dirigidos aos Ministros;

                        (iv)      Ataques diretos à imprensa e insultos pessoais dirigidos a jornalistas;

                        (v)       Tentativas de desmoralizar o sistema eletrônico de votação, que é totalmente confiável, com acusações falsas de fraude e esforços constantes para a reintrodução das cédulas de papel, que historicamente foram uma fonte notória de fraudes eleitorais no Brasil;

                        (vi)      Requerimento de impeachment de um Ministro do Supremo Tribunal Federal; 

                        (vii)     Recusa em reconhecer a vitória do candidato eleito após as eleições;

                        (viii)   Apoio a acampamentos em frente a quartéis militares, cujos integrantes rejeitavam os resultados eleitorais e pediam um golpe de Estado para manter o presidente no poder; 

                        (viii)   Invasão às sedes dos três poderes no dia 8 de janeiro de 2023, dias após a posse do Presidente Lula; 

                        (ix)      Descoberta de uma minuta de decreto que institucionalizaria um golpe de Estado, o que ocorreu durante uma busca e apreensão na casa do ex-Ministro da Justiça; 

                        (x)       Investigação em andamento sobre a preparação de um golpe de Estado imediatamente após a derrota nas eleições, incluindo planos para o assassinato do presidente eleito e de outras autoridades. 

                                    ->        Apenas para deixar claro: eu estou relatando episódios e fatos sem expressar quaisquer opiniões.

III.2. O papel do Supremo Tribunal Federal

Neste cenário extremamente complexo, o Supremo Tribunal Federal desempenhou um papel proeminente que preservou a democracia, porém também atraiu um grande ressentimento político.

1. Durante a Pandemia de COVID-19, o Supremo Tribunal Federal:

                       a) Autorizou estados e municípios a tomarem medidas para enfrentarem a emergência, suplantando a omissão do governo federal;

                        b) Ordenou a criação de um plano nacional de vacinação;

                        c) Determinou a vacinação obrigatória;

                       d) Estabeleceu a exigência da apresentação de certificado de vacinação para a entrada no país;

                       e) Validou leis estaduais e municipais que proibiam aglomerações religiosas durante a Pandemia.

            2. Em relação às questões ambientais, o Supremo Tribunal Federal determinou a reativação do Fundo Amazônia e do Fundo Clima.

3. Quanto aos direitos das comunidades indígenas, o Supremo Tribunal Federal ordenou o desenvolvimento de um plano de proteção para eles durante a pandemia e determinou a remoção à força de invasores que exploravam suas terras ilegalmente.

            4. Demandou a divulgação de um vídeo de uma reunião ministerial na qual ficou evidente a sugestão de que fossem empregadas instituições estatais para proteger interesses do presidente e de sua família.

            5. Instaurou inquéritos e ações criminais para conter grupos de extrema direita que ameaçavam as instituições e disseminavam informações falsas.

            6. Condenou criminalmente um parlamentar de extrema direita que convocou a população a invadir à força o Supremo Tribunal Federal e atacar os Ministros.

            7. Derrubou ou desmonetizou websites que propunham um golpe de Estado.

8. Tem julgado e aplicado penas severas a participantes das violentas invasões das sedes dos três poderes no dia 8 de janeiro de 2023.

9. Está supervisionando uma investigação criminal conduzida pela Polícia Federal sobre suposta tentativa de golpe de Estado.

III.3. O preço pago pelo Supremo Tribunal Federal

            1. O papel diferenciado do Supremo Tribunal Federal

                        Por um conjunto de razões, o Supremo Tribunal Federal brasileiro desempenha um papel que, sob vários aspectos, é distinto do que é desempenhado por supremas cortes e tribunais constitucionais ao redor do mundo. Temas que em outros países são considerados políticos, entre nós são jurídicos e judicializados. Algumas razões para este fenômeno:

                        a) A Constituição do Brasil é consideravelmente abrangente e detalhada;

                        b) O acesso à jurisdição do STF é amplo e pode se por meio de diversos tipos de ações diretas;

                        c) O rol de instituições e entidades privadas legitimadas para a propositura de ações diretas perante o STF é vasto;

                        d) A competência do STF para matérias criminais é ampla e o Tribunal é responsável direto por julgar determinadas petições de habeas corpus;

                        e) As sessões do STF são transmitidas ao vivo por televisão aberta e no YouTube.

                                    ->        Por causa desse arranjo institucional, o Supremo Tribunal Federal termina no centro das mais delicadas questões da vida nacional, com grande exposição pública. Como disse, não se trata de uma opção, mas da observância de um específico desenho institucional.

            2. O Supremo Tribunal Federal julga as questões mais divisivas da sociedade brasileira

             1.       Esse contexto institucional que une uma Constituição abrangente ao fácil acesso ao STF muitas vezes obscurece a linha entre o direito e a política. Ele também submete o Tribunal a um escrutínio público significativo, com ampla cobertura da mídia, já que é levado a decidir sobre questões que vão desde a demarcação de terras indígenas e pesquisas com células-tronco embrionárias até a legalidade da importação de pneus e ações ou omissões do governo em relação às mudanças climáticas. E, com frequência, algum interesse relevante e poderoso sairá frustrado.

            2.         Outros exemplos incluem a união entre pessoas do mesmo sexo, direitos LGBTQ+, cotas universitárias, desmatamento da Amazônia, aborto, política de drogas, ataques à democracia, regulamentação das redes sociais, medidas sanitárias durante a Pandemia, terceirização e outras questões trabalhistas complexas, julgamentos criminais de políticos e aulas de religião em escolas públicas, entre muitos outros.

            3.         Em suma: o STF está sempre desagradando algum segmento relevante da sociedade brasileira, seja o contribuinte, o governo, as comunidades indígenas, os empresários do agronegócios ou os evangélicos.

            3. A reação no Congresso

            1.         Tudo isso fez com que o Supremo Tribunal Federal se tornasse alvo do descontentamento de políticos mais radicais. É importante lembrar que o ex-presidente não foi reeleito, mas recebeu quase 50% dos votos totais e elegeu um número significativo de senadores e deputados. Esse bloco parlamentar já pediu repetidamente o impeachment de Ministros do Supremo Tribunal Federal e propôs mudanças à composição e ao funcionamento do Tribunal.

Conclusão

            1.         Os tribunais, por si sós, não são capazes de resistir ao populismo autoritário. A participação da sociedade civil, da imprensa e de pelo menos parte da classe política é essencial. No Brasil, no momento decisivo, as Forças Armadas também não embarcaram na aventura autoritária.

            2.         A democracia vive, em diferentes partes do mundo, um momento de desprestígio. É preciso fazer um diagnóstico severo para identificar as razões desse fato. Muitas pessoas já não se identificam mais com os valores que nos trouxeram até aqui: liberdade substantiva, igualdade de oportunidades e dignidade para todos. E muitas outras sequer puderam se beneficiar, verdadeiramente, dos benefícios que esses valores deveriam trazer.

            3.         O mundo vive um momento de alguma escuridão, com mais força e menos direitos, mais arrogância e menos justiça. Vão ser tempos de resistência e esforço para manter as luzes acesas. A história não é linear. Ela é feita de idas e vindas. Mas nosso papel como cidadãos, como trabalhadores e como intelectuais é empurrá-la na direção certa. A direção certa é a do bem, da justiça e da inclusão de todas as pessoas.

________

1 - Presidente do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre pela Yale Law School. Senior Fellow na Harvard Kennedy School.

2 - Tradução para o português feita por Gabriel Rodrigues Teixeira. Este texto constitui anotações que serviram de base para uma apresentação oral, e não um artigo acadêmico.

3 - Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Como As Democracias Morrem, 2018.

4 - O Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu que a lei que reduziu a idade de aposentadoria dos juízes, procuradores e tabeliães de 70 para 62 anos era incompatível com as regras que regem a União Europeia. Comissão Europeia, Court of Justice rules Hungarian forced early retirement of judges incompatible with EU law. 6 de novembro, 2012. V. https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/mt/MEMO_12_832.

5 - Entrevista de Kim Lane Scheppele a Isaac Chotiner, Why conservatives around the world have embraced Hungary's Viktor Orbán. The New Yorker, 21 de agosto, 2021.

6 - V. Samuel Issacharoff, Fragile Democracies, Harvard Law Review, vol. 120, nº 6, 2007.

7 - A manobra orquestrada pelo Partido Plataforma Cívica era, de fato, questionável, afinal três dos cinco juízes substituídos só terminariam seus mandatos após as eleições. V. Andrew Arato, Populism, the Courts and Civil Society, 2017.

8 - Assim como no caso da legislação similar aprovada na Hungria, o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que este estatuto violava os princípios da União Europeia, particularmente a inamovibilidade dos juízes.

Patrocínio

Patrocínio Migalhas
NEDER DA ROCHA & ADVOGADOS
NEDER DA ROCHA & ADVOGADOS

NEDER DA ROCHA & ADVOGADOS ASSOCIADOS

Flávia Thaís De Genaro Sociedade Individual de Advocacia

Escritório de advocacia Empresarial, Flávia Thaís De Genaro Sociedade Individual de Advocacia atua nas áreas Civil, Tributária e Trabalhista. Presta consultoria em diversos segmentos da Legislação Brasileira, tais como: Escrita Fiscal, Processo Civil e Alterações do Novo Código de 2002, Falências,...

ADRIANA MARTINS SOCIEDADE INDIVIDUAL DE ADVOCACIA
ADRIANA MARTINS SOCIEDADE INDIVIDUAL DE ADVOCACIA

Nosso escritório é formado por uma equipe de advogados especializados, nas áreas mais demandas do direito, como direito civil, trabalhista, previdenciário e família. Assim, produzimos serviços advocatícios e de consultoria jurídica de qualidade, com muito conhecimento técnico e jurídico. A...